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A classe média não pode querer que SP seja Paris sem agir como parisiense

FSP, Entrevista da 2ª. , p. A14
Autor: KELMAN, Jerson
03 de Abr de 2017

A classe média não pode querer que SP seja Paris sem agir como parisiense

EDUARDO SCOLESE
EDITOR DE "COTIDIANO"
FABRÍCIO LOBEL
DE SÃO PAULO

Na semana em que comemorou um lucro recorde da empresa e o fim dos efeitos da crise hídrica que abalou São Paulo especialmente nos anos de 2014 e 2015, o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, 69, afirma ser necessário um pacto social por uma nova tarifa de água e esgoto no Estado.
Segundo a proposta da companhia, ainda a ser encaminhada à agência reguladora, uma conta de água mais cara para a classe média, por exemplo, permitiria arrecadação suficiente para ampliar os investimentos e resolver num prazo menor o deficit de saneamento -hoje 31% das moradias ainda não contam com tratamento de esgoto.
No ano passado, a Sabesp, empresa de capital misto sob o controle do governo do Estado, lucrou R$ 2,9 bilhões, dos quais a empresa se compromete a reverter 75% em investimentos em saneamento.

Folha - Especialistas ainda falam da iminência de uma nova crise da água no Estado. Há perspectivas disso?
Jerson Kelman - Tenho um quadro na minha sala com frases ditas pelo que eu chamo de profetas do apocalipse.
Durante a crise foram feitas obras de segurança hídrica que não são suficientes. É preciso terminar também três obras estruturais importantes [o sistema São Lourenço, a interligação do rio Paraíba do Sul com o sistema Cantareira e reversão do rio Itapanhaú]. Com a conclusão delas, estamos preparados para enfrentar, sem solavancos, a repetição das situações hidrológicas análogas ao que aconteceu entre 2014 e 2015. Sempre é possível ter uma nova crise, mas estaremos preparados.

Em 2014, não se escondeu demais da sociedade o real tamanho da crise? A questão eleitoral, com a disputa à reeleição de Geraldo Alckmin [PSDB], não atrapalhou?
Naquela época, não se sabia que o verão entre 2014 e 2015 seria tão ruim quanto foi. O biênio de 2014 e 2015 ensejou uma revisão na percepção do que a natureza pode nos oferecer. Eu acho ruim avaliar decisões tomadas em um ambiente de incerteza à luz de um conhecimento posterior.
Hoje a Sabesp é festejada como uma empresa que conseguiu reverter a crise, mas, se tivéssemos sido malsucedidos, todo esse esforço teria sido jogado fora.

Mas, em 2014, o sr. também era crítico à falta de transparência da real dimensão da crise.
Não sei exatamente a qual fala minha você se refere, não me recordo se fiz alguma crítica. Mas sou adepto de total transparência. Uma queixa que fiz [antes de assumir a Sabesp] é que poderia ter ocorrido a melhor gestão da água dos rios. Essa água é utilizada por irrigação, e já há experiência mundial e no Brasil de compensar [produtores] irrigantes para não usarem água. Temos que pensar no futuro, numa situação de crise.

Além das obras, a demanda não deveria ter sido atacada de maneira mais duradoura?
O legado positivo da crise é a mudança de hábitos da população que já está ocorrendo. Há hoje uma redução de produção da empresa em 15% no volume de água [em relação ao período anterior à crise].

Mas há interesse da empresa em voltar a produzir água como antes, uma vez que a Sabesp lucraria com isso?
O primeiro interesse da empresa é que haja segurança hídrica. Portanto essa redução de consumo é boa. Claro que [vender menos água] afeta a receita, mas tem que hierarquizar os temas. Na contradição entre faturamento e segurança hídrica, não tem dúvida nenhuma de que nossa prioridade é a segurança hídrica.

Os vazamentos voltaram a subir depois de anos, chegando a perdas de 32% do que é tratado. Como solucionar isso?
Estamos reativando um grande programa de redução de perdas com apoio da Jica [agência de fomento do governo japonês]. Para se ter ideia, se não fizermos nada para evitar vazamentos, o índice de perdas não fica estacionado, ele sobe. Apenas para que ele fique estacionado, gastamos na ordem de R$ 400 milhões por ano. Se você quiser que baixe, temos que gastar mais de R$ 400 milhões. E vamos avançar neste setor. Estamos fazendo uma discussão interna para saber quais são os métodos que, com menos recurso, obtemos maiores resultados. Uma das táticas é trocar hidrômetros, já que hidrômetros velhos quase sempre medem errado contra a Sabesp. Além disso, há fraudes e furtos. O combate a essas perdas é o que dá melhores frutos.

A companhia anuncia desde 2015 a criação de uma nova estrutura tarifária. Quando ela finalmente sairá?
Por ser mais profunda do que a revisão tarifária [de reposição da inflação, por exemplo], a reestruturação provavelmente não será adotada neste ano. Deve-se iniciar a discussão da nova estrutura tarifária de maneira transparente com a sociedade.

O que ela pode mudar?
Primeiro, o contingente da população beneficiária de tarifa social poderia ser maior [hoje é de R$ 15]. Hoje ela atinge de cerca de 300 mil [moradias], no Estado. Poderia chegar a um milhão. Mas essa bondade tem que estar associada a uma maldade. Se alguém precisa pagar menos porque é carente, aqueles que podem devem pagar mais. É absurdo que eu, morando em um flat, pague R$ 44 de água. Para a classe média, o custo da conta de água é muito baixo. Mas não é baixo para as famílias carentes.
Não é razoável algumas entidades de classe cobrarem [a Sabesp] por um serviço de padrão europeu e, ao mesmo tempo, exigir uma tarifa que não é europeia. De maneira geral, no Brasil, a tarifa é baixa se comparada à de primeiro mundo. A velocidade com que queremos avançar ao padrão de primeiro mundo, no padrão suíço, depende da população. Os suíços pagam mais. Interessa a todos dar condições à Sabesp para que ela preste melhores serviços e, ao mesmo tempo, possa exigir isso dela. A classe média não pode ir para Paris e dizer querer que São Paulo seja igual a Paris, ou Londres, sem querer se comportar como parisiense e londrino.

Que outras mudanças poderiam vir dessa reestruturação?
Outro ponto é que o preço do metro cúbico de água para casas não é o mesmo para prédios públicos e indústrias. Não é razoável que o metro cúbico de água em uma escola pública ou em um hospital possa custar quase oito vezes [a mais] o que custa a uma família de classe média. A ideia é diminuir a distância entre esses dois setores.

O mesmo vale para as indústrias e comércios? Pois, se aumentar a tarifa dos setores produtivos, eles podem buscar fontes alternativas como poços e caminhões-pipa.
Hoje temos uma situação perversa na estrutura tarifária. O preço cobrado pela água a esses setores é quase oito vezes mais alta. O preço é tão mais alto que fontes alternativas se tornam mais baratas. Não faz sentido que o sujeito traga um caminhão pipa, se ele tem acesso ao cano da Sabesp. Ele faz isso porque o preço está exageradamente alto, precisamos baixar. Hoje existe um subsídio em benefício da classe média, que acaba não pagando o preço integral de um serviço que é prestado a ela.

O sr. acredita que a sociedade está aberta a essa mudança?
Isso é uma questão de pacto social, que passa por impostos. A sociedade brasileira não quer aumentar a diferença de classes, viver ilhada em fortalezas cercadas de grades. Queremos que nossos filhos e netos cresçam numa sociedade mais harmônica. Não estou querendo penalizar a classe média. Estou apenas dizendo que, se ela quiser, podemos ir mais rápido nos investimentos. Não quero impor.

Com o fim da crise imediata no abastecimento de água, quais serão as prioridade?
Estamos desenvolvendo métricas objetivas para organizar prioridades. Os investimentos para garantir a qualidade de água é o topo da lista. Depois, vem atender aqueles que têm o fornecimento de água em casa, mas de maneira muito precária, tipicamente em favelas. Depois, vem investir em coleta de esgoto. E, por último, tratar o esgoto. Quando tivermos a lista de investimentos bem estruturada nesses critérios, a minha esperança é que diminua muito as sentenças judiciais que não conseguem perceber o conjunto das ações.
Essa mazela decorre de uma falta de uma visão sistêmica de quem tem que tomar uma decisão. E cabe a nós, Sabesp, dar essa visão. No meu plano, quando alguma autoridade judicial cobrar a implantação, por exemplo, de uma estação de esgoto terciária [mais cara e moderna] em uma determinada localidade, eu terei elementos para mostrar que aquele recurso vai tirar da fila outros investimentos que evitariam que crianças pisem no esgoto em outra localidade.
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RAIO-X
Nome Jerson Kelman, 69 (Natural do Rio de Janeiro)
Formação Mestre em Engenharia Civil pela UFRJ e doutor em Hidrologia e Recursos Hídricos pela Colorado State University
Trajetória Consultor do Banco Mundial, foi presidente da Agência Nacional de Águas, presidente do Grupo Light e, desde 2015, é presidente da Sabesp

FSP, 03/04/2017, Entrevista da 2ª. , p. A14

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/04/1872149-presidente-da-sa…

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