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Cinema Katukina

O Globo, Segundo Caderno, p. 1
24 de Mar de 2006

Cinema Katukina

Arnaldo Bloch

Dos 12 índios katukinas que desembarcaram ontem no Rio - para lançar, de hoje a domingo, no Museu da República, o documentário "Noke Haweti" ("Quem somos, o que fazemos") - 11 jamais tinham deixado os limites da aldeia de onde vêm, na fronteira do Acre com o Amazonas. A jornada acontece na esteira de uma tendência recente, de documentários feitos por cidadãos de comunidades socialmente desfavorecidas, após programas de capacitação técnica (como a série "Revelando Brasis" ou o filme "Falcão - Meninos do tráfico", da Central Única das Favelas, exibido semana passada no "Fantástico").

À frente do grupo, o índio Benjamim André Shre Katukina, de 36 anos, figura proeminente da aldeia, foi procurado há um ano pela cineasta carioca Nicole Algranti, que o convidou a aprender os fundamentos do cinema e a vir ao Rio assistir a uma bateria de filmes. De volta à aldeia, veio a insólita proposta: dirigir um documentário sobre o próprio povo.

- Eu nunca tinha ido ao cinema, aqui na aldeia não temos TV nem espelhos. Não são coisas do nosso mundo. Foi muito difícil, mas agora eu posso dizer que consegui ultrapassar a barreira sem perder minha identidade. Ao contrário, ela se fortaleceu, e é bonito ver os nossos velhos sorrindo, surpresos. Antes eu produzia material didático para escolas indígenas, e me expressava através da nossa pintura corporal e de algum artesanato. É algo espantoso de uma hora para outra dominar uma linguagem nova.

Num sapo, o veneno da sorte e da coragem

Tradição não falta aos katukinas. Como tantas outras nações indígenas, sofreram toda sorte de perseguições, foram massacrados nas chamadas "correrias" do fim do século XIX, e reduziram-se a uma população ínfima, de no máximo 700 pessoas, que habitam, desde 1984, 32 mil hectares demarcados na bacia do Juruá (no Acre, próxima da cidade de Cruzeiro do Sul), em quatro aldeias.

Há uma quinta, cravada no mato, a dois dias de caminhada, praticamente sem contato com os brancos, mas, de resto, têm seu território cortado ao meio por uma estrada, a BR-364 (o asfaltamento recente caiu como uma bomba tóxica nas margens das aldeias).

A ausência de um rio grande - são apenas dois igarapés a banhá-las - faz com que a caça (com arco e flecha ou espingarda) e a fruticultura sejam seus principais modos de subsistência. Apesar de todas as dificuldades, os índios têm uma coesão impressionante. Nas comunidades só falam o próprio idioma (da família Pano, falado por 40 mil pessoas nas amazônias brasileira e peruana) e só vão à cidade comprar sal, sabão e munição, com o dinheiro da aposentadoria dos mais velhos e dos poucos que trabalham fora da aldeia.

Filmado em julho de 2005, "Noke Haweti" é um corte interessantíssimo no cotidiano das aldeias katukina. Os 54 minutos de filme passam rápido e é um prazer ouvir os depoimentos na melodiosa língua ancestral (com legendas em português, inglês, francês ou alemão), partilhar do humor peculiaríssimo dos seus habitantes, acompanhar festas, brincadeiras coletivas e jogos de sedução, e conhecer seus mitos e crenças.

Momento marcante é, após dias de uma maré de azar na caça, o passo a passo da medicina do sapo Kampo ( Phyllomedusa bicolor ), que serve para dar sorte nas expedições, trazer coragem e força vital: a extração do veneno e a sua aplicação na pele associada a leves queimaduras a carvão sobre o corpo são mostradas em detalhes, bem como a maneira como cada um interpreta o efeito do veneno na corrente sangüínea. A dança da folha, para limpar a energia entre homens e mulheres, e a do chicote, para espantar a preguiça, são outras bonitas passagens. O filme retrata também os problemas causados pela localização da aldeia, como, por exemplo, a poluição do ar, o sumiço de animais para a caça e a zoeira, na época do verão, provocada pelo fluxo de carros e caminhoneiros.

O programa de capacitação durou três meses, durante os quais os profissionais ensinaram a Shre e outros futuros membros da equipe os melindres da arte cinematográfica, tais como operação de câmera, fotografia e direção.

"Vamos fazer a caixa de Roberto Carlos dos índios"

Nicole, que já havia feito curtas-metragens e um filme sobre outro povo indígena (dirigido por ela), sentiu que a melhor maneira de retratar o modo singular com que os katukinas conciliam a tradição ancestral com a modernidade era transferir para os olhos deles a responsabilidade

- Nada como eles mesmos para tomarem as decisões sobre o que o filme deveria dizer. A câmera é uma arma do bem e eles entendem isso como proteção e manutenção de sua cultura, com a curiosidade de um novo aprendizado, de mais uma ferramenta do homem branco que pode contribuir para a vida deles. O projeto trouxe um aumento de auto-estima e esperança para o pessoal - afirma Nicole, que tem a intenção de retratar, neste formato (filme, DVD e CDs de cantos indígenas), mais 12 povos indígenas.

- Vamos fazer a caixa do Roberto Carlos das nações silvícolas brasileiras!

Após a passagem pelo Rio, os katukinas seguem para Curitiba, onde apresentarão o filme na Conferência das Partes (COP 8), órgão decisório no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), cuja reunião acontece a cada dois anos e conta com a presença de ministros do meio ambiente e líderes mundiais. O projeto, que conta com vários apoios (como a Fundação Ford, a Petrobras e órgãos federais), consumiu R$ 400 mil, e toda a renda com a venda dos produtos vai para o povo Katukina. Para quem não tem medo de programa de índio, pode ser uma boa opção para o fim-de-semana, pois, além do filme, haverá apresentações de danças e palestras.

O Globo, 24/03/2006, Segundo Caderno, p. 1

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