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Cientistas mergulhadores revelam a Historia escondida sob as aguas

OESP, Geral, p.A12
06 de Jun de 2004

Cientistas mergulhadores revelam a História escondida sob as águas Arqueólogos subaquáticos exploram os restos materiais deixados pelo homem no fundo do mar, de rios e lagos, como navios ou acampamentos pré-históricos
EVANILDO DA SILVEIRA
Eles não gostam de ser comparados ao explorador Jacques Cousteau - um divulgador científico, não um cientista - e muito menos a caçadores de tesouros ou souvenirs submersos, estes considerados seus maiores inimigos.
Os arqueólogos subaquáticos, carreira que vem crescendo no Brasil, são pesquisadores que exploram, com fins científicos, os restos materiais deixados pelo homem ao longo de sua história no fundo do mar, de rios, lagos ou represas. Seus objetos de pesquisa podem ser vestígios de naufrágios, acampamentos pré-históricos, cidades, áreas portuárias ou qualquer outra marca da civilização submersa por um outro motivo. Eles são arqueólogos que mergulham, não mergulhadores aventureiros.
A arqueologia subaquática, que é uma subárea da arqueologia, surgiu no Brasil, de forma sistemática, na década passada. Um dos pioneiros foi o arqueólogo Gilson Rambelli, com pesquisas no Baixo Vale do Ribeira, na região de Cananéia, no litoral de São Paulo. Elas resultaram numa dissertação de mestrado e numa tese de doutorado apresentadas no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), em 1998 e 2003, respectivamente.
Hoje, os arqueólogos subaquáticos ainda são poucos no Brasil - menos de duas dezenas -, mas vêm realizando vários projetos que começam a mapear a riqueza escondida sob as águas do País. "Há pesquisas sendo feitas no litoral de São Paulo e de Angra dos Reis e nos Rios Paranapanema (SP) e Trombetas (PA)", diz Rambelli, diretor do Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Em breve começará também o projeto Inventário do Patrimônio Cultural Subaquático de Pernambuco."
Essas pesquisas trarão à tona apenas uma parte ínfima da riqueza arqueológica submersa do Brasil. Não existe um levantamento preciso, mas para se ter uma idéia desse universo basta saber que estudos realizados no Mediterrâneo mostraram que há lá, em média, um navio da Antiguidade naufragado a cada 6,6 quilômetros quadrados. "A partir daí, pode se imaginar o número existente no Brasil, onde circulavam milhares de navios por ano no período colonial", diz Rambelli, que é autor do livro Arqueologia até debaixo d'Água. "Em nosso País estima-se que haja algo entre 3 mil e 4 mil navios naufragados nos 8.500 quilômetros de sua costa."
A eles se juntam outros sítios arqueológicos subaquáticos, como os sambaquis - elevações arredondadas, com até 30 metros de altura, construídas no litoral com conchas e ossos de peixes e mamíferos, por povos pré-históricos.
Mudança do nível do mar submergiu muito deles. Entre eles, o mais antigo de São Paulo, com 8 mil anos de idade, descoberto no ano passado, junto com outros sete mais recentes, no Baixo Vale do Ribeira, pelo arqueólogo subaquático Flávio Rizzi Calippo.
Segundo ele, que mergulhou mais de 100 vezes no local, o sambaqui de 8 mil anos foi construído em terra firme. "Há 5 mil anos, no entanto, o nível do mar subiu 5 metros, engolindo a construção", explica. "Além de revelá-la, nossa pesquisa serve para entender melhor a ocupação do litoral brasileiro, por caçadores/pescadores/coletores há milhares de anos."
Fora do Brasil, Calippo participou, em 1997, de uma pesquisa no Rio Arade, em Portugal. "Esse rio sempre foi muito navegado ao longo da história", conta. "Por ele passaram navios fenícios e romanos. Mas no projeto de que participei o interesse era uma embarcação naufragada da Companhia das Índias Ocidentais, a Nossa Senhora dos Mártires."
Perdas - Além dessa riqueza submersa no mar, não se pode esquecer o que está escondido nas águas interiores do País - rios, lagos e represas -, que constituem uma das maiores redes fluviais do mundo.
"O Brasil oferece muita água para pesquisas arqueológicas", diz Rambelli.
"Embaixo d'água, o Brasil não conhece o Brasil. Quanto se perdeu e ainda se perde de informações únicas sobre nossa história, constituídas de testemunhos materiais, que se encontram, por um motivo ou outro, encobertos pelas águas?"
A ação dos caçadores de tesouro e de souvenirs é outra causa de perda de material e informação sobre a história submersa. "O maior inimigo da arqueologia subaquática são os caçadores de tesouro, pois eles destroem o contexto de deposição, que constitui o sítio arqueológico, e o potencial informativo decorrente da sua leitura", diz a arqueóloga Maria Cristina Mineiro Scatamacchia, do MAE-USP, coordenadora do Programa Arqueológico do Baixo Vale do Ribeira. "Eles prejudicam as pesquisas sérias."
Maria Cristina lembra que o arqueólogo subaquático é um cientista, preparado como seus colegas que estudam sítios a céu aberto. "A única diferença é que ele tem de mergulhar, porque o seu objeto de estudo está embaixo da água", explica. "Eles têm a mesma formação dos outros arqueólogos e sabem como pesquisar e preservar um sítio subaquático."
Já os caçadores de tesouro não são preparados nem estão interessados em estudar ou preservar os bens submersos. "Na verdade, eles garimpam o fundo com dragas, sem nenhuma preocupação com o sítio", critica Rambelli. "Sob o princípio do tempo é dinheiro, não se preocupam com registro arqueológico.
Já o caçador de souvenir se diverte nos fins de semana tirando peças de navios afundados. Esses troféus de suas aventuras (artefatos arqueológicos) muitas vezes terminam nas lixeiras, por não saberem como tratá-los ou, quando sabem, se tornam adornos de decoração pessoal."

Em Cananéia, a lenda sobre o vapor do Império Primeiro projeto brasileiro derrubou mitos e serviu para estabelecer uma metodologia
O primeiro projeto de pesquisa sistemático na área de arqueologia subaquática do Brasil é um exemplo de como o estudo científico de sítios arqueológicos pode ajudar a esclarecer e entender a História, além de derrubar mitos e lendas. De quebra, serviu também para estabelecer a metodologia de trabalho para o estudos de locais e bens submersos.
Ele foi levado a cabo pelo arqueólogo subaquático Gilson Rambelli, entre 2000 e 2003. Em 135 horas de mergulho - cada mergulho pode durar de 10 minutos a 1 hora e 10 minutos -, ele estudou os restos do naufrágio do vapor Conde d'Áquila, que afundou no antigo Porto de Cananéia, em 1858. Tratava-se de um navio de propulsão mista, vapor e vela, que fazia a viagem entre o Rio e Florianópolis, com algumas escalas, entre elas Iguape e Cananéia, a serviço do Império do Brasil.
Diz a lenda que, quando o navio passou por Cananéia, a tripulação teria cometido uma blasfêmia, dizendo que, se faltasse carvão para queimar nas caldeiras, queimaria as pernas da estátua de São João Batista, padroeiro da cidade. Por castigo do santo, o navio foi vítima de um incêndio e afundou bem em frente de Cananéia.
Rambelli conta que quando optou por verificar a existência daquele naufrágio, sobre o qual há relatos da época, pôde observar como a lenda estava presente no discurso da população. "Todos, dos mais jovens aos mais idosos, nos contavam em detalhe o ocorrido, quase 150 anos após o acidente", lembra.
Outra coisa que chamou a atenção da equipe de arqueólogos liderada por Rambelli foi o fato de o vapor já ter sido dinamitado na década de 1930, durante a liberação da área para a navegação, quando, de acordo com os moradores locais, ele foi pilhado pelos escafandristas que fizeram o trabalho. Depois disso, na década de 1980, o Conde d'Áquila foi alvo de exploração comercial de moradores locais, que visavam a achar tesouros. Não tiveram sucesso, no entanto. "Era o sítio ideal para nosso objetivo", diz.
"Tomamos como ponto de partida o processo de formação do próprio sítio, com toda essa história conturbada."
Novos valores - Segundo Rambelli, na época do naufrágio do Conde d'Áquila, Cananéia praticava com excelência a construção naval tradicional, com mais de 17 estaleiros, e não sofria um controle estatal tão poderoso. "Os navios a vapor, como o Conde d'Áquila, vão simbolizar esse controle do Estado, assim como uma mudança na concepção tecnológica náutica", explica. "Aqueles navios só poderiam ser reparados em grandes estaleiros no Rio."
É aí que entra a lenda. "Ela surge como uma resistência daquela sociedade que se sentia ameaçada por aqueles novos valores", afirma Rambelli . "Todos os carvões localizados submersos, próximos às caldeiras do navio naufragado, desmentem a possibilidade da falta de tal combustível. E, portanto, a necessidade da blasfêmia dos marinheiros." (E.S.)

Com capacete de madeira, italiano explorou lago em 1535
Mas 1.ª pesquisa científica, em 1961, só foi possível com acessório inventado por Costeau
O mergulho, pode-se dizer, é tão antigo quanto a própria humanidade. Os primeiros registros materiais dessa atividade datam, no entanto, de 4.500 a.C. Nas ruínas de Bismaya, cidade da Babilônia, foram encontrados objetos esculpidos em conchas de ostras provenientes de trabalho de mergulho. As mesmas conchas foram usadas por escultores egípcios em Tebas, em 3.200 a.C.
Posteriormente, o Império Romano usou mergulhadores para recuperar cargas naufragadas.
Depois disso, há uma lacuna de séculos nos registros históricos dessa atividade. "Só vamos reencontrar documentação sobre a temática do mergulho no Renascimento", escreve Gilson Rambelli, no livro Arqueologia até debaixo d'Água. "Esse período cultural é também marcado por um interesse frenético pelo mundo aquático, acompanhado de planos e experimentações, com a intenção de tornar possível a vida do ser humano sob as águas."
Quem primeiro conseguiu a proeza foi o italiano Franscesco Demarchi, em 1535. "Utilizando um capacete de madeira com um visor de cristal, ele mergulhou e realizou o primeiro reconhecimento arqueológico com equipamento de mergulho, em um dos barcos romanos afundados no Lago Nemi", conta Rambelli.
O grande salto na arte de mergulhar só veio a ocorrer, porém, em 1940, com a invenção do aqualung, por um jovem oficial da Marinha francesa, Jacques Cousteau, em parceria com o engenheiro canadense Émile Gagnan. Foi uma revolução. "Ele permitiu maior facilidade de movimento e se revelou capaz de satisfazer as exigências da exploração no ambiente aquático, inclusive da arqueologia", diz Rambelli.
Aproveitando-se desse equipamento, o arqueólogo americano George Bass realizou a primeira pesquisa científica de arqueologia subaquática. "Entre 1961 e 1964, Bass realizou a primeira escavação completa embaixo d'água, em frente da Ilha de Yassi Ada, na costa da Turquia", explica Rambelli. "Esse trabalho constitui um dos pontos de partida e de consolidação da arqueologia subaquática."
No Brasil, antes dos atuais projetos, a primeira experiência de arqueologia subaquática ocorreu em 1976, mas sem mergulho de arqueólogo. Um desses profissionais, Ulysses Pernambucano de Mello Neto, orientou da superfície uma equipe de mergulhadores no sítio de naufrágio do galeão Sacramento, ocorrido em 5 de maio de 1668. (E.S.)

OESP, 06/06/2004, p. A12

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