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06 de Ago de 2024
A ciência caminha para a floresta
Bioeconomia é compatível com a floresta em pé e com inclusão social, mas aumento de investimentos em pesquisa é chave para que bioinovações cheguem ao mercado
Sérgio Adeodato
06/08/2024
A produção do açaí movimenta R$ 7 bilhões ao ano, com crescente consumo - seja na tigela com banana e granola ou no prato com peixe frito e farinha, como reza a tradição amazônica. As exportações mais que dobraram em três anos. E não à toa a espécie é hoje estrela dos produtos da biodiversidade amazônica. Por trás do sucesso mundial estão pesquisas científicas de ponta, como a descoberta dos poderes nutricionais do fruto pelo pesquisador Hervé Rogez, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Há 30 anos, o engenheiro de alimentos belga naturalizado brasileiro identificou pela primeira vez o teor de fibras e a propriedade antioxidante do "ouro roxo", um marco na trajetória da bioeconomia.
"O telefone não parava de tocar", conta o pesquisador, autor de artigo científico que comparou os componentes do fruto amazônico às maravilhas da dieta mediterrânea para a saúde do coração e a longevidade. A descoberta dessa semelhança, em 1995, causou rebuliço. Desde então, com produção que hoje cresce 12% ao ano, os números do açaí galopam no rastro do mercado voltado à vida saudável. O preço subiu de R$ 0,50 para R$ 5 por litro em dez anos, e atualmente chega a R$ 20 por litro no mercado nacional.
A alta demanda, porém, traz preocupações. Da mesma forma que a ciência impulsionou o consumo do fruto no Brasil e no mundo, agora se debruça na solução contra a produção predatória. Devido ao atrativo valor de mercado, produtores expandem plantios da árvore em monocultura, no lugar de florestas biodiversas, com riscos ao equilíbrio ecológico. "Nesta terceira década das pesquisas sobre o açaí, o grande desafio é o da sustentabilidade", aponta Rogez. Além de métodos adequados ao manejo de baixo impacto, a academia busca valorizar o produto sustentável, como o aproveitamento do caroço do açaí - resíduo que pode ser insumo de cosméticos, bioplásticos e geração de energia.
A bioeconomia compatível com a floresta em pé e a inclusão social tem potencial de crescer 67% na Amazônia até 2050, alcançando R$ 38,5 bilhões por ano, segundo estudo do WRI Brasil. "Há um boom de jovens empreendedores motivados a levar os resultados de suas pesquisas para o mercado", afirma Spartaco Astolfi, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Lá, se localiza a Amazonzyme, startup que investiga micróbios da Amazônia como fonte de enzimas para uso industrial.
No caso da Eterna Biotech, criada neste ano também na Ufam, o negócio mira o rejuvenescimento. "A pandemia mostrou a necessidade de independência em medicamentos", enfatiza Astolfi. "Mas os investimentos precisam passar de milhões para bilhões, porque não reverteremos o quadro da ciência e tecnologia na Amazônia com migalhas."
A Amazônia representa cerca de 60% do território brasileiro, 13% da população, 9% do Produto Interno Bruto (PIB) e apenas 3% do investimento total de ciência e tecnologia. De acordo com estudo dos institutos Arapyaú e Agni, enquanto o Sudeste recebeu R$ 1,3 bilhão para bolsas de pesquisa e fomento em 2022, na Amazônia Legal foram somente R$ 197 milhões. Apesar da diferença, nessa região o número de mestres e doutores cresce 7% ao ano, ante 2% no Brasil. Há espaços para o surgimento de novos cérebros, mas muitos que lá florescem migram para centros mais ricos do país e do exterior.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) informa que está investindo R$ 24 milhões em várias frentes de bioeconomia na Amazônia, dos quais R$ 14,4 milhões para inovações em cadeias produtivas como a do açaí, cupuaçu e pirarucu. Um edital recém-anunciado de R$ 100 milhões apoiará empresas amazônicas nas áreas de bioeconomia, descarbonização e restauração florestal.
Na região, há 304 estruturas de ensino superior, 76% no interior. "Elas desempenham importante papel na governança territorial, mobilizando a dinâmica econômica", enfatiza Tatiana Schor, chefe da unidade Amazônia no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A Rede Amazônica de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade, criada neste ano pelo banco, mobiliza intercâmbio entre sete instituições do Brasil e de países vizinhos.
"O cenário da bioeconomia é de oportunidades. Precisamos de pesquisa aplicada para encontrar respostas", diz Francisco Saboya, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), que investe recursos públicos e privados no setor. Até hoje foram aportados R$ 197 milhões em 108 projetos de pesquisa de empresas na Amazônia. "Não devemos criar a bioeconomia a partir do pensamento apenas do Centro-Sul do país."
Entre as inovações, destaca-se a transformação do gergelim preto em medicamento pela startup Neuroprotect, criada após dez anos de pesquisas na academia. O produto, usado por comunidades tradicionais, evita sequelas graves em casos de acidente vascular cerebral (AVC). "Vamos transferir a tecnologia para a indústria farmacêutica e faturar com royalties", diz Walace Gomes, neurocientista da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Foram captados R$ 3,3 milhões via Embrapii para os testes em animais no Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP), em Florianópolis (SC). Segundo João Calixto, diretor da instituição, "na parceria público-privada, a indústria só tem a ganhar após as etapas iniciais de maior risco, apoiadas pelo governo".
O momento anima o pesquisador José Carlos Tavares, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), que há 35 anos estuda insumos amazônicos e agora - como sócio de startups - vê os resultados já no mercado. Uma delas, a Amazon Life, planeja lançar spray à base de jambu contra ejaculação precoce. A novidade, já patenteada, se soma ao produto antirrugas obtido do veneno de uma serpente da Amazônia, alternativa à toxina botulínica nas clínicas de estética. E vem aí um mix de extratos nativos que substituem o canabidiol obtido da maconha para fins terapêuticos.
Em outra startup, a Ages Bioactive, Tavares - autor de 270 artigos científicos - leva para a sociedade produtos voltados à qualidade de vida no envelhecimento. "É resultado da indignação frente ao modelo de universidade que não gera legados", afirma Fábio Steinecke, cofundador da empresa, apoiada no programa Jornada Amazônia, da Fundação Certi, para a captação de investimento. Instalado em uma sala do Hospital das Clínicas, em São Paulo, o negócio fornece suplemento alimentar feito de urucum para fortalecer a musculatura e melhorar a qualidade de vida de idosos, além de produtos para a saúde da mulher na menopausa.
As tecnologias da bioeconomia poderiam adicionar US$ 593 bilhões por ano ao Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, segundo a Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI). Há potencial de aumentar em 18 vezes a produção de biocombustíveis. "O desafio é tornar novas moléculas competitivas com as convencionais do petróleo", diz Thiago Falda, presidente da instituição. Segundo a consultoria McKinsey, 60% das matérias-primas industriais já poderiam ser produzidas a partir de recursos biológicos.
"É essencial saber qual bioeconomia queremos para fazer os recursos chegarem na ponta", enfatiza Livia Pagotto, secretária-executiva da rede Uma Concertação pela Amazônia. Políticas públicas priorizam a chamada "sociobioeconomia" da floresta como vetor de combate ao desmatamento e redução da pobreza. "Mas há um descompasso entre quem produz pesquisa aplicada e quem demanda inovações", completa Pagotto. "A Amazônia precisa se integrar ao Brasil também na ciência e tecnologia."
Há necessidade de criar pontes entre a região e o restante do país, segundo analistas. "Sozinhos não conseguimos ganhar escala, velocidade e eficiência na bioeconomia", aponta Guilherme Oliveira, diretor científico do Instituto Tecnológico Vale (ITV), na capital paraense. Com investimento de R$ 25 milhões em cinco anos, o centro participa do primeiro projeto do Sul global a produzir dados genéticos em grande escala - a iniciativa Genômica da Biodiversidade Brasileira, que reúne governo e 14 instituições de pesquisa, com objetivo de mapear cinco mil genomas até 2027.
Na linha da colaboração, instituições estaduais de fomento à pesquisa de todo o país formaram uma coalizão - a Amazônia +10 - para projetos conjuntos de bioeconomia e conservação, em parceria com centros de ciência amazônicos. Em dois anos, foram investidos R$ 143 milhões, com recursos de dezenas de parceiros do país e do exterior. "O movimento surgiu após a situação crítica das queimadas e desmatamento, com redução dos recursos federais [na gestão anterior do governo]", explica Rafael Andery, gestor do programa na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
"Precisamos pensar grande, começar pequeno e andar rápido, com métricas para medir o impacto das prioridades", sugere Jacques Marcovitch, professor da Universidade de São Paulo (USP). Um destaque é a bioeconomia computacional, que projeta novas moléculas inspiradas na natureza. "O momento é de conciliar larga escala com repartição justa e equitativa dos benefícios", ressalta Juan Carlos Castilla-Rubio, presidente da empresa SpaceTime Labs, voltada a tecnologias de deeptech climáticas.
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