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A cidade fantasma que assusta até assombração

O Globo, País, p. 12
06 de Nov de 2016

A cidade fantasma que assusta até assombração
Em Paracatu de Baixo, ancião conta que nem o caboclo d'água, ente folclórico, sobreviveu ao desastre

ANA LUCIA AZEVEDO
Enviada especial ala@oglobo.com.br

As noites chegaram com estrelas cadentes no fim de outubro. As orionídeas, fragmentos da cauda do cometa de Halley, riscaram de luz o céu. Mas, às vésperas do maior desastre ambiental da História do Brasil, no campo de lama e ruínas de Paracatu de Baixo, não houve quem fizesse pedidos à chuva de meteoros. Nem o que rompesse a escuridão. O distrito rural de Mariana foi relegado aos rejeitos que o engoliram em 5 de novembro de 2015. Está como deixado há um ano, na noite em que a onda de lama de rejeitos de mineração da Samarco o devastou.
Há obras antes e depois do vilarejo. Mas este é abandono. Paracatu de Baixo virou um fantasma do qual até as assombrações têm medo. A lama matou sua mais famosa assombração, parte das tradições de Minas. O caboclo d'água, versão local para a lenda do caboclo do rio da mitologia do São Francisco, era um monstro do Gualaxo do Norte. Houve tempo em que até uma associação de caçadores de assombração de Mariana ofereceu recompensa para quem o capturasse, tamanho era o terror da criatura. Não mais. O caboclo morreu.
- Ele morreu na lama. Foi levado. Desde aquele dia em que veio a onda da Samarco, ele nunca mais voltou - conta José Pascoal, um dos seis antigos moradores, todos homens, que se recusam a deixar Paracatu.
Seu Pascoal acha que completou 72 anos. Certeza, só tem a de que o caboclo não volta.
- Ele mordia a gente, mas gostava mesmo era de comer peixe. E para nos assustar, de vez em quando, sujava o rio de lama. Mas agora o Gualaxo é só lama. Todos os peixes morreram. O caboclo tá morto, lá no fundo de Candonga - diz.
Seu Pascoal se orgulha de um dia ter pegado o monstro, que, não sabe como, escapou de seu laço, mas não da onda de rejeito.
A poeira inunda o ar do povoado em destroços, despossuído até das suas assombrações. À noite, sob a luz de lanternas, a poeira que se desprende da lama seca forma uma névoa espessa. Cobre tudo. Sufoca. Além de Seu Pascoal, restaram outros cinco homens, alguns poucos cães, cavalos e vacas abrigados em casas da parte mais alta, que não foi varrida pela onda.
Moram com vista para a desgraça, cercados por destruição. No meio desta vive um gato. Único ser vivo a se mover pelas ruínas à beira do Gualaxo. Nasceu lá, sem dono, no meio dos rejeitos, conta Antônio Geraldo de Oliveira, de 64 anos, o Seu Nié, outro que se recusa a sair do vilarejo.
- Eram três filhotes, dois morreram de fome, ficou um. Nem sei a cor dele direito, está sempre cor de lama - diz Seu Nié, que gostava de organizar a Folia de Reis e hoje sente saudade da mulher Maria e dos filhos; foram morar em Mariana, enquanto um vilarejo não é reconstruído em outro lugar.
Desesperado por comida e companhia, o gato se enrosca nos pés e tenta subir pelas pernas da primeira pessoa que se aproxime. Mia sem parar quando lhe dão as costas e acompanha quem se aventure a andar, como ele, pelos destroços. Ao anoitecer, tenta caçar aos pulos, sem sucesso, vaga-lumes. E, quando estes somem e apagam, põe-se de novo a miar. O miado do gato é uma das poucas vozes a quebrar o silêncio. Ouvem-se o correr do Gualaxo do Norte em seu leito de lama, sapos e grilos. O mugido de uma vaca perdida. E nada mais.
Mas Seu Nié, como o gato e os outros que ficaram, só conhece Paracatu de Baixo. E não quer sair de lá. Paracatu fica entre Bento Rodrigues e Gesteira, os outros dois distritos rurais destruídos pela lama de rejeito de mineração. E, no meio, foi esquecido. O arrasado Bento está cercado, cheio de operários e máquinas. Defesa Civil e Samarco alertam sobre o perigo de se andar por ruínas e campos de lama de Bento. O acesso é restrito sob alegações de segurança. Não faltam placas e avisos, guardas, bloqueios e portões.
Gesteira, em Barra Longa, também está em obras. Casas foram construídas em partes mais altas e seguras, outras, reformadas. Pela estrada, árvores manchadas de lama foram pintadas de branco.
Já Paracatu é domínio da lama. As ruínas ainda com pertences destruídos dos antigos moradores - colchões, geladeiras, livros, brinquedos aqui e acolá - e os rejeitos que formam camadas de mais de dois metros de altura parecem não motivar os mesmos incômodo e preocupação. Assim como o faz em toda a zona do desastre, quando chove, a lama escorre para córregos e rios. Instável, afunda como areia movediça. A quadra da escola virou piscina de rejeito, que chega até o alto do muro. A lama se projeta por janelas, sai por telhados caídos das casas arrebentadas. De um campo erodido emergem restos de vergalhões, galhos, pedaços de banheiro e todo tipo de destroço. Ora dura, ora mole, a lama criou incontáveis armadilhas.
Os antigos moradores de Paracatu de Baixo esperam a escolha definitiva de um novo lugar para construção de outro povoado. Em votação, escolheram as terras de uma fazenda chamada Lucila. O destino das ruínas do distrito está parado à espera de decisões da Justiça. Podem virar oficialmente o que já são de fato, um memorial da tragédia. Alheio a tudo isso está o tempo. Novembro chegou sem o céu de estrelas cadentes para atender desejos. Veio com a chuva. E despertou a lama.

GEOGRAFIA DA LAMA MUDA A PAISAGEM

Novas praias, ilhas e lagoas em meio a vales rurais. Poderia ser uma descrição de paraíso. Mas é a visão do inferno. As praias são planícies de inundação tomadas por lama e pintadas de cinza por restos de minério ferro. As ilhas, aglomerações de rejeito que assoreiam os rios. E as lagoas, depósitos de areia movediça cobertos por vegetação, que podem tragar pessoas e animais sem aviso. Após um ano, a transformação na geografia da área que se estende de Mariana a Barra Longa é visível ao longo da estrada de terra que segue o curso do Gualaxo do Norte.

- Antigas lagoas abandonadas de garimpo, usadas pela população como pesqueiros ou açudes, foram soterradas. O rejeito parece duro como cimento, quando seco. Mas, ao chover, tem comportamento instável. As partículas se desprendem com a água. Acontece um fenômeno conhecido efeito tixotrópico. É como areia movediça e funciona como armadilha para pessoas e animais domésticos e silvestres - alerta Gustavo Bediaga, coordenador do grupo de trabalho de restauração florestal do Ibama.

Há dezenas dessas lagoas na região, diz ele. A solução é complexa. Há perigo até para as máquinas. É preciso escavar ao lado e drená-las por baixo, num processo lento e caro.

O Globo, 06/11/2016, País, p. 12

http://oglobo.globo.com/brasil/esquecimento-segunda-tragedia-em-mariana…

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