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Cidadãos da selva

Veja, Especial Amazônia, p. 58-62
24 de Dez de 1997

Cidadãos da selva
A vida em São Gabriel da Cachoeira, o último lugar onde o índio ainda é maioria

Bruno Paes Manso

A começar pelo idioma. O oficial é o português, mas ali são faladas mais de vinte línguas diferentes. Na hora de tratar da saúde, os hospitais são o segundo recurso o primeiro são os pajés. Na época da formiga rainha, uma iguaria segundo os padrões da culinária indígena, alguns professores decretam feriado para que os alunos possam caçar e comer os insetos. Na missa de domingo é possível encontrar um padre de cocar e batina fazendo o sermão na língua tucano. No Exército, quem guia as expedições pela mata são os soldados indígenas, mais valiosos do que a bússola.
Um dos últimos lugares do Brasil onde os índios são maioria, o município de São Gabriel tem 112.000 quilômetros quadrados quase 100 vezes mais que a cidade do Rio de Janeiro , mas a área urbana é mínima, uma cidadezinha de 6.000 habitantes. Quase todo o território está coberto por florestas e entremeado de rios.
A população, que forma a maior concentração indígena da Amazônia, está distribuída em 750 povoados, de 23 etnias distintas, ao longo das margens do Rio Negro e seus afluentes.
Para chegar ao centro urbano pode-se levar até doze dias de canoa, o principal veículo disponível há apenas uma estrada de terra cortando a região. As avenidas são os rios. As ruas, os igarapés. Na cidade dos índios, os postos de comando são ocupados por forasteiros. O prefeito Amilton Bezerra Gadelha, do PT, nasceu em Maraqueí, no Amazonas. O delegado, José Júlio Cesar Correia, é de São Paulo, assim como o bispo, Walter Ivan de Azevedo. A maioria dos vereadores, dos secretários e dos empresários mais ricos veio do Nordeste. Seria uma prova de discriminação ou de submissão? Nem uma coisa nem outra
Mais importante do que comandar a cidade, um Exército ou ganhar dinheiro, os índios se dão por satisfeitos organizando suas famílias nas tribos de maneira harmoniosa, não deixando faltar alimentos para os parentes, divertindo-se nas visitas a outras comunidades em períodos de festa. Vivem como seus pais e avós, com algumas facilidades da vida contemporânea, como as vacinas, a espingarda, o anzol e o facão. "Liderar uma comunidade para nós é função que passa de pai para filho, de modo que a ambição política não faz parte de nossa cultura", explica o padre João Francisco Moreno Teixeira, um índio. João Francisco Teixeira é seu nome de batismo cristão. O nome indígena do sacerdote, dado pelo pajé da sua tribo, é Nharroli. "Talvez por retirarmos tudo o que precisamos da natureza, não desejamos mais do que o necessário, e entre nós não existe propriedade privada." Teixeira deixou sua aldeia, distante doze horas do centro de São Gabriel, em voadeira barco movido a motor de popa para completar o 1o e o 2o grau na cidade. Fez teologia em Manaus e voltou para sua comunidade, tornando-se um importante líder local.Embora num primeiro momento a doutrina da Igreja possa parecer antagônica aos hábitos indígenas, o padre garante que viu no cristianismo um meio de reafirmar sua cultura. "A solidariedade e a partilha são valores que aprendemos naturalmente desde criança e estão na essência da mensagem pregada por Jesus Cristo", diz ele. Teixeira se esforça para traduzir o Evangelho para a língua local. Diz aos índios que trechos bíblicos servem de parábola da realidade do índio brasileiro. "Conto a história do povo judeu, que levou quarenta anos caminhando pelo deserto em busca da terra prometida", explica. "Estamos em estágio semelhante, lutando pela demarcação das áreas indígenas, sofrendo e passando por um período de provação.
" Tendo contribuído no passado para o extermínio da cultura dos índios, os padres salesianos de São Gabriel hoje convivem muito bem com o mundo indígena. O bispo Walter Ivan de Azevedo celebra missa aos sábados à tarde na casa do pajé Lauriano Freire Campos, índio tariana que "cura as doenças dos sonhos, sereias e botos, em nome do poder a ele dado por Jesus Cristo", visto por ele num sonho. Até um encontro entre pajés e benzedeiras foi organizado por freiras, para trocar informações sobre ervas medicinais. Instituição respeitada pelos médicos da cidade, os pajés já foram um problema na época em que os pacientes indígenas desistiam do tratamento convencional para apelar para os curandeiros da tribo. Atualmente, os doutores e os pajés conseguem desenvolver trabalhos paralelos com bons resultados. O índice de abandono do tratamento de tuberculose em São Gabriel é dos menores no Brasil: apenas 1,4%.
A cultura indígena reflete-se também na economia de São Gabriel. A principal atividade no município ainda é a agricultura de subsistência. Plantam-se mandioca, abacaxi, abacate, banana, limão e batata-doce. A alimentação é complementada com a caça e a pesca. A mais importante fonte de renda na cidade é o Exército, que emprega cerca de 1500 homens e paga uma folha de soldos que chega a 750.000 reais por mês, quase seis vezes maior que a do funcionalismo público. Mesmo não sendo uma potência econômica, São Gabriel conseguiu algo ambicionado pelo presidente Fernando Henrique para o resto do país: prima pelo social. As escolas atingem praticamente todos os povoados. São 10.000 alunos matriculados no 1o e 2o grau. Gersen José dos Santos Luciano, da tribo baniva, atual secretário de Educação do município, pretende promover uma revolução educacional em São Gabriel. Tendo estudado num colégio salesiano quando a cultura indígena ainda era considerada inferior, Luciano pretende mudar o calendário escolar, que será adaptado aos costumes e festas locais.
Também haverá mudança no conteúdo do programa de estudos. As cartilhas já estão sendo traduzidas para idiomas locais. Os novos livros ensinarão história, geografia, matemática e técnicas agrícolas no idioma de origem do índio, sem deixar de lado a língua portuguesa. A propriedade coletiva será prestigiada, assim como outros valores e mitos indígenas. "Acreditar que vivemos para enriquecer não faz parte de nossa realidade", diz Luciano. "Deve haver espaço e respeito a todas as formas de vida." Também no Exército as coisas são arrumadas para gente sem ambições.
No 5o Batalhão de Infantaria de Selva (BIS), responsável por resguardar a fronteira brasileira com a Colômbia e a Venezuela, os indígenas não têm patentes. São todos soldados que trabalham por alguns anos no Exército antes de voltar para suas comunidades. Dos 280 jovens incorporados ao serviço militar em 1995, cerca de 200 são índios. A maioria deles vem das regiões de fronteira, como Iauaretê, Querari, São Joaquim, Cucuí e Maturacá, bem distantes dos centros urbanos. O Exército tinha grande dificuldade de recrutar pessoal entre os rapazes urbanos da Amazônia. Eles sempre resistiram a ficar num batalhão no fim do mundo, fazendo exercícios na mata. A alternativa foi o recrutamento de forças locais. Os exercícios de sobrevivência na selva, que para militares comuns seriam um tormento, para os índios são como férias muitos chegam a engordar. Se por um lado estranham a hierarquia castrense, por outro apreciam o salário, de 530 reais, e o espírito guerreiro, um importante valor na cultura indígena. "Entrei no Exército para defender a minha aldeia", conta o índio Reinaldo Lourenço da Silva, da tribo curipaco, que vive em São Joaquim, na fronteira com a Colômbia. "Eles são ótimos soldados", garante o tenente-coronel Gimilson Marques da Silva, comandante do 5o BIS.
Para manter a ordem dentro dos limites de São Gabriel, o delegado e os vinte policiais da cidade não encontram problemas. Os crimes ali têm origem numa única pergunta, pronunciável em diversas línguas: "Shibiok saniã?", em tucano, "Coai toma pinga?", em ianomâmi, "Aputari canhuin?", no tronco tupi-guarani que lhes serve de língua comum. Ou, ainda, em bom português: "Quer tomar cachaça?" As brigas decorrentes dos pileques são responsáveis por 80% das ocorrências policiais. Na maioria das vezes o delegado manda os brigões para o bispo, que resolve o problema. Em São Gabriel não há assaltos. Furtos são poucos. "Nunca vi, aqui, alguém furtar por necessidade, mas sempre para comprar ou trocar algo por bebida", conta o delegado José Júlio Cesar Correia. Não existem bêbados jogados pela rua. Mas, quando os índios bebem, continuam bebendo assim como acontece em suas festas tribais, em que passam dias tomando caxiri, bebida fermentada, muito mais fraca e nutritiva que a cachaça, feita de cana-de-açúcar, pupunha, milho ou mandioca. Outro problema social em São Gabriel é o alto índice de jovens mães solteiras. Os médicos do Hospital Militar contam em média três casos mensais. De acordo com costumes tribais, quando menstrua, a jovem índia fica três dias isolada. Depois, não restam motivos para evitar a relação sexual ou o casamento com seus pretendentes. Não existe prostituição nem crianças abandonadas na cidade, apesar de a população ter quase dobrado nos últimos vinte anos. Segundo o IBGE, em São Gabriel da Cachoeira, entre 1970 e 1991, a população passou de 13500 para 23000 pessoas. Recentemente a saúde se tornou uma preocupação. São Gabriel é um dos campeões brasileiros em tuberculose: no ano passado foram registrados 89 casos e até agosto deste ano já surgiram outros 84. O motivo da propagação da doença é a desnutrição, que diminui a resistência do organismo. O solo e os rios da região não são bons para caça e pesca. A alimentação é à base de mandioca, rica em carboidratos, mas pobre em proteínas e vitaminas. Contribui ainda para a doença a mudança no estilo das residências indígenas. Antigamente as moradias, com teto de palha e grandes janelas, eram ventiladas. Agora, espalharam-se pelo lugar aquelas casas com teto de zinco ou amianto, muito mais quentes e favoráveis à proliferação de bactérias por falta de circulação do ar. Outra praga é a parasitose, os vermes intestinais. Por não existir tratamento de água e esgoto, ela ataca praticamente a população inteira, o que ajuda a agravar ainda mais seu estado de desnutrição. A cárie também é um problema geral. Métodos para estancar a propagação das verminoses chegam a esbarrar em traços culturais. Banheiros foram tentados nas aldeias, mas os índios, acostumados a usar os rios, achavam que a novidade acumulava insetos e era malcheirosa.
Índios formados por médicos, por um salário mínimo, começaram a percorrer os povoados de canoa, receitando chás, sementes de mamão e outras plantas medicinais contra os vermes. Ambrósio Arantes Viana, índio dessano, passa até uma semana remando pelos igarapés e registrando casos nas aldeias. Como o banheiro não é bem-aceito, ensina a enterrar as fezes e evitar as correntes de água. Para tornar o sistema eficiente, seriam necessários 200 homens na região, segundo organizadores do programa no Centro Saúde-Escola. Hoje existem 76. "Pelo menos tem o benzedor, que conhece as forças da natureza e dos espíritos, ajudando nosso trabalho", diz Viana. Lá, os espíritos têm muita força.

Veja, 24/12/1997, Especial Amazônia, p. 58-62

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