VOLTAR

Chico Mendes heroi que ainda desafia o Brasil

O Globo, Prosa & Verso, p.6
20 de Dez de 2003

CHICO MENDES, HERÓI QUE AINDA DESAFIA O BRASIL
Zuenir Ventura conta a história do assassinato e o legado do seringueiro Chico Mendes — Crime e Castigo, de Zuenir Ventura. Editora Companhia das Letras, Coleção Jornalismo Literário, 241 páginas. R$ 33,50Zuenir Ventura atirou no que viu e acertou no que não viu. Em janeiro de 1989, com gravador, máquina fotográfica, jeans, tênis bamba e bloco de notas em punho, ele foi a Rio Branco para escrever sobre o assassinato de Chico Mendes, seringueiro e ambientalista morto em dezembro de 1988. A idéia dos jornalistas Flavio Pinheiro e Marcos Sá Corrêa, que lhe confiaram a missão, era evitar um repórter de apaixonada militância ambiental e privilegiar um olhar menos engajado para contar o que se passava no Acre.O tiro saiu pela culatra. Ou melhor, o tiro que matou Chico Mendes, disparado por Darci Alves Pereira (ou, como querem alguns, por seu irmão Jardeir, vulgo Mineirinho), a mando de seu pai, o fazendeiro Darly Alves da Silva, em conluio com fazendeiros e líderes da UDR acreana, foi certeiro e acabou com a trajetória de um dos maiores líderes brasileiros. Mas o projétil disparado pelo olhar de Zuenir, assim como ajudou a clarear fatos ligados ao crime, transformou-se também numa importante peça de reflexão sobre eles.Chico Mendes alcançou projeção nacional e internacional ao perceber que a luta ambiental tinha mais abrangência do que a reivindicação por terras. Na Amazônia, o importante não era ser proprietário e cuidar mal da terra, mas fazer com que o maior número de pessoas possível pudesse usufruir de seus frutos sem destruir a cobertura vegetal. Daí a proposta das reservas extrativistas que proliferaram após a morte de Chico e daí também emerge uma visão ampla do homem que anunciou a própria morte, ao mesmo tempo em que abria caminhos para o futuro. Segundo Zuenir, o choque provocado no mundo, o sentimento de culpa do próprio país, em especial do governo por não ter feito nada para impedir o crime, a tomada de consciência da sociedade para com a questão ambiental, tudo isso acabou apressando conquistas, obrigando a se fazer depois de sua morte o que Chico não conseguiu que fosse feito enquanto vivia”.Mas, na Amazônia, onde tudo tem escala monumental e sonho e delírio caminham de mãos dadas, não se deve absolutizar. Aos avanços podem corresponder ou se seguir retrocessos. A impunidade continua e o próprio Darly, condenado junto com seu filho Darci a 19 anos de prisão, fugiu da cadeia, comprou novas terras enquanto esteve foragido, foi recapturado e hoje está em liberdade condicional, transitando entre Rio Branco e o Pará.No entanto, o Acre, ao menos, parece ter aprendido a lição. Com o governador Jorge Viana em seu segundo mandato, o diálogo parece ter substituído o confronto entre seringueiros, fazendeiros e índios e um zoneamento ecológico-econômico norteia a implantação de atividades ligadas à floresta. Percebendo que a capacidade de recuperação da natureza tem limites e que já existe tecnologia para lucrar sem depredar (um pólo moveleiro trabalha no estado com madeira certificada, cresce a produção de castanha, frutos e sementes nativas etc) os acreanos fazem seu caminho ao caminhar.O que isto tem a ver com Chico Mendes? Tudo, nos mostra este livro. Segundo Adair Longuini — o juiz que condenou os assassinos do líder seringueiro e um dos personagens que mais fascinou o autor — o legado de Chico foram bases éticas e morais, sólidas e definidas para seus seguidores”.A obra é dividida em três partes. Na primeira, estão as matérias publicadas no Jornal do Brasil” sobre o crime, nas quais Zuenir — que quando as escreveu tinha mais de 50 anos e passagens brilhantes por alguns dos principais jornais e revistas brasileiros, além de ter produzido um livro importante para o entendimento do país: 1968: o ano que não terminou” (Nova Fronteira) — se revela um repórter investigativo minucioso e oferece um painel vivo: policiais corruptos e honestos; empresários e políticos ambíguos; a bela viúva Ilzamar, cuja vida virou pelo avesso; um retrato impressionante da primeira mulher de Chico e dos principais atores do drama social e político, que teve como pano de fundo a maior floresta tropical do mundo. Por esta cobertura, ele recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo.Na segunda parte, o repórter volta ao local do crime dois anos depois para cobrir o julgamento dos assassinos. O tempo todo sabemos de que lado está Zuenir, que nos brinda com descrições de seus sentimentos (o nojo físico que sentia diante do fazendeiro Darly, o medo de cobra e de compactuar com assassinos). Apesar disto, inclui no relato todos os pontos de vista, desde aqueles que achavam Chico um ativista mal intencionado até quem o julga um herói.Um dos bons momentos do livro é quando, como numa tragédia grega, os dois contendores começam a se enfrentar. Muitos anos antes de sua morte, Chico Mendes costumava liderar empates”, ações pacíficas que impediam a derrubada da floresta. Uma delas aconteceu na fazenda Cachoeira, onde seringueiros e seringueiras impediram a entrada de Darly na fazenda. Vale a pena recordá-la:Eram cem seringueiros diante de cinqüenta policiais armados tentando garantir o desmatamento. De repente, de improviso, as mulheres e crianças do seringal começaram a cantar o Hino Nacional e os soldados se perfilaram em posição de sentido. O comandante da operação não viu outra saída senão suspender a derrubada”. Os empates acabaram e agora a floresta é garantida de outras formas.Na terceira parte, o narrador retorna, 15 anos depois, a um Acre renovado que exibe com orgulho progressos em cidadania e desenvolvimento sustentável. Mesmo aí, Zuenir não ignora que o desmatamento continua e garante que é preciso muito escrúpulo e espírito público para resistir à tentação do lucro fácil”.Enfim, nem o Brasil nem o Acre estão prontos e ambos têm pés de barro, como, aliás, os tinha Chico Mendes, que foi bígamo e não reconheceu em vida sua filha do primeiro casamento. Através dos meandros insondáveis do tempo e da conduta humana, tão sutis quanto a lentidão do rio Acre, esta filha se tornou uma militante engajada, enquanto Ilzamar, a segunda mulher, usou parte do dinheiro dos direitos da filmagem da vida de Chico para comprar uma pequena fazenda de pecuária, algo que, certamente, o marido não aprovaria. Também é preciso dizer que a matéria sobre as várias mulheres de Darly, o fazendeiro mandante do crime, tem admirável sabor antropológico e pode nos ajudar a entender costumes que não são exceções na nossa sociedade.Enfim, Zuenir não julga ninguém neste livro: informa com precisão e aprofunda seu olhar carregado de emocionada humanidade.ELIAS FAJARDO é chefe de redação do programa Globo Ecologia

CHICO MENDES: ZUENIR VENTURA CONTA O LEGADO DO SERINGUEIRO 6

EU ME LEMBREI DE OUTRA FRASE DE CHICO EM QUE ELE DIZIA
que, além desse trabalho de conscientização, contava apenas com duas armas: a pressão internacional e a pressão da sociedade brasileira. A primeira, ele conseguira de maneira absolutamente genial. Em janeiro de 1987, Chico conseguiu que uma comissão da ONU viesse ao Acre observar a luta dos seringueiros contra o desmatamento dos fazendeiros. Os visitantes ficaram chocados, e mais ainda quando ouviram de Chico a informação de que aquilo era o resultado dos projetos financiados pelos bancos internacionais”.
Trecho de Chico Mendes — Crime e Castigo”, de Zuenir Ventura

O Globo, 20/12/2003, p. 6

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.