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A chapada dos fósseis roubados

OESP, Vida, p. A21-22
16 de Jul de 2006

A chapada dos fósseis roubados
Retirados por moradores de Araripe, no Nordeste, são vendidos por atravessadores a museus no exterior

Cristina Amorim

É segunda-feira, nem 11 horas. O centro de Santana do Cariri (CE) está lotado. Na lateral do Museu de Paleontologia, três rapazes abordam a reportagem do Estado. "Quer comprar fóssil? Eu tenho", fala baixo Paulinho da Anita, como o rapaz alto e magro é conhecido na cidade. Seu colega, Edmar, dá a ficha: uma piaba inteira por R$ 20, retirada ali mesmo, perto da cidade.

Edmar e Paulo sabem identificar a pedra que tem um fóssil dentro: os nódulos amarelados, formados pelo acúmulo do calcário em volta dos restos do animal, são os premiados, pois preservam o espécime em três dimensões.

A negociação a céu aberto é corriqueira com turistas. Geralmente são ofertados peixes e insetos, os dois grupos mais comuns na Bacia Sedimentar do Araripe, entre os Estados de Ceará, Pernambuco e Piauí.

O lugar, com 11 mil quilômetros quadrados, conta uma história de 110 milhões de anos. Na época, o Araripe era uma laguna povoada por muitos peixes, insetos e répteis variados, de dinossauros a pterossauros. Tal preservação e abundância são vistas em poucos lugares do planeta.

Ossos de dinossauro e pterossauros são mais difíceis de se encontrar, mas não impossíveis. Merecem um preço especial: "Vendi um osso uma vez por R$ 800 prum atravessador. Acho que ele vendeu por R$ 19 mil. Se eu não vendo para ele, ou tento vender direto, me denuncia para a polícia", diz Edmar. "É melhor mesmo vender para um atravessador. Ele sabe para quem passar."

As ruas estão lotadas. Paulo diz ter um tubarão. Um policial militar aparece na esquina.

"Vocês pegam o carro e descem a rua." Lá Edmar tira um pacote da cintura. É um Cladocyclus envolto em papel alumínio. Paulo se aproxima com uma peça de quase 1 metro nos braços embrulhada em um saco de náilon. "Tubarão" é como os locais chamam o Vinctifer, peixe predador que vivia ali no período Cretáceo. Pede R$ 100, menos de R$ 1 para cada milhão de anos do bicho.

Ele recoloca a peça no pacote e esconde no batente duma casa. Alguns segundos depois, três policiais militares aparecem. Todos são levados para a delegacia e, horas depois, encaminhados para a sede da Polícia Federal em Juazeiro do Norte (CE).

A comercialização de fósseis é crime federal. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a ação daquela segunda-feira estava longe de coibir o tráfico - Paulinho da Anita fugiu e Edmar foi liberado quando comprovou ser portador de uma deficiência física, sem que um inquérito fosse instaurado.

O vendedor é parte da fatia mais simples da população, a única que se preocupa com a coação policial. Ela forma o elo frágil de uma cadeia de contrabandistas que faz a alegria do mercado internacional de fósseis. "Caçadores de pedra", atravessadores, vendedores e compradores mantêm a retirada indiscriminada.

PROPRIEDADE INTELECTUAL
Em Nova Olinda (CE), cidade vizinha à Santana do Cariri, a reportagem flagrou o paleontólogo David Martill, da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra, em busca de fósseis para comprar. É quase uma atividade extracurricular à pesquisa geológica que conduz na região com um grupo de estudantes. "Seus fósseis estão aí, doutor. Quer dar uma olhada agora?", diz o vendedor.

O paleontólogo sabe que a prática é proibida no País, crime previsto na Constituição como espoliação do patrimônio da União. Contudo, a legislação permite interpretações diferentes e a pena, de seis meses a três anos de prisão, é leve e dificilmente aplicada com rigor. "Ocorre a condenação, a prisão, não", diz a procuradora federal Ládia Albuquerque.

No ano passado, uma decisão judicial beneficiou a artesã Urânia Gusmão Corradini em São Paulo e abriu um precedente em benefício do comércio. Apesar da acusação de venda de fósseis, o juiz Márcio Rached Millani concluiu que o material não pertencia ao patrimônio nacional. O texto com a decisão foi distribuído e exposto em casas do Araripe.

O Brasil também segue uma convenção da Unesco que proíbe a importação e exportação de bens culturais e históricos, entre eles os paleontológicos. Tanto a Grã-Bretanha de Martill quanto os principais destinos das peças retiradas do Araripe - Alemanha, Japão e Estados Unidos - não ratificaram o tratado.

Museus e colecionadores compram as peças por milhares de dólares e fazem ouvidos moucos aos pedidos das nações roubadas para que não incentivem o comércio ilegal. "Para os cientistas, não importa de onde vem o material. Eles têm o objetivo de saber a verdade científica da peça, não como ela chegou ao museu", diz Martill. O que tem menor valor científico cai em sites especializados.

Martill espera que haja a descriminação da venda, até para servir como fonte de renda para a população local, para os Paulinhos e Edmares empobrecidos e dependentes da lavoura e da retirada de calcário. A nata (plantas, peixes, insetos não descritos, tartarugas e crocodilomorfos e ossos de dinossauros e pterossauros) seria dividida pela comunidade paleontológica internacional. Na prática, a equipe com mais dinheiro e melhores contatos ganharia.

Para ele, os paleontólogos brasileiros não têm capacidade intelectual e financeira de estudar a diversidade do Araripe de forma apropriada. "Há uma curva ascendente de qualidade no Brasil, mas a única razão para que se saiba alguma coisa sobre a história da bacia é a venda (para estrangeiros)." Martill publica artigos científicos baseados em fósseis brasileiros com certa freqüência.

O paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que há dezenas de teses só de mestrado produzidas no Brasil tendo o Araripe como tema. "Martill é um expoente de um grupo de instituições que fazem o saque cultural", afirma. Segundo ele, a preocupação não é científica mas econômica. "O fóssil serve para captar recursos em réplicas, direitos de reprodução da imagem, laboratórios e projetos pessoais."

Rotina feita de reconhecer, coletar e vender
A caçada de 'pedra de peixe' ainda é realidade e rende até R$ 30, complementando orçamento de famílias

CRISTINA AMORIM, ENVIADA ESPECIAL

Todos os moradores de Jamacaru, distrito de Missão Velha (CE), lembram do padre Neri Feitosa com carinho. Mais de 30 anos atrás, ele comandava a paróquia do lugar, pródiga em fósseis como boa parte das cidades inseridas na Bacia Sedimentar do Araripe.

O padre era o maior benfeitor do distrito: ajudou a pavimentar ruas, arranjava remédios e comandava, com mão rígida, um abarrotado museu de paleontologia. Alimentado por seus alunos, que saíam com o padre para "caçar pedra de peixe" duas vezes por semana, o lugar chegou a reunir 5 mil fósseis com valor científico. Os nódulos de calcário eram cuidadosamente rachados no meio pelo próprio padre. "O museu tinha peixe, tartaruga, cobra", lembra o agricultor José Antonio de Freitas, que participou das excursões até os 14 anos.

Décadas depois, ele olha para baixo ao contar o final triste da história: a polícia lacrou o museu nos anos 1970, o que não impediu o desaparecimento gradual das peças. "Sumiu tudo. Ninguém sabe onde foi parar." O padre foi transferido na mesma época para outra paróquia.

O mistério de Jamacaru é parte agora do imaginário popular dos moradores do Araripe, e componente da vida de quem nasceu e vive lá. Desde criança eles aprendem a reconhecer, coletar e vender. Os adultos sabem que é proibido e falam com medo da polícia, com a cautela de quem não pretende se meter em encrencas.

O receio é reflexo de algumas ações que a Polícia Federal conduziu na região. Contudo, o delegado Jonas Viana Duarte sabe que a retirada continua e numa quantidade que sua equipe, formada por 22 pessoas, não dá conta. Além de crimes contra o patrimônio da União, em que o tráfico de fósseis se encaixa, a delegacia investiga casos de tráfico de drogas e seres humanos, fraudes a órgãos públicos, crimes eleitorais e exploração sexual. "Houve uma redução, mas os policiais não conseguem eliminar o crime", admite.

RECURSO FINITO
João (nome fictício), pai de quatro filhos e trabalhador em uma mineradora de calcário, desistiu da atividade para complementar a renda mensal, que varia de R$ 200 a R$ 300 - cada fóssil descoberto nas lâminas da pedra durante a extração vale entre R$ 1 e R$ 30.

Com sorte, achava impressões que rendiam mais, quiçá algumas centenas de reais - nada que mude sua vida simples e com recursos financeiros escassos.

Foi sondado duas vezes por policiais. "Tirei muito, mas a coisa é bastante complicada pro pobre. Minha palavra não vale nada." Hoje, o que encontra repassa para a Universidade Regional de Cariri, em Crato (CE) - vale mais a pena, diz João, pois recebe roupas e cestas básicas doadas por estudantes e pesquisadores.

Quem vende se cerca de cuidados e meias-verdades. O roceiro Pedro Alvo diz não mexer mais com "pedra de peixe". Mas basta uma hora de caçada na mata para que a aptidão, moldada em 50 anos de prática, retorne. Nenhum pesquisador de fora conhece a geografia local como ele.

Fala com orgulho de um painel único que montou para um antigo patrão: fósseis recolhidos nas redondezas fazem as vezes de peixes pintados. Um trabalho que dá orgulho à família simples do caseiro, seu Francisco Nicodemus, que não sabe da importância histórica do que está na parede.

Alvo deixa, escondido no capim, um nódulo de calcário com 40 centímetro para buscar mais tarde, quando estiver desacompanhado. Talvez consiga uma peça de R$ 100. Para quem vive em uma casa de um dormitório na periferia da cidade de Porteiras (CE), é dinheiro de grande valia.

O Ministério Público tenta conscientizar a população. Mas a própria procuradora federal Ládia Albuquerque admite que mudar a mentalidade dos moradores não é fácil. "Eles não vêem a atividade como criminosa ou prejudicial à região."

A venda de fósseis legalizada existe em países como os Estados Unidos. Lá, você pode comprar de trilobitas (artrópodes pré-históricos) a ossos de dinossauro, porém apenas de espécies descritas e escarafunchadas pelos paleontólogos. Os sítios que possam render material inédito para a ciência são protegidos e fiscalizados.

O paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acha que os fósseis podem ser fonte de riqueza sem os comercializar. Eles serviriam como atrativo para turistas - projeto que a Unesco tenta viabilizar com a formação de GeoParks, centros de grande relevância geológica, no Araripe.

Não se sabe se os fósseis farão parte do futuro da chapada. Os nódulos de calcário que rolavam morro abaixo com as chuvas começam a rarear. Os atuais locais de exploração de calcário laminado, de onde brotam atualmente milhares de fósseis, podem coincidir com o local de morte dos animais há 115 milhões de anos. Mais cedo ou mais tarde eles acabam.

Quando o sertão era mar

A Bacia Sedimentar do Araripe, com cerca de 11 mil quilômetros quadrados, guarda nos fósseis um registro de como era a vida ali no período Cretáceo.

Há 133 milhões de anos, América do Sul e África - que formavam um supercontinente chamado Gondwana - começaram a se separar, formando o Oceano Atlântico. Durante esse processo, lagunas profundas se formaram e diversas espécies de animais habitavam a região. À medida que morriam, eles se depositavam no fundo mole da laguna - pobre em oxigênio e outros seres que se alimentam de carniça, o que facilitou a preservação.

Um grupo de camadas de sedimentos, conhecido como Formação Santana, é rico em fósseis. Ele é subdividido em três unidades, chamados membros. O Crato, constituído pelo calcário laminado, guarda registros de 115 milhões de anos; o Ipubi, acima, de onde se extrai a maioria do gesso usado no País, representa um trecho intermediário; e o Romualdo, membro mais superior, é rico em nódulos de calcário, que preservam fósseis de 110 milhões de anos em três dimensões.

Com a movimentação tectônica, o mar se retraiu e toda a bacia foi erguida - e com ela, um pedaço do Cretáceo brasileiro.

OESP, 16/07/2006, Vida, p. A21-22

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