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Cautela e caldo de galinha

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
13 de Jun de 2003

Cautela e caldo de galinha

Washington Novaes

O governo federal decidiu retomar os estudos de impacto ambiental para a construção da mega-hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu - anuncia-se (O Globo, 31/5). Embora a notícia diga que esses estudos obedecerão às recomendações do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, é uma decisão que, como recomendavam os antigos, precisa ser cercada de muita cautela e de todo o caldo de galinha possível.
O estudo de impacto ambiental já foi embargado pela Justiça Federal, a pedido do Ministério Público, por haver sido entregue sem licitação à Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Pará (Fadesp), a mesma que fez idêntico trabalho para a Hidrovia Araguaia-Tocantins e o viu rejeitado pelo próprio Ibama e por órgãos ambientais dos Estados, além de demolido por um estudo independente.
Mas não é só. Belo Monte é o novo nome para o projeto da antiga usina de Kararaô, que acabou posto de lado depois que, em 1989, para protestar contra a sua construção, a índia caiapó Tuíra encostou um facão no pescoço de um diretor da Eletronorte.
Talvez fosse útil que, antes de tomar decisões, o governo federal mandasse alguém reler um estudo feito em 1992, para o Banco Mundial, por três conceituados Ph.Ds., Robert Goodland, Anastácio Juras e Rajendra Pashauri, este último hoje presidente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas. Chama-se Can hydro-reservoirs in tropical moist forest be environmentally sustainable?
Os três autores começam relembrando que, até o final da década de 80, os megaprojetos nessa área eram feitos só por engenheiros, de início, e depois incorporaram os economistas. Mas aos poucos as organizações ambientalistas tiveram de ser ouvidas e já no início da década de 90 foi preciso incorporar também as populações das áreas atingidas por inundações. A partir daí, disseminada a discussão, não foi mais possível levá-los adiante sem consenso nacional. E é do que se trata agora.
Pensam os autores que um estudo para determinar a sustentabilidade de um projeto dessa natureza pode levar até 20 anos. E precisa obedecer a muitos critérios. O primeiro deles é saber qual será a geração de energia por área inundada (e o Brasil já construiu várias insustentáveis por esse padrão, como Balbina, Samuel e Sobradinho, todas com menos de 10 kw por hectare inundado). No caso de Belo Monte, o reservatório foi reduzido de 1.200 para 400 km2. Mas não se sabe ao certo durante quantos meses do ano a potência de 11.182 MW será efetiva, qual a potência real na estiagem (há quem diga que talvez nenhuma turbina possa funcionar nesse período). "Se o ecossistema a ser inundado é floresta primária", dizem os três Ph.Ds., "a proporção precisa ser muito alta."
Um segundo critério está relacionado com a extinção de espécies - e isso exige um inventário cuidadoso, a verificação da existência no local de espécies só encontráveis ali. O terceiro, o estudo do tempo de retenção das águas pelo reservatório: precisa ser de dias ou semanas, não pode ser de meses, porque prejudica o regime hidrológico, a vida das espécies. E o reservatório não deve contribuir para a emissão de gases do efeito estufa, com o apodrecimento da flora submersa (como em Tucuruí).
Depois, não prejudicar "minorias étnicas vulneráveis na área", assim como populações assentadas - até porque reassentá-las é sempre muito problemático. Estudar também quem são os beneficiários do projeto: "Nos reservatórios em florestas tropicais usados para produzir alumínio os beneficiários são os consumidores dos países industrializados." E verificar se não haverá disseminação de doenças veiculadas pela água.
A barragem precisa também não prejudicar os rios tributários, não modificar o regime de inundações. Na verdade, acham os autores , "do ponto de vista ambiental, as barragens deveriam concentrar-se em rios já modificados" (não é o caso do Xingu); "o represamento dos últimos rios que correm livremente numa região é ainda mais difícil de justificar". E a abertura de estradas para facilitar a construção e/ou a operação "pode abrir áreas significativas para colonização e desflorestamento".
Quem comparar as recomendações desse estudo com o que está escrito em outro documento - A polêmica usina de Belo Monte, produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA) - ficará ainda mais preocupado. Começa este dizendo que "Belo Monte é um cavalo de Tróia, porque outras barragens (no Xingu) virão depois, modificando totalmente e para pior a vida na região". Prejudicará nove povos indígenas que têm reservas na área, mais os caiapós, além de muitas populações tradicionais ali assentadas.
São muitos os questionamentos . Exemplos: todo o ciclo ecológico na região será afetado, inclusive o regime hidrológico; nem de longe será criado o número de empregos prometidos (25 mil diretos, 75 mil indiretos - no máximo, serão 5 mil, numa cidade que já tem 20 mil desempregados); o maior beneficiário será o setor de alumínio, que já consome 8% da energia gerada no País e cria 70 vezes menos empregos que a indústria de alimentos e bebidas ou 40 vezes menos que a indústria têxtil; o custo da energia gerada está muito subestimado (seria duas vezes e meia maior), assim como os custos da implantação, que ainda precisam incluir a linha de transmissão (mais US$ 2 bilhões).
O documento do ISA enumera ainda alternativas propostas pelo professor Célio Berman, um especialista na área:
Reduzir as atuais perdas no sistema elétrico brasileiro, em torno de 15%, para níveis próximos do padrão internacional (6%) - para economizar o equivalente a uma usina de 6.500 MW; repotencializar usinas com mais de 20 anos; dar prioridade a usinas eólicas, à co-geração a partir da biomassa e às pequenas hidrelétricas.
A essas recomendações se somam as das ONGs, que incluem programas de conservação de energia e eficiência no seu uso, prioridade para a parcela da população ainda sem energia e, principalmente, participação da sociedade nas decisões.
Na verdade, este último é o grande teste que agora está diante do governo.
Após os descalabros revelados pela chamada "crise energética" - frutos de decisões em que a sociedade não piou, mas paga -, está mais do que na hora de mudar de caminho.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 13/06/2003, Espaço Aberto, p. A2

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