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Carne ilegal em terra de índio

O Globo, Economia, p. 38-39
14 de Nov de 2010

Carne ilegal em terra de índio

Liana Melo
Enviada especial

A cena se repete duas vezes ao dia. A primeira antes do pôr do sol; a segunda, ao entardecer.
Os anciões da terra indígena Marãiwatsede chegam devagar, agrupam-se em forma de arco, acendem seus cachimbos. Eles são a autoridade máxima entre os xavantes. A reunião ocorre sempre no centro da aldeia, que fica a 150km de São Félix do Araguaia, no Norte do Mato Grosso. O assunto nestes encontros varia conforme a ocasião, mas o idioma é sempre o mesmo: o xavante. Em Marãiwatsede, a tentativa de preservar as tradições esbarra numa lógica econômica perversa: a relação intrínseca entre a pecuária, a soja e a destruição da floresta. Essa combinação transformou a terra dos xavantes no exemplo mais emblemático da contaminação da cadeia produtiva da pecuária e da soja, ambas expoentes do agronegócio no mundo.
A luta dos xavantes contra os fazendeiros se arrasta desde 1998, quando a terra indígena foi homologada. É uma extensão de 165 mil hectares de terra (ou 1.650 quilômetros quadrados), o que representa uma área superior a do município de São Paulo (1.523 quilômetros quadrados). Só que 90% dela estão ocupados ilegalmente. O Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (Funai) identificaram 68 fazendas em Marãiwatsede.
Apenas 11,56% são cadastradas e têm CNPJ acessível. Praticadas ilegalmente dentro da terra dos índios, a pecuária e a soja já desmataram 45% da mata nativa, segundo levantamento do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).
Frigoríficos continuam comprando 'carne suja'
O Grupo JBS-Friboi, maior empresa na área de alimentos do mundo, já teve "carne suja" na sua cadeia produtiva. Só em outubro de 2009 é que as empresas líderes, incluindo Marfrig e Minerva, passaram a rastrear a carne. Em julho deste ano, ficou pronto o primeiro relatório de monitoramento, quando os três grandes do setor excluíram 221 fazendas. Só no Mato Grosso, o JBS tirou da lista de fornecedores 17 propriedades, das quais cinco em terras indígenas, entre elas Marãiwatsede.
- O volume de gado adquirido de fazendas suspensas representa 2,8% de sua capacidade mensal de abate na região - calcula Angela Garcia, da área de Meio Ambiente e Sustentabilidade do JBS.
Como JBS, Marfrig e Minerva são, segundo o Greenpeace, responsáveis por 36% do abate feito na Amazônia Legal, isto significa que ainda resta enquadrar 64% dos frigoríficos do país.
- Os frigoríficos continuam se alimentando de carne suja. São empresas que vendem seus produtos para os consumidores, por meio de supermercados que ainda não limparam suas prateleiras de passivos ambientais e sociais - denuncia Márcio Artrine, da Campanha da Amazônia do Greenpeace.
Soja também pressiona terra indígena no Mato Grosso
Depois de apontar no relatório "A Farra do Boi na Amazônia", em julho de 2009, a indústria da pecuária na Amazônia como o maior vetor de desmatamento do mundo, o Greenpeace continua pressionando, só que agora para enquadrar o varejo. Por enquanto, apenas o Walmart tirou do papel o compromisso assumido de não comprar mais carne ilegal, mas o percentual de vendas é irrisório.
- Por conta de todo o desafio da pecuária em relação ao desmatamento da Amazônia, a carne é o primeiro item do programa "Qualidade Selecionada, Origem Garantida" - diz Christianne Urioste, diretora de Sustentabilidade do WalMart, explicando que o grupo fez uma parceria com o Marfrig para lançar a marca Campeiro, a primeira com rastreabilidade.
Segundo o cacique da aldeia Marãiwatsede, Damião Paradzané, a fazenda Rio Preto seria uma das principais incentivadoras da criação de gado dentro da área indígena.
A propriedade está localizada no limite da terra dos xavantes, escoa 120 mil cabeças de gado por ano e aparece na lista do Ministério da Justiça e da Funai. O GLOBO tentou contato com o dono da fazenda, sem sucesso.
Um dos maiores infratores ambientais já identificado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mora no Mato Grosso e tem fazenda na terra indígena Marãiwatsede. Os Penasso, da fazenda Colombo, constam da lista de punições com autos de infração por desmatamento ilegal. Recentemente eles foram alvo da Operação Soja Pirata.
Numa área contínua de 3,6 mil hectares de terra foram apreendidas 14 mil toneladas de soja. A apreensão seria um caso isolado, não fosse o fato de 30 das 78 terras indígenas do Mato Grosso estarem localizadas em municípios com mais de dez mil hectares de soja.
- A lógica da apreensão é o carro-chefe das nossas operações, não mais as multas - explica Bruno Barbosa, coordenador de Fiscalização do Ibama, comentando que as multas isoladamente não vinham mais surtindo efeito .
- Os Penasso foram multados em R$ 100 milhões, mas o efeito mais devastador é o confisco do produto, porque inibe outros infratores.
Diagnóstico do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da ONG Repórter Brasil constatou que a soja é a "principal causa do desmatamento no cerrado e da degradação ambiental nas cabeceiras do rios que drenam as terras indígenas, colocando em risco à segurança alimentar dos índios".
- Degradação, erosão, empobrecimento e desertificação do solo, contaminação de cursos d'água e disseminação das queimadas são alguns dos efeitos colaterais da sojicultura na terra indígena - avalia Verena Glass, autora do estudo "Impactos da soja sobre Terras Indígenas no estado do Mato Grosso", da Repórter Brasil.

No lugar de arco e flecha, armas de fogo

Os xavantes da terra indígena Marãiwatsede vivem armados. Eles não portam arco e flecha, mas sim armas de fogo. É que, na avaliação do cacique Damião Paradzané, os índios da sua aldeia vivem em guerra. Os inimigos seriam pecuaristas e sojicultores que impedem, há 12 anos, que os xavantes tenham direito à área, ainda que a posse dela tenha sido garantida em 1998, quando houve a homologação da terra indígena.
- O branco é o que mais desmata aqui. Todos os anos pedimos para ele parar com a destruição, mas ele diz que a mata é dele e vai derrubar - denuncia Paradzané, que domina o idioma dos inimigos, mas não abre mão de manter a tradição dos xavantes, pintando os cabelos com urucum, ornando as orelhas com osso de onça parda e usando gravata cerimonial de algodão. A reportagem é de Liana Melo e publicada pelo jornal O Globo, 14-11-2010.
Os "guerreiros", como Paradzané costuma chamar os índios que fazem a guarda da aldeia 24 horas por dia, são os responsáveis por impedir a entrada de estranhos. Munidos de armas de fogo, eles ficam acampados na entrada da aldeia. As marcas de bala na placa identificando a terra indígena são a prova da hostilidade entre os xavantes e os fazendeiros.
Apesar de viverem acuados na própria terra, já que 90% do seu território foi tomado ilegalmente por fazendeiros, sojicultores e posseiros, os xavantes lutam para manter as tradições. Os mais velhos são a autoridade máxima na tribo.
Os meninos ao completarem 10 anos passam por um período de reclusão de cinco anos na casa dos solteiros. É lá, afastados dos pais, que o menino xavante aprende a caçar, a pescar e a lutar.
- Só falamos xavante na aldeia e na escola. O português começa a ser ensinado no ensino médio - resume Paradzané.

Até prefeito tem fazenda na área dos xavantes

O prefeito de São Félix do Araguaia, Filemon Gomes Costa Limoeiro (PPS/MT), é dono de uma fazenda de 250 hectares, onde cria suas 400 cabeças de gado. Dublê de político e fazendeiro, Limoeiro garante que não se enquadra na categoria de invasor, já que, afirma ele, sua propriedade não está dentro da terra indígena Marãiwatsede, localizada entre os municípios de São Félix do Araguaia e Alto da Boa Vista, Norte do Mato Grosso. Mas seu nome consta da lista de 68 fazendas, que, segundo o Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (Funai), estariam sim dentro da terra dos xavantes.
"Estamos brigando e acabamos de recorrer da decisão da Justiça Federal de Cuiabá, que considerou os índios os donos da terra" - critica Limoeiro, admitindo que não será fácil tirar os fazendeiros da área: "Porque todos nós vamos querer ser indenizados". A reportagem é de Liana Melo e publicada pelo jornal O Globo, 14-11-2010.
Disputa territorial remonta à década de 60
Três laudos antropológicos e 12 anos depois de homologada, a terra indígena Marãiwatsede virou alvo de uma guerra de liminares. Recentemente, a Justiça Federal do Mato Grosso decidiu pela retirada da população não indígena da área. Só que a disputa em torno da região é bem mais antiga e remonta à década de 1960. Foi quando a população xavante que vivia na área foi retirada de seu território por aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Os índios foram transferidos para o Sul do estado, onde estava a Missão Salesiana de São Marcos.
A remoção foi traumática. De uma população de 300 pessoas, 86 delas morreram, vítimas de sarampo. No lugar das aldeias dos xavantes instalou-se a fazenda Suiá-Missú, um megaprojeto agropecuário da família Ometto, que chegou a ser considerado o maior latifúndio do país. As terras acabaram vendidas para a estatal petrolífera italiana Agip, que, na época da Eco-92, prometeu devolver as terras para os índios. A promessa, no entanto, nunca saiu do papel. Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou a homologação da terra indígena Marãiwatsede.
'Pilhagem dos recursos naturais', diz bispo
O bispo de São Félix do Araguaia, dom Leonardo Ulrrich Steiner - substituto de dom Pedro Casaldágila, que transferiuse para a região nos anos 70 e é adepto da Teologia da Libertação - vem acompanhando a saga dos xavantes. Ele está convencido de que, parte do milagre agropecuário ocorrido no Mato Grosso se deu por "pilhagem dos recursos naturais e de comunidades tradicionais":
- Como o desmatamento acaba afugentando os animais, os índios estão mudando seus hábitos alimentares. Temos acompanhado a situação e é impressionante como os índices de diabetes e hipertensão estão aumentando.
Hoje, a população de Marãiwatsede é de 900 pessoas, das quais 300 delas são crianças. O maior desejo dos xavantes é juntar os parentes, espalhados pelas 78 terras indígenas. Só que, para isso, é preciso que eles passem a ter direito a terra.

Corpo a Corpo
Inês Hargreaves
'Um exemplo de destruição'

A saga dos xavantes vem sendo acompanhada de perto pela indigenista Maria Inês Hargreaves . Ela espera que, ao fim da "batalha fundiária", os índios de Marãiwatsede vençam, como ocorreu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

O Globo: Como a senhora avalia a situação dos xavantes?

Maria Inês Hargreaves: Eles vivem confinados e estão sendo impedidos de reproduzirem-se física e culturalmente. Sabe como isso se chama? Genocídio.

A senhora poderia dar um exemplo mais concreto?

Maria Inês: Marãiwatsede ostenta um índice de mortalidade superior ao de todas as terras indígenas: 174 por mil. É um exemplo emblemático de destruição.

E se os índios perderem a briga judicial?

Maria Inês: Se eles perderem esta guerra, os xavantes vão deixar de vez de acreditar no estado brasileiro.

O Globo, 14/11/2010, Economia, p. 38-39

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