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Capital da soja e do algodão vive o seu inferno astral

OESP, Economia, p. B10
07 de Mai de 2006

Capital da soja e do algodão vive o seu inferno astral
Primavera do Leste, em Mato Grosso, é o exemplo crítico dos problemas agrícolas

Patrícia Campos Mello

Depois de 22 anos plantando soja, o agricultor Dimitri Kuzmin desistiu. Hoje, só tem mato na área onde ele cultivava 2.500 hectares de soja, na cidade de Primavera do Leste, em Mato Grosso. "Não agüentei dois anos de prejuízo, estava pagando para plantar", diz Kuzmin. "Agora, acho que vou tentar o garimpo ou vou emigrar para os Estados Unidos."
Kuzmin, descendente de russos que veio do Paraná, é um dos pioneiros de Primavera. Quando ele chegou aqui, em 1984, a cidade nem existia - só foi fundada dois anos depois.
Muitos desbravadores do Cerrado, como Kuzmin, estão abandonando a lavoura. Primavera do Leste murchou. Esta cidade a 230 quilômetros de Cuiabá, que foi chamada de Eldorado e capital da soja e do algodão dois anos atrás, está em estado de emergência. O desemprego atinge 25% da população - 15 mil dos 60 mil habitantes. Há placas de "Aluga-se" em toda a cidade. Desde janeiro, 60 empresas fecharam as portas.
Segundo dados do Serviço de Proteção ao Crédito de Primavera, um quinto da população (20%) está com o nome sujo na praça. "Estamos negativando 1.200 CPFs por mês, por causa de cheques sem fundo e parcelas atrasadas. Há dois anos, eram 300 por mês", conta Assioni Pinto, secretário-executivo do SPC da cidade.
Na fazenda São Roque, 5 dos 6 irmãos Coradini estão com o nome sujo. No tempo das vacas gordas, os gaúchos Coradinis aproveitaram para investir. Compraram três tratores e uma colheitadeira. Ampliaram o plantio de soja e compraram caminhonetes usadas.
Mas o dólar caiu, o frete e o diesel subiram, e sobrou a dívida de R$ 1 milhão do maquinário. A produtividade também caiu muito, por causa da praga da ferrugem asiática.
"Com a ferrugem, se bobear em 15 dias o produtor pode perder 50% da colheita", conta Jaime Coradini, que veio de Cruz Alta (RS) para desbravar Primavera em 1983. Neste ano, ele colheu 45 sacas de soja por hectare, o que é um bom nível de produtividade. Mas seu custo de produção é de 75 sacas por hectare. "Tenho um prejuízo de R$ 430 por hectare."
Os Coradinis puseram a fazenda à venda no ano passado. Mas não acham comprador. "Está todo mundo quebrado", diz Jaime. Eles reduziram a área plantada em 35%. A próxima safra, não sabem se vão plantar.
"Dois anos atrás, a gente se empolgou demais", diz o prefeito de Primavera, o paranaense Getúlio Gonçalves Viana (PFL). "Nós erramos aumentando a área plantada, comprando máquina, contratando gente." Há dois anos, a saca de soja valia US$ 15 e o dólar estava a R$ 3. O diesel custava R$ 1,20. Hoje, a saca é US$ 9, o dólar é R$ 2,10 e o diesel é R$ 2,20. O frete para Paranaguá equivalia a US$ 40 - hoje, chega a US$ 75.
"É um desastre", diz Gonçalves. A Expoprima, tradicional festa de Primavera, corre o risco de não se realizar. A arrecadação caiu 27% e a Prefeitura não tem verbas para a festa.
A área plantada da cidade já caiu muito - foi uma redução de 40% na lavoura de algodão (que hoje está em 45 mil hectares) e queda de 20% na área de soja (hoje em 200 mil hectares).
"Nesta safra, cai mais 40%", acredita o prefeito. "Não dá nem para acreditar que, dois anos atrás, as revistas e a TV diziam que aqui só havia os milionários da soja e do algodão; hoje, todo mundo que saiu nas reportagens está quebrado."
Enio Zanatta, sócio-proprietário da Zanatta Confecções, lembra da época em que não dava nem para andar dentro da sua loja, com tanta gente comprando. Havia uma explosão de crédito para o campo. "Fluía crédito para cá, havia vários incentivos do governo para os agricultores tomarem empréstimos para ampliar a área e comprar máquinas", conta. "Nós todos embarcamos na euforia de aumentar a área plantada, aumentar as exportações, gerar divisas para o País."
De fato, diz Zanatta, Mato Grosso se tornou um fenômeno do agronegócio em pouco mais de cinco anos. O Estado transformou-se no maior produtor de soja e algodão do Brasil. E engordou a balança comercial brasileira.Mas agora, sobraram as dívidas enormes da época de euforia.
A família paranaense Braun - Gertrudes, Ivo e seus filhos Djimmy e Thomas - chegaram a dar R$ 1 milhão à vista há dois anos, para comprar dois silos e uma secadora de soja. Financiaram só os R$ 200 mil que faltavam e agora não conseguem pagar as parcelas. "Nossa fazenda é familiar, não temos funcionários, e nem assim conseguimos pagar as contas", diz Ivo Braun.
"As pessoas me diziam: 'Nossa, você planta soja, está nadando em dinheiro, hein?' O que ligava de gerente de banco para mim em 2004, oferecendo financiamento...", lembra o produtor Marcos Mammana. "Hoje, se você entra num banco e diz que é agricultor, você é leproso."
COMÉRCIO
No ano em que completa seu vigésimo aniversário, Primavera do Leste é uma cidade triste. O comércio está parado, muita gente anda com ar preocupado nas ruas. A Mercomaq, loja de máquinas e insumos agrícolas,está às moscas. "Faz dois anos que não vendemos uma máquina", diz o proprietário, Valdeson dos Santos. "Só vendemos coisas menores." Nos tempos de bonança, ele vendia 40 plantadeiras por ano. Ele demitiu 8 de seus 14 funcionários.
Roberval Bolonhez, dono da revenda de veículos Primavel, da General Motors, acaba de se desfazer da bandeira. O salão está vazio, só há uma moto e um carro usado. Nenhum cliente. "Vamos alugar o salão para os caminhoneiros dormirem", brinca Bolonhez, com desgosto. Ele tinha duas concessionárias na região e se desfez de ambas. Agora, só vende carros usados. "Mas não sei até quando, continuo sem vender nada."
"Essa é a pior crise que já vi", diz o produtor paranaense Pedro Bravin, que chegou em Primavera em 1983. "É triste dizer isso, mas não sei se vou plantar este ano." Bravin colheu 51 sacas por hectare, uma produtividade muito alta. Nem assim conseguiu ter lucro.
Protesto de agricultores bloqueia estradas
Desde 18 de abril, agricultores de mais de 50 municípios estão bloqueando estradas. O movimento começou no Norte de Mato Grosso e foi batizado de Grito do Ipiranga, por causa da cidade onde se originou, Ipiranga do Norte. Eles reivindicam a renegociação das dívidas com juros mais baixos, redução da Cide, PIS e Cofins do óleo diesel, programa de combate à ferrugem asiática, alteração da política cambial, regulamentação do seguro agrícola e reforma da BR-163.
Segundo os agricultores, a renegociação das dívidas de R$ 15 bilhões com bancos oficiais, anunciada pelo governo, não resolve porque os juros são muito altos. As manifestações estão se ampliando e já chegaram a Mato Grosso do Sul, Bahia, Rondônia e Paraná. Caminhoneiros de vários Estados prometem aderir nesta semana.
Na sexta-feira, várias prefeituras de Mato Grosso fecharam as portas em solidariedade aos agricultores. Em Rondonópolis, uma das maiores vias de escoamento da safra de soja, os bloqueios causaram filas de caminhões de quase dez quilômetros na quarta-feira. Os produtores usam colheitadeiras para bloquear estradas e impedir a abertura de bancos e armazéns de grãos.
Os bloqueios das tradings ameaçam o cumprimento de contratos de exportação de soja do País. Os produtores estão barrando a saída de caminhões de soja de tradings como a Bunge, ADM e Cargill.

OESP, 07/05/2006, Economia, p. B10

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