VOLTAR

Canaviais e queimadas já desafiam Amazônia

OESP, Economia, p. B10
07 de Out de 2007

Canaviais e queimadas já desafiam Amazônia
Usina parceira da Coca-Cola tem 4 mil hectares de cana na floresta

Agnaldo Brito

A indústria sucroalcooleira, que assumiu a tarefa mundial de curar o planeta do 'vício do petróleo', continua a avançar rumo ao Norte. Nascida no planalto paulista e no Nordeste brasileiro, a cultura da cana já encontra fôlego para levar seus tentáculos para além da fronteira agrícola, no coração da maior floresta do mundo, a Amazônica. O plantio de cana para produção de açúcar e álcool, apesar de ainda modesto, recorre ao desmatamento e às queimadas e usa 65% da força manual para a colheita.

A cana desafia a Amazônia. Mais do que isso, a ousadia humana já encontrou formas de driblar a hostilidade do ambiente. Somado ao ciclo de prosperidade do álcool combustível no Brasil e no mundo, tem não só ressuscitado projetos do Proálcool como atraído dinheiro para novas usinas, tanto na gigante Amazônia Legal quanto na frágil e exuberante área do bioma amazônico, região que cobre cerca de 4% do planeta e de onde se conhece apenas 50% das espécies que ali vivem.

O tema é a mais nova batalha entre os integrantes do governo Lula. A definição de um zoneamento agroecológico que indique vocações no País no próximo ano pôs em choque o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. A pasta da Agricultura admite a produção de cana-de-açúcar em escala na Região Amazônica. A ministra reagiu e parece disposta a não ceder.

A velocidade dos investimentos em produção de cana e derivados na região está longe de ser equivalente aos programados para o Centro-Sul do Brasil, área que até o final do primeiro biênio da próxima década deverá receber US$ 17 bilhões, o suficiente para erguer 90 usinas de etanol.

Além de projetos no norte de Mato Grosso, a Região Amazônica tem planos de produção de álcool no Acre (que pode começar a operar em 2008 e alcançar 3 milhões de toneladas) e no Pará. Há dois novos projetos previstos para Roraima. Mas a prova de que a Amazônia, apesar de tudo, tem condições de produzir cana está em Presidente Figueiredo, 100 quilômetros ao norte de Manaus, localizada às margens da BR-174, que liga a capital do Amazonas a Boa Vista, capital de Roraima. A estrada, de piso novo, corta a mata fechada. O clima é úmido ao extremo, em alguns momentos acima de 80%.

A chuva é freqüente, principalmente a partir de agora. Mas quis a natureza que o céu desaguasse mais a partir de agosto. 'Este ano choveu demais. Os canaviais ficaram encharcados, não havia como colher. Teve dia que a usina ficou parada', diz Waltair Prata Carvalho, superintendente da Agropecuária Jayoro, em Presidente Figueiredo. Em toda a Amazônia, é o projeto que mais desafia o ambiente. E, apesar das apostas de que é um projeto inviável, tem conseguido sobreviver.

A reportagem do Estado esteve na área, uma imensidão de 59 mil hectares, 4 mil deles cobertos com cerca de 8 variedades de cana mais adaptadas às condições. 'Apesar de todas as dificuldades de se produzir cana na região, o projeto sobrevive, já encontrou o equilíbrio econômico-financeiro e precisa somente ampliar a escala para alcançar rentabilidade', assegura Carvalho.

A Jayoro é a parceira da Coca-Cola e só está de pé graças a um acordo assinado pelos controladores e a multinacional, em 1996. Todo o açúcar usado pela Recofarma, a indústria responsável pela produção da base da Coca-Cola, localizada em Manaus, sai da cana produzida naquelas glebas. Sai de lá também todo o extrato de guaraná que a companhia utiliza para a produção do refrigerante Kuat.

A Jayoro é a maior agroindústria do Amazonas. Emprega, neste momento, período de safra, 900 trabalhadores, tanto na usina quanto na colheita manual e mecânica da cana. A Jayoro tem cinco colhedoras de cana que rasgam os canaviais às margens da imensidão da floresta. 'Já vi onça, veado, todo o tipo de bicho nesse canavial', diz Osvaldino Santos de Oliveira, o operador de uma das máquinas há oito safras.

Criada no final da década de 70, a agroindústria surgiu no Proálcool. Tinha uma missão: levar o novo combustível para Manaus. O desconhecimento do ambiente, os custos elevados de manutenção e o declínio do programa no fim da década de 80 transformaram a Jayoro numa mera produtora de cachaça. O novo ciclo do etanol, referendado agora pelo mundo, reacendeu expectativas e pode, em pouco tempo, fazer a Jayoro elevar em mais de 50% a capacidade de produção, de 300 mil toneladas por ano para 450 mil.

'Não vamos derrubar uma árvore. Toda a produção de cana até agora ocorreu rigorosamente no mesmo espaço desmatado na década de 70. E assim continuará a ser', garante Arislando Prado, diretor da empresa contratada pela família Magid (controladora do projeto) para gerir o negócio.

A polêmica entre a ministra Marina Silva e seu colega Reinhold Stephanes reverberou na floresta. 'Essa discussão nos preocupa. Não podem proibir o plantio de cana aqui. Não vamos tomar nenhuma decisão sobre expansão sem saber o que o governo vai decidir sobre a cana na Amazônia', explica Prado.

Uma área de 2,6 mil hectares, no limite da imensa gleba da Jayoro, pode se tornar uma opção para o plano de expansão. Ali, um pasto degradado descansa sob os olhos da Amazônia. Como no resto do País, é uma área candidata a se tornar um canavial, apesar de o endereço ser 'bioma amazônico'.

Embrapa analisa áreas para produção de álcool

A palavra final sobre a viabilidade ou não do plantio de cana-de-açúcar na grande Região Amazônica será dada só no segundo semestre de 2008. Porém, há claras indicações de que o governo pode liberar a implantação de projetos agroindustriais em áreas da Amazônia, apesar da polêmica com o Ministério do Meio Ambiente.

'Há áreas de cerrado na Amazônia Legal. O bioma amazônico também não é uniforme. O zoneamento que será feito pelo governo dirá quais são as regiões proibidas e aquelas liberadas, e, dentre essas, informará onde há competitividade de produção de etanol para exportação ou para o atendimento de demandas locais', diz Frederico Durães, chefe-geral da Embrapa Agroenergia.

O trabalho começou pelas áreas tradicionais de produção de cana-de-açúcar, como em São Paulo, e nas áreas de expansão, como Triângulo Mineiro e Centro-Oeste. Nas áreas mais remotas, como a Amazônica, o estudo pretende - além de considerar as condições de solo e clima - dar ao setor privado informações sobre as condições econômicas e de logística da produção de cana ou de matérias-primas para a produção de biodiesel.

Enquanto na Região Amazônica cada hectare produz cerca de 80 toneladas de cana-de-açúcar (semelhante à Região Nordeste), no Sudeste essa produtividade chega a 110 toneladas. E cada tonelada rende no máximo 90 quilos de açúcar na Amazônia, enquanto no Sudeste são 135 quilos por tonelada. Com a produtividade reduzida e o transporte caro, resta como fator positivo apenas o custo da terra, cujo viabilidade de plantio não está definida.

MAPEAMENTO

Durães afirma que o governo está empenhado em, finalmente, criar um ordenamento agroecológico no Brasil a partir do qual o setor privado poderá se basear para tomar suas decisões de investimento. Por enquanto, isso não existe, e o que ocorre em todo o País é a escolha de áreas única e exclusivamente a critério de quem investe.

Daí a razão do embate entre os Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura. Se o zoneamento encontrar razões - nos mapas de clima e de solo e nas informações de satélites - de assegurar o acesso de áreas como a Amazônia para o plantio de cana, fica referendado qualquer empreendimento.

O WWF-Brasil, uma das organizações ambientalistas envolvidas na discussão sobre ordenamento da atividade da agroenergia no País, avalia que o problema não é exatamente elaborar um grande mapa do País no qual se definam as vocações locais, mas fazer com que esse imenso trabalho de fato subsidie a formação de uma política nacional para o setor e garanta a implementação.

A ONG também considera falsa a versão do setor sucroalcooleiro, de que é totalmente inviável a produção de cana em Região Amazônica. 'A questão, definitivamente, não é essa. O problema é mercadológico e logístico. Não acho que o avanço da cana na Região Amazônica vai ocorrer com vigor neste momento. Mas o problema, definitivamente, não está na inviabilidade agrícola. O que freia o avanço é uma mera questão mercadológica e logística. Se isso for equacionado, não tenho dúvida de que a região se tornará uma opção para a produção de álcool e de açúcar', diz Luiz Fernando Laranja, coordenador do Programa Agricultura e Meio Ambiente do WWF-Brasil.

Bóia-fria da selva poda 6 mil Kg ao dia
poda 6 mil Kg ao dia Nordestino enfrenta com fé a dura rotina

'Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo à sombra do onipotente descansará.' Francisco da Chagas Lima Costa é um homem de fé, e essas palavras, retiradas do Salmo 91, são como um alento. Brotam da garganta quando a lida insiste em dobrar esse sertanejo. Contra a dureza do trabalho, a força da palavra.

Francisco é cortador de cana, número 5.135 na Agropecuária Jayoro. Nunca imaginou haver cana na Amazônia. Um convite de trabalho o trouxe para o meio da floresta. A esposa e os filhos ficaram no Piauí. Há duas safras, os golpes nos pés de cana tentam matar a saudade. Uma fotografia da família é sua única recordação. E, à noite, após derrubar 6 toneladas de cana, algumas lágrimas brotam de repente.

Mas o sonho da cana na Amazônia também lhe dá esperanças. 'Volto no fim do ano, para trazer todo mundo para junto de mim.' São seis dias de barco até Belém. Depois, a viagem de ônibus. Francisco vai morar em Presidente Figueiredo, cidade mais ao norte do Amazonas, que um dia quis homenagear o último presidente militar do Brasil.

Com 25,4 mil Km2,o município é tão extenso quanto alguns países europeus. Fora a produção de cana, só existe o serviço público. 'Quem não trabalha aqui só pode trabalhar na prefeitura. Sem isso, tem de viver de roça', diz Antonio Pinto Araújo, um dos funcionários da Jayoro nascidos no Amazonas. 'Sonhava em trabalhar aqui', diz o fermentador. Ele quer ser técnico em destilação de álcool, o passo seguinte. Hoje, a função está a cargo de Jean Carlos Rossini, paulista de Matão que fez carreira em usina de açúcar. Começou em São Paulo, onde aprendeu tudo sobre etanol, e é um dos responsáveis por fazer a usina da Amazônia produzir este ano 7 milhões de litros de álcool hidratado.

OESP, 07/10/2007, Economia, p. B10

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.