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Burocracia trava plantio por quilombolas

Valor Econômico, Brasil, p. A2
Autor: CHIARETTI, Daniela
17 de Ago de 2018

Burocracia trava plantio por quilombolas

Por Daniela Chiaretti

Uma prática produtiva tradicional no Vale do Ribeira, sudeste de São Paulo, confronta quilombolas e esferas ambientais do governo estadual. As comunidades querem desmatar pequenas áreas para abrir a roça e fazer seus cultivos, mas os pedidos de licença têm que cumprir um complexo processo burocrático. Com isso atrasam os prazos de plantio, perdem-se sementes e produção, o alimento de famílias e biodiversidade.
O Vale do Ribeira concentra 21% do que resta da Mata Atlântica - é a área mais preservada do bioma no país. A região tem várias unidades de conservação e ali vivem quilombolas há mais de dois séculos. Na parte paulista do Vale do Ribeira são 48 comunidades, ou cerca de 700 famílias. Destes territórios, 26 são reconhecidos, e só seis, titulados.
A Lei da Mata Atlântica, de 2006, autoriza o corte de floresta apenas a populações tradicionais. O governo estadual exige autorizações. Mas a emissão de licenças, de acordo com os quilombolas, nunca chega no prazo adequado ao cultivo.
Os quilombolas que vivem ali desmataram pouco. Um grupo de estudos em Ecologia Humana de Florestas Neotropicais da Universidade de São Paulo mostrou que a cobertura vegetal onde vivem as comunidades foi alterada em 13% desde 1965.
"O sistema agrícola que adotam, que chamamos de agricultura itinerante, é uma inovação agrícola da humanidade e existe em todas as florestas tropicais do mundo", diz Cristina Adams, bióloga e coordenadora do grupo de ecologia humana. O sistema, para ser sustentável, pressupõe baixa densidade populacional e uso de tecnologias simples de plantio.
A "roça de coivara" dos quilombolas é assim. O agricultor derruba uma hectare de floresta. Espera secar e coloca fogo. O plantio é realizado por cinco anos. Depois disso a área é abandonada, e outra é aberta. Em dez anos a floresta cresceu.
As comunidades manejam grande diversidade de produtos agrícolas: são 16 tipos de milho e 30 de batata-doce, por exemplo, além de grande variedade de mandioca, arroz, feijão e abóbora.
Um dos problemas da produção, diz Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA), é que o grau de burocracia é gigante". Licenças que foram pedidas no início de 2017 só chegaram em junho de 2018.
Pesquisa do ISA em 14 comunidades identificou atraso nas licenças em 45% dos pedidos. Deste total, 76% deixaram de plantar. Isso significou 270 toneladas de produtos a menos, um grande impacto para as famílias.
Por isso, os quilombolas do Vale do Ribeira lançam hoje a campanha "Tá na hora da roça". A ideia é sensibilizar o governo para que libere a emissão de licenças no prazo adequado para o cultivo.
"O Vale do Ribeira, em São Paulo, concentra a maior quantidade de comunidades quilombolas do Estado e o maior trecho de Mata Atlântica preservada do Brasil. Isso não é coincidência", diz o vídeo da campanha. O evento deve reunir 300 quilombolas, antropólogos, representantes da Embrapa, do Iphan, da FAO e do BNDES, além de ambientalistas.
O processo de autorização para supressão de vegetação nas áreas quilombolas envolve três órgãos de governo - a Fundação Florestal, a Cetesb e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
A autorização depende da entrega de muitos documentos. A comunidade tem que comprovar domínio da área, caracterizar a vegetação a ser suprimida, georeferenciar. Embora técnicos dos órgãos se mobilizem para capacitar os quilombolas na operação, o cumprimento dos trâmites é complexo e demorado.
Os atrasos ocorrem durante a produção da papelada. "A Cetesb não recebeu nenhuma reclamação quanto a atrasos no atendimento a estes pedidos", informou a Secretaria do Meio Ambiente (SMA), em nota.
Mas técnicos da própria SMA reconhecem que é difícil para as comunidades cumprir todos os requisitos. Por isso foi criado um grupo de trabalho, dentro da Secretaria do Meio Ambiente, para facilitar o processo.

Valor Econômico, 17/08/2018, Brasil, p. A2

https://www.valor.com.br/brasil/5743265/burocracia-trava-plantio-por-qu…

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