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Brasil - Progresso, retrocesso e racismo

www.adital.com.br
Autor: Egon Dionísio Heck
29 de Dez de 2008

Parece que esses três conceitos andam de mãos dadas. Não é preciso fazer muito esforço para entender isso em regiões como, por exemplo, o território tradicional dos Kaiowá Guarani, no sul do Mato Grosso do Sul. E quando se pensa que o racismo, que é crime, começa a ser superado, ele aflora na fina flor da imprensa local, como é o caso do artigo do advogado criminalista e jornalista, Isaac Duarte de Barros Junior.

Progresso

"Esses agitadores índios, não é sem tempo, deveriam simplesmente ser tratados como cidadãos comuns. E nas nossas terras brasileira férteis, infelizmente isto não vem acontecendo, devido ao fato desses mesmos índios preferirem a confortável posição de viverem como tutelados em reservas indígenas, lugar onde na verdade podem permanecer praticando a vadiagem da caça e pesca, ou fazendo o que bem entendem com as riquezas naturais sem dar satisfações aos dirigentes máximos do país." (Isaac de Barros, in "Índios e retrocesso - O Progresso, Dourados, 27/12/08)

Franz Schwartz chega com seus dez filhos à região de florestas conhecida por Dourados. Vem a convite do Presidente Getulio Vargas, que, em plena segunda Guerra Mundial, quer estimular as fronteiras vivas, com gente confiável, fazer avançar a frente agropecuária. Recebe do governo uma colônia (25 hectares). Seu vizinho de lote é Pietro Sperandini. Ali vive há poucos meses, com seus 12 filhos, também vindos do Rio Grande do Sul. Já quase derrubaram a metade de sua colônia, onde criam umas cabeças de gado e plantam vários produtos agrícolas, basicamente para a alimentação. Não demorou e dois filhos do Franz casaram com duas filhas do Sperandini. Precisam de mais terra. Mas isso não era problema. Havia muita mata na região. Saíram caminhando em direção a Rio Brilhante. Eram terras boas cobertas de espessa Mata Atlântica. De repente uma surpresa. separaram-se com uns barracos. Curiosos e meio assustados se aproximaram. Eram índios. Falavam uma língua estranha. Mal conseguiram se comunicar, mais por gestos do que por palavras. Os índios (Kaiowá) mostravam-se gentis e receptivos. Preocupados a delegação dos colonos retornou a seus lotes. Em seguida procuraram o chefe dos índios (Serviço de Proteção aos Índios) na Reserva de Dourados. Pediram a ele que tomasse providências removendo aquela aldeia para o reserva de Dourados. No que foram atendidos. Depois foi só ir para o cartório e registrar a nova e conquistada fazenda em nome dos novos "proprietários". Meses depois, andando em outra direção, sempre em busca de novas e boas terras, os filhos de seu Pietro e Franz, fizeram incursões de vários quilômetros. Novamente deparam com uma aldeia de índios, exatamente na terra que pretendiam, na beira de um lindo riacho. Desta vez decidiram resolver o problema mais rapidamente. "Eu garanto a munição e a comida. Amanhã sairemos cedinho em direção da aldeia" disse João, filho mais velho de Pietro. Reuniram mais de duas dezenas de pessoas e partiram conforme combinado. Quando avistaram a aldeia, foi só combinar direitinho como fariam. Várias frentes chegariam ao mesmo tempo atirando sobre os barracos. Não houve a mínima resistência. Todo mundo (mais de uma centena de índios entre adultos e crianças) fugiu mata adentro. Aí foi fácil. Chegaram e botaram fogo em todos os barracos. O problema estava resolvido. Em pouco tempo a fazenda estava legalizada no cartório. Ficção virtual reveladora de um processo que se repetiu em quase todos as partes do Brasil e do mundo.

O caminho e a sorte do progresso estava traçado. Gente forte, branca, católica, com muito espírito desbravador, começou a povoar a região. Os índios e alguns remanescentes da guerra do Paraguai, "paraguaios, caboclos, foram sendo aos poucos incorporados ao novo sistema, ou expulsos para outras terras, ou confinados nas oito reservas indígenas que o Serviço de Proteção aos índios havia definido na região. Os machados e serras passaram a colocar por terra centenas e centenas de hectares de mata. Era preciso produzir. Mas para produzir precisava antes amansar a terra, acabar com a mata, incorporar mão-de-obra. Aos poucos o boi começou a dominar a paisagem, que de mata virou pastagem. Algumas décadas depois, surge a necessidade de expandir a produção agrícola, especialmente da soja. E a política sojeira se impôs. Aos poucos a floresta sobrevivente teve a mesma sorte da anterior, ou seja, passaria da vertical para a horizontal num ímpeto de devassa, articulando a fome das serrarias com o apetite insaciável do que se tornaria o atual agronegócio. Hoje apenas com um novo expoente, a cana, as usinas, o etanol.

Esse progresso tão ardorosamente defendido pelo sr. Isaac, sem dúvida, não deixa espaço para índios, quilombolas, sem terra, para outra estrutura fundiária que não a concentração da terra e riqueza na mão de uns poucos, ultimamente do grande capital multinacional.

Esse progresso endeusado na referida matéria é realmente o progresso que alimenta a mentalidade onde não cabe o diferente, o outro pensamento e modo de viver, como as culturas indígenas. Essa tem sido a base da feroz resistência ao reconhecimento das terras dos Kaiowá Guarani, durante todo esse ano de 2008.

Retrocesso

"o resto do nosso território nacional está correndo o risco de regredir e ser declarado uma terra de índios. O mais ridículo dessa retomada das terras, é o modus operandi que se faz de maneira truculenta e arbitrária. O principio reintegratório da bugrada, fundamenta suas bases reintegratórias nas ossadas dos cemitérios supostamente de índios"(Isaac em "Índios e retrocesso, idem)

Sempre quando os povos indígenas reivindicam seus direitos ao território, se apregoa essa falácia ridícula e absurda de que os índios vão querer todas as terras do país, de que vão inviabilizar Estados, regiões... Nada mais sabidamente falso com o qual se pretende encobrir uma mentalidade racista e preconceituosa, que em última instância quer negar aos povos indígenas seu direito de viver e ter suas terras reconhecidas.

Vejamos como o advogado criminalista e jornalista Isaac se refere aos índios da região "Acontecendo a exumação cadavérica, depois de periciada, imediatamente seus descendentes vivos se assenhoram das terras como verdadeiros vândalos, cobrando nelas os pedágios e matando passantes assim como faziam os ladrões assaltantes emboscados nas estradas do passado" . Quanta infâmia se atribuir aos índios como "vândalos", quando estes vivem em extrema necessidade, submetidos ao um processo de violência sem precedentes, expulsos de suas terras e jogados nos confinamentos ou à beira da estrada.

Sempre é bom identificar os vândalos que destruíram as florestas e a biodiversidade da região, envenenam a terra, poluem os rios, submetem populações inteiras à vil exploração, acumulam fortunas, vivem nababescamente em qualquer lugar do país ou do mundo.

Racismo

"Quanto a mim, sou daqueles que comungam com o mesmo pensamento, pois no século vinte e um, são bem poucos os indígenas que podem ser tipificados como selvagens. Portanto, a preservação de costumes que contrariem a modernidade é retrocesso e deve acabar. Quanto a uma civilização indígena que não deu certo e em detrimento disso foi conquistada pela inteligência cultural dos brancos, também é retrógrada a atitude de querer preservá-la..." (Isaac em "Índios e retrocesso, ibidem)

Trata-se de afirmação de racismo explícito, de intencionalidade etnocida e genocida. É desnecessário qualquer comentário.

Talvez seja realmente o momento de conhecer melhor a Constituição do Brasil, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração dos Direitos Indígenas, da Organização das Nações Unidas. E mais do que isso é urgente começarmos a construir um Brasil onde esse tipo de pensamento seja banido, onde a diversidade de povos e culturas seja reconhecido como uma riqueza e respeitado em toda sua sabedoria e beleza.

Um outro Brasil e mundo são possíveis, necessários e estão sendo construídos.

Vamos fazer um grande mutirão pelos direitos dos povos indígenas do mundo inteiro, no Fórum Social Mundial, que estará se realizando na Amazônia, em Belém, de 26 de janeiro a 1 de fevereiro.

Cimi MS
Jardim, 29 de dezembro de 2008

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