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Brasil - Marçal Guarani: A voz que não pode ser esquecida

Adital.com.br
Autor: Benedito Prezia
06 de Nov de 2007

Na abertura do I Seminário Sul-mato-grossense de Estudos Indigenistas, em Campo Grande, em abril de 1980, o grande antropólogo Darcy Ribeiro prestava uma homenagem ao igualmente grande Marçal de Souza, conhecido também como Marçal Tupãi, que três anos depois teria a voz silenciada por uma bala assassina: "Marçal, meu companheiro, meu colega intelectual!... Tenho um alto respeito por você, como meu colega. Eu não saúdo muita gente como colega, mas eu saúdo você, Marçal! Você é um momento de lucidez do seu povo e do povo brasileiro!"

A trajetória de Marçal

Marçal nasceu no dia 24 de dezembro de 1920, em Rincão Júlio, na região de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul. Como toda criança guarani, recebeu de Nhanderu, o grande Deus, nosso pai, o significativo nome Tupãi, o pequeno Tupã, o pequeno senhor do trovão. Mesmo deslocando-se constantemente, os guaranis nunca deixaram de viver em seu território tradicional, que abarcava o atual Paraguai, Sul e Sudeste da Bolívia, Norte da Argentina, Oeste do Uruguai e parte do Brasil, como Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O pai de Marçal devia trabalhar nos ervais da região de Ponta Porã, com outros guaranis. Em 1923, sua família mudou-se para Teykuê, no atual município de Caarapó, uns 50 quilômetros de Dourados. Picado por uma cobra, em 1926, Marçal foi levado ao Hospital Caiouá, da Missão Presbiteriana de Dourados, onde permaneceu vários meses em tratamento. Nessa época seus pais morreram e ele, com 6 anos, foi parar no orfanato indígena, o nhanderoga (nossa casa). Aos 12 anos, foi morar em Campo Grande, com uma família presbiteriana. Desse período não teve boas recordações. Completando 18 anos, foi viver com a família de um oficial do Exército, que estava se mudando para Recife, mas dois anos mais tarde, em 1940, estava de volta a Dourados. A educação presbiteriana marcou-o muito, sobretudo do ponto de vista religioso. Ao chegar do Nordeste, já era um pregador evangélico. Vendo suas capacidades, os dirigentes da missão o enviaram para o Instituto Bíblico Dr. Eduardo Lanide, em Patrocínio, MG, onde permaneceu por três anos. Ali, cresceu em ardor e eloqüência, encontrando no canto a maneira de dar vazão à sua índole religiosa. Chegou a gravar um disco, coisa rara na época. Voltando para Dourados, passou a visitar as aldeias. Nos cultos, sempre lia a Bíblia em guarani, tornando-se o grande intérprete dos pastores. Diante do quadro de miséria e de exploração, Marçal procurava dirigir mensagens de esperança, com teor evangélico, no qual a resignação ao mundo terrestre mau e a busca da perfeição pessoal pereciam ser as únicas saídas. Durante dez anos viveu a cultura ocidental e a vida evangélica mesclada com o seu guarani, sem muitos conflitos. Contudo, não deixava de guardar, no seu íntimo, a cultura tradicional. Formado pela Organização Mundial da Saúde tornou-se um competente auxiliar de enfermagem. Sua inteligência, bom senso e sabedoria inata fizeram com que, aos poucos, aquela alma de pregador fosse redescobrindo a realidade indígena e a cultura de seu povo. Marçal passou muitas informações aos pesquisadores e antropólogos e eles o ajudaram a retornar às suas raízes. Deu-se então o caminho da volta ao ser guarani. Em 1963, Marçal foi eleito (capitão) cacique da Reserva Indígena de Dourados.

Dedicou-se, então, a conscientizar seus parentes sobre as necessidades de preservar a própria cultura, estimulando os indígenas que viviam dispersos nas cidades e fazendas, a retornar à área indígena. Essa nova postura começou a incomodar os funcionários da Funai, órgão que com a ditadura militar, em 1964, passou do Ministério da Agricultura para o Ministério do Interior. Naquela altura, foi criado um serviço de informação indígena para controlar a presença de elementos estranhos nas áreas indígenas e autorizar a entrada de missionários. Devido à linha pastoral da Igreja Católica, as igrejas evangélicas passaram a receber mais apoio por parte do governo militar, pois tinham a mesma visão de integração rápida, tornando os indígenas cristãos, com o abandono da língua e das tradições.

Por sua prática conscientizadora, em 1972, Marçal foi afastado do cargo de capitão, passando a exercer apenas a função de atendente de enfermagem. Era uma maneira de diminuir sua influência. Por sua vez, Marçal afastou-se da Igreja presbiteriana, deixando de ser membro da Missão Evangélica Caiouá, a qual servira por 30 anos.

Voltou a Teykuê, onde passara sua primeira infância. Ali exerceu novamente suas funções de auxiliar de enfermagem. Em 1976, conheceu o CIMI, órgão empenhado em ajudar a organização indígena, apoiando assembléias de caciques e lideranças. Em abril de 1977, Marçal teve uma experiência que marcaria a sua vida, ao participar da 8ª Assembléia de Chefes Indígenas, nas ruínas de São Miguel das Missões, no RS. Ali, em 7 de fevereiro de 1756, o líder guarani Sepé Tiaraju e outros 1,2 mil guaranis foram mortos pelos exércitos português e espanhol. Aquele passado guerreiro deve ter dado muita inspiração para Marçal. Nessa Assembléia foi redigido um documento, apresentando os problemas que as comunidades indígenas enfrentavam e propondo algumas sugestões. Em 1978, foi criado, em Dourados, o CIMI - Regional Mato Grosso do Sul, tendo Marçal como assessor de saúde. Assim, o Conselho Indigenista Missionário torna-se o espaço que ele precisava para dar voz às reivindicações dos guaranis e caiouás. Entre 7 e 9 de junho de 1980, em Campo Grande, foi criada a União das Nações Indígenas - UNI. De 26 a 30 de junho, daquele ano, foi realizada em Brasília uma Assembléia com 54 líderes, de 25 povos de 14 Estados brasileiros, e um representante da nação shuar, do Equador. Essa Assembléia, além das discussões da nova organização indígena, preparou uma mensagem para ser lida ao papa João Paulo II, na sua primeira visita ao Brasil.

O clamor chega ao papa

O encontro com o papa inicialmente marcado para Brasília aconteceu em Manaus, Amazonas, no dia 10 de julho de 1980. Na ocasião, além de Lino Cordeiro, do povo marinha, falaram Terêncio Macuxi, Mário Juruna e Marçal. A voz do trovão fez-se ouvir: "Eu sou representante da grande tribo guarani, quando, nos primórdios, com o descobrimento desta pátria, nós éramos uma grande nação. E hoje, como representante desta nação, que vive à margem da chamada civilização, Santo Padre, não poderíamos nos calar pela sua visita ao país. (...) Somos uma nação subjugada pelos potentes (poderosos), uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não têm dado condições para a nossa sobrevivência. (...) Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, aquilo que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência neste grande Brasil, chamado um país cristão. (...) Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas (...). Nunca foi contada essa verdadeira história do nosso povo. Eu deixo aqui o meu apelo de 200 mil indígenas que habitam e lutam pela sua sobrevivência neste país tão grande e tão pequeno para nós".

O Brasil estava sob a ditadura militar sustentada pelos fazendeiros e industriais, com ostensivo apoio do governo dos Estados Unidos. Pouca gente imaginava que aquele franzino guarani, com um pouco mais de um metro e meio, banguela, pudesse, de improviso, sintetizar 500 anos de violência contra os povos indígenas. Por várias vezes, seu discurso foi interrompido pelo público que gritava: "João, João, João, o índio é nosso irmão".

Em 1980 Marçal deixou na reserva de Dourados sua esposa mestiça, dona Aristídia, com seus 10 filhos, dos quais três adotivos, indo viver à moda guarani junto aos caiouás, numa pequena área, em Campestre, no município de Antônio João, próximo à fronteira do Paraguai.

No dia 25 de novembro de 1983, numa sexta-feira à noite, ao abrir a porta a alguém que pedia remédio para o pai doente, dois indivíduos precipitaram-se sobre Marçal, descarregando o revólver Taurus, calibre 38, matando-o com cinco tiros, à queima-roupa.

Agora, após 24 anos de processo judicial, a Justiça pode decretar sua segunda morte, deixando impunes seus assassinos. Os acusados já foram inocentados em dois julgamentos na Justiça de Mato Grosso do Sul, agora o caso foi transferido para a Justiça Federal e o término do processo foi prorrogado para o próximo ano.

Se os homens públicos de nossa terra não forem capazes de fazer justiça e condenar seus assassinos, deverá o povo indígena não esquecer esta figura que não teve medo de enfrentar a morte por um ideal. Um pouco mais de um mês antes de morrer, declarou: "eu sou uma pessoa, marcada para morrer. Mas, por uma causa justa a gente morre! Tenho uma tristeza em minha vida: o fato de ser bastante idoso. Eu queria ser um moço bem novo, com todas as forças que tive em minha juventude. Mas gostaria de ter tido então essa consciência, esse amor que tenho em meu coração, agora, nessa idade. Mas levantarão outros que terão o mesmo idealismo e que continuarão o trabalho que hoje nós começamos. Isso eu deixo para vocês!"

Os povos guarani e caiouá tiveram e ainda têm momentos difíceis. A voz e a mensagem de Marçal não foram silenciadas com sua morte.

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