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BR-319, a rodovia fantasma da Amazônia

Valor Econômico, Brasil, p. A14
26 de Set de 2013

BR-319, a rodovia fantasma da Amazônia

Por André Borges
De Porto Velho (RO), Humaitá, Manicoré e Manaus (AM)

Com um candieiro na mão, João Joventino Cordeiro aparece na beira da estrada. É noite na Amazônia. Outra vez, faltou luz na região e não há previsão de quando ela voltará. A trilha da BR-319 é um breu só. Joventino abre as portas de sua casa de madeira para abrigar a reportagem do Valor. Cobra R$ 10 pela diária. O banho é no rio. Isolado na floresta, ele está feliz em receber os hóspedes. "Não é toda hora que alguém aparece por essas bandas", diz. Num passado remoto, a situação já foi bem diferente, uma época em que a BR-319 ainda não alimentava a fama de rodovia fantasma.
Concluída em 1973, a BR-319 rasgou o coração da Amazônia há 40 anos com o propósito de ligar as cidades de Manaus (AM) e Porto Velho (RO) e, dessa forma, acabar com o isolamento rodoviário do Estado do Amazonas. Nos primeiros anos de operação, foi plenamente transitável. Carros de passeio cruzavam seus 877 quilômetros em viagens de 10h, 12h. Havia linhas regulares de ônibus que operavam entre as capitais do Amazonas e Rondônia. Durou pouco. Nos anos seguintes, a rodovia entrou em um processo sem volta de decomposição total. Em 1988, 15 anos depois de concluída, já era considerada intransitável.
Hoje, a BR-319 expõe a dificuldade que o país tem enfrentado para colocar em prática um plano efetivo de desenvolvimento sustentável, expressão usada para carimbar qualquer projeto que se assente sobre a Amazônia, mas que, no caso da BR-319, não se converteu em resultado efetivo. O futuro dessa rodovia - e, consequentemente, de boa parte da Amazônia - está em xeque, e por isso se transformou em motivo de discórdia e indignação.
Para cerca de 500 mil pessoas que vivem nos 14 municípios localizados na área de influência da BR-319, e também para empresários, políticos e a população de Porto Velho e Manaus, que somam mais 2,5 milhões de pessoas, o que está em discussão é uma dívida social e o direito de ir e vir. Hoje, só é possível sair de Manaus por barco ou avião, uma limitação logística que também afeta o Estado de Roraima, que só tem estrada (BR-174) para chegar até a capital do Amazonas.
Ambientalistas, no entanto, afirmam que o plano de repavimentação é um erro que precisa ser definitivamente enterrado. Com o passar dos anos, a estrada teria perdido completamente sua razão de existir e, portanto, deve ser engolida de vez pela floresta.
Para checar a real situação da rodovia, a reportagem do Valor cruzou toda a extensão da BR-319. Foram três dias de viagem, em uma picape, para percorrer todo o traçado. Nos primeiros 200 km, a partir de Porto Velho, não há complicações. O asfalto está bem conservado. Chega-se com tranquilidade até Humaitá, cidade de 50 mil habitantes, já no Amazonas. No outro extremo da rodovia, nas proximidades de Manaus, cerca de 250 km de estrada também seguem em boas condições até alcançar a capital, no ponto de encontro dos rios Negro e Solimões, que formam o Amazonas. A complicação está no miolo da estrada.
Sem qualquer manutenção, o trecho central da rodovia, um traçado de 405 km, foi totalmente invadido pela mata. O clima úmido e as chuvas ajudaram a transformar a camada fina do asfalto em um farelo escuro e pedras que se misturaram ao barro. Crateras surgiram por todos os lados, pontes apodreceram. De rodovia federal, a BR-319 se converteu em rota proibida, destino procurado apenas por alguns poucos jipeiros e motoqueiros dispostos a se arriscar no meio da mata.
"Já tivemos uma rodovia. Hoje o que existe é uma lacuna entre as cidades e a população. Não temos sequer uma linha de ônibus. Prometeram que a estrada seria reconstruída até a Copa. Nada aconteceu", afirma Sávio Barbosa, secretário-executivo de Humaitá.
Toda discussão em torno da repavimentação da estrada passa pelo risco de expansão do desmatamento, além de uma possível imigração descontrolada para a Amazônia Central. O efeito imediato do retorno do asfalto, diz o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside, especialista na região, seria o avanço da grilagem de terras e a devastação da mata. O histórico de outras rodovias, afirma ele, já ensinou essa lição.
"É o que acontece sempre. Foi o que vimos, por exemplo, em boa parte do trecho asfaltado da BR-163, no Mato Grosso", diz Fearnside. A Cuiabá-Santarém, como é conhecida a BR-163, foi o que ajudou a deflagrar um processo conhecido como "espinha de peixe", no qual a estrada serve de via principal para abertura de uma sequência de picadas mata adentro, para extração ilegal de madeira.
O governo afirma que o efeito da pavimentação seria exatamente o oposto, porque permitiria a ação mais efetiva da fiscalização em toda a rodovia, inibindo a ação de madeireiros e ocupações irregulares. O renascimento da estrada permitiria ainda minimizar passivos ambientais que foram causados durante sua construção, entre 1968 e 1973. "São teorias que não se sustentam", diz Fearnside.
A estrada que hoje não passa de uma cicatriz no meio da Amazônia já ostentou a imagem de ícone de desenvolvimento, no período do governo militar conhecido como "milagre econômico". Sua história cruza com as de outras rodovias que se espalharam pela região Norte. No início da década de 70, nascia a Transamazônica (BR-230) para cortar a Amazônia de leste a oeste e chegar ao litoral do país. A partir do Mato Grosso, avançava rumo ao Norte a rodovia Cuiabá-Santarém, alcançando o Pará. Um tratamento especial, no entanto, estava reservado para BR-319.
O plano dos militares previa que todas as rodovias abertas na região seriam inicialmente construídas apenas como estradas de terra. Deveriam permanecer assim durante anos, até que o crescimento do tráfego viesse a justificar a necessidade da pavimentação. Decidiu-se, porém, que na BR-319 seria diferente. A estrada não precisaria esperar tanto. Imediatamente após a abertura na mata, preparava-se o trecho e lançava-se o asfalto. A obstinação em pavimentar a rodovia era tanta que, para que as obras não parassem em nenhum momento, seguindo adiante mesmo durante a estação chuvosa, foram usadas lonas de plástico para proteger o asfalto ainda fresco.
Tanta determinação em entregar a estrada pavimentada se prestava como um tipo de compensação ao Estado do Amazonas, por conta de outros investimentos pesados que os militares já tinham destinado ao Estado vizinho. O Pará, além de ser dono do maior trecho da Transamazônica e de seus projetos de colonização, ganhava uma linha direta com o Mato Grosso, com a abertura da BR-163.
Belém também havia ficado com a sede da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), atraindo projetos pecuários para a região. A pavimentação da BR-319, portanto, foi defendida como peça fundamental para Manaus, que também passaria a sediar a Zona Franca. Hoje, tudo o que é produzido na Zona Franca é escoado por via aérea ou pelo rio Amazonas, até chegar a Belém. A partir dali, segue de caminhão pelas rodovias do país.
Em Manaus, na plataforma da balsa que faz a travessia dos rios Negro e Solimões, início da BR-319, uma faixa foi pendurada para registrar o protesto contra o isolamento rodoviário da região. "Chega de ficarmos restritos ao nosso Estado. Queremos ganhar o resto do país. BR-319 já".
Em sua casa na beira da rodovia, em Manicoré, João Joventino diz que já não aguarda mais o retorno da pavimentação. "O povo daqui foi esquecido, vai morrer esperando esse asfalto", diz. "A gente vai virando fantasma também." (Colaborou Ruy Baron)

À beira da estrada e fora dos mapas, Realidade sobrevive ao abandono e ainda cresce

Por De Realidade (AM)

Não se chega facilmente a Realidade. É um caminho difícil, seu endereço não está nos mapas oficiais. O retrato mais bem acabado do abandono e da completa ausência do poder público ao longo da BR-319 está localizado a 300 km de Porto Velho. Erguida no meio da floresta, já dentro do Estado do Amazonas, a vila Realidade expõe as consequências da anarquia fundiária que ainda reina em boa parte do Norte do país.
Há quatro anos, a reportagem do Valor visitou a região. Realidade era um amontoado de poucas casas, um assentamento de trabalhadores sem-terra que começava a se formar. De lá para cá, a situação da BR-319 só piorou, mas a vila parece te ignorado as dificuldades. Realidade, que está dentro do território de Humaitá, tem hoje cerca de 1,5 mil casas e mais de 3 mil habitantes, todos vivendo em situação irregular. Ainda assim, a vila ganhou sua primeira escola em 2007, onde hoje estudam 350 crianças. Um ônibus velho e enferrujado percorre as ruas mais afastadas, num raio de até 15 km, para buscar os alunos. O posto de saúde chegou em 2010. Na saída da vila, um pequeno posto de combustível também foi instalado. De resto, tudo é precário. Não há policiamento, internet ou telefonia celular. Quatro orelhões funcionam precariamente. A energia cai quase toda semana e, não raramente, leva dias para ser religada. Durante a reportagem, Realidade ficou no escuro.
"Está vendo? É assim o tempo todo. Dizem que a luz é para todos, mas para gente, é só de vez em quando", diz Osmar Oliveira, que trabalha com o que pode para tentar erguer alguns quartos em seu quintal. Quatro anos atrás, Oliveira falou ao Valor. À época, dava início ao sonho de montar uma pousada, para quando o asfalto chegar. Apaixonado por música e saxofone, diz que tem tocado pouco o instrumento. O trabalho é duro. Em Humaitá, a 100 km da vila, Oliveira conseguiu comprar alguns sacos de cimento, que chegaram de caminhão. Areia e blocos, porém, já são mais difíceis, por conta do preço do frete. O jeito é improvisar. A areia é retirada do igaparé mais próximo. Os blocos de concreto são fabricados ali mesmo, numa máquina velha adquirida na cidade, e colocados para secar no quintal. "Faço uns 200 blocos por dia. Logo vou ter material para erguer outros quartos", diz ele.
Aos poucos, Realidade avança. Recentemente, a prefeitura de Humaitá enviou alguns computadores para que um laboratório de informática seja montado na escola. O problema é que a rede de energia da vila não suporta as máquinas ligadas. "Se a gente ligar, derruba a luz da vila toda", diz Domingos Sávio Coutinho, professor e diretor da escola. "Essa é a nossa situação. O governo precisa olhar para Realidade, para ver como é a que a vida funciona aqui", diz.
Outros povoados sobrevivem à beira da BR-319, como a vila São Sebastião, onde ainda funciona uma balsa para a travessia do rio Guapiaçu. "O povo já perdeu a esperança de que esse asfalto vai voltar, mas nossa vila vai crescendo", diz Raimundo Pereira dos Santos, há 33 anos na região.
No inverno amazônico, entre os meses de dezembro e maio, a situação se complica de vez na região. É o período das chuvas, que transforma a rodovia num lamaçal a perder de vista, entre crateras e pedregulhos de asfalto. Em janeiro e fevereiro deste ano, os moradores da vila Realidade ficaram completamente ilhados. O jeito foi aguardar um caminhão de maior porte que conseguisse vencer a estrada. (AB)

À noite, apesar dos buracos, trecho vira corredor para o transporte ilegal de madeira

Por De Humaitá, Realidade, Careiro Castanho e Manicoré (AM)

Basta anoitecer. Um atrás do outro, caminhões abarrotados de troncos de madeira surgem na via esburacada da BR-319. Passam lentos, de frente para as casas da vila Realidade. Motoristas mais experientes abrem mão dos faróis e seguem pela estrada orientados pela luz da lua. A operação discreta é a prova de que, com ou sem pavimentação, a BR-319 já se converteu em um corredor promissor para a ação de madeireiros.

No curso da estrada, clareiras continuam a ser abertas na mata, com dezenas de toras esparramadas pelo caminho, à espera de reboque. Queimadas também ocorrem em diversos trechos da floresta, ao longo dos 405 km da rodovia que estão em condições absolutamente precárias. No entorno da vila Realidade, a 100 km de Humaitá, quatro madeireiras estão em plena atividade. A derrubada de árvores é uma das principais atividades para o povoado isolado no meio da floresta. Para os padrões da região, é um trabalho de boa remuneração. Um madeireiro tem recebido cerca de R$ 1,8 mil por mês.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já chegou a fechar algumas madeireiras que atuavam irregularmente na região. Em abril do ano passado, foram apreendidos pelo instituto 3 mil metros cúbicos de madeira extraída ilegalmente entre os municípios cortados pela BR-319 e a Transamazônica (BR-230), rodovia que cruza a estrada Porto Velho-Manaus em Humaitá.

A preocupação ambiental é conter o avanço dos madeireiros em uma região que ainda não foi tão atingida pelo "arco de desmatamento", área localizada ao longo das margens sul e leste da floresta amazônica, onde estão os focos maiores de derrubada das árvores. Desde fevereiro, o Ibama realiza a Operação Onda Verde, com o apoio do Exército, no combate a crimes ambientais no norte do Mato Grosso e sul do Amazonas. No primeiro semestre do ano, o órgão emitiu R$ 242 milhões em multas, com quase 500 autos de infrações ambientais. Cerca de 55 mil hectares da floresta foram embargados.

Entre junho e agosto deste ano, aponta o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o total das áreas desmatadas ou degradadas na Amazônia chegou a 716 km2. Os dados são obtidos pelo Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), que ajuda a orientar a fiscalização na Amazônia Legal, área que corresponde a 60% do território nacional e que envolve nove Estados.

Com previsão de durar até o fim do ano, a Operação Onda Verde enviou fiscais ambientais para o norte de Rondônia, na região de Porto Velho, e para o sul do Amazonas, na área de Humaitá, onde passa o eixo da Transamazônica. Nesse trecho de 200 km de extensão, onde a BR-319 ainda é transitável, há concentração de alertas de desmatamento e de degradação, por conta de pressão agropecuária, grilagem de terra e assentamentos irregulares. (AB)

Valor Econômico, 26/09/2013, Brasil, p. A14

http://www.valor.com.br/brasil/3283828/br-319-rodovia-fantasma-da-amazo…

http://www.valor.com.br/brasil/3283830/beira-da-estrada-e-fora-dos-mapa…

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