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BR-163 testa efetividade prática do desenvolvimento sustentável

Carta Maior
05 de Ago de 2004

BR-163 testa efetividade prática do desenvolvimento sustentável

Governo federal funda marco ao estabelecer nova relação de diálogo com a sociedade civil no processo de elaboração de plano para a obra de asfaltamento da Cuiabá-Santarém (BR-163). Mas falta "mão-de-ferro" para regularização fundiária.

Maurício Hashizume

O conceito de desenvolvimento sustentável está na berlinda. Elaborado por um grupo de trabalho interministerial (GTI) formado por 14 ministérios e submetido a consultas públicas em três Estados, o ousado plano de políticas complementares à obra de asfaltamento da BR-163 (mais conhecida como Cuiabá-Santarém) está entrando em fase final. Enquanto isso, nesta sexta-feira (6), ocorre de forma paralela em Santarém-PA a última audiência pública para discussão do estudo de impacto ambiental e do relatório de impactos sobre o meio ambiente (EIA/Rima) para a licença prévia da licitação do empreendimento. Outras duas audiências foram realizadas nesta semana em Guarantã do Norte-MT (2) e em Novo Progresso-MT (4).

O processo de negociação do Plano de Desenvolvimento Sustentável para a Área de Influência da BR-163, que prevê uma série de medidas para minimizar o impacto socioambiental que serão provocados pela faixa de asfalto que cortará a Floresta Amazônica, funda um novo tipo de relação entre o Estado e a sociedade civil. Para Johannes Eck, subchefe-adjunto de Análise e Acompanhamento de Políticas do Ministério da Casa Civil, que coordenou o trabalho do GTI, o plano "é um desafio para todo o país". "Se tudo der certo, será sem dúvida um marco, uma coisa muito diferente do que já foi feito até hoje nas grandes obras de infra-estrutura", completa Eck, que recebeu a reportagem da Agência Carta Maior em uma sala de reuniões do Palácio do Planalto.

Ele destaca o investimento do Executivo federal no diálogo com governos estaduais e municipais, bem como com os diferentes segmentos da sociedade, de empresários a movimentos sociais. A cooperação será, segundo Eck, a chave para o sucesso do plano. Para a questão fundamental do ordenamento territorial, por exemplo, o governo federal conta com o investimento dos Estados em Zoneamento Econômico-Ecológicos (ZEEs) e com a elaboração, por parte dos municípios, de planos diretores.

Com relação às entidades não-governamentais, o subchefe da Casa Civil afirma ainda que o governo buscará atender as reivindicações. "Mas ainda não temos respostas para todos", emenda, ressaltando que além das políticas de caráter social e ambiental, o GTI recebeu contribuições do empresariado e de outros setores organizados da região. "A preocupação que ouvimos nas consultas é relativa ao tempo [calendário das ações]". Em nenhum momento, complementa Eck, a iniciativa do governo foi questionada em seu mérito.

De fato, as organizações da sociedade civil reconhecem que o processo já pode ser considerado um marco do ponto-de-vista do diálogo com o governo e da definição de um novo papel desses setores na construção de grandes obras. "Tem sido um aprendizado para reivindicação. Mas o que o governo realmente pode dar ainda é uma dúvida. O plano revela apenas a vontade de fazer diferente", pondera Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). É exatamente nesse descompasso entre as diretrizes e as ações concretas que a concepção de desenvolvimento sustentável que orienta o plano está colocada em xeque.

De acordo com a pesquisadora, o documento do governo carece de uma lista de prioridades traduzidas em ações concretas. "O plano apresenta a importância do combate à grilagem, mas não define exatamente quais são as ações previstas", observa. "Não dá para solucionar todos os problemas, mas pelo menos os mais urgentes". Na opinião de Ane, o governo deveria se concentrar - "em curto prazo e com mãos-de-ferro" - na regularização fundiária da região.

"Temos indicações de movimentação do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] em Santarém e Itaituba, no Pará. Não sabemos, porém, o quanto já foi feito, o que ainda será feito e dentro de quais prazos", conta a pesquisadora do Ipam. Para viabilizar esse trabalho de cadastramento territorial que é condição irrevogável para o conceito de desenvolvimento sustentável de, ela destaca a necessidade de dois tipos de aporte. O primeiro é material, estrutural, de recursos humanos. O segundo aporte que falta muito na ampla área de influência da BR-163 é institucional. "O cadastramento de terras por lá é caso de polícia", afirma, lembrando de relatos de funcionários do poder público que foram hostilizados até mesmo acompanhados de policiais. Acabar com o foco central dos conflitos, defende, deve ser a primeira iniciativa indicativa de mudança. "Sem resolver o problema fundiário, não há condições de se desenvolver nenhuma estrutura inovadora de produção local". Apenas 24% do território da Amazônia têm registro de propriedade privada, 29% são áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) e 47% compõem as áreas públicas ou devolutas.

Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA), segue a mesma linha da pesquisadora do Ipam. A despeito da expectativa positiva - "as diretrizes vão ao encontro dos pontos apresentados pelas organizações da sociedade civil" -, apenas o detalhamento das ações prometido pelo governo para o fim de outubro permitirá uma avaliação mais completa. "A situação na região já está pegando fogo", acrescenta a integrante da organização não-governamental (ONG) que participou das consulta em Brasília e em Guarantã do Norte-MT. Grilagem e violência no campo - mazelas características da região - ganham colorações mais reluzentes como resultado da migração e ocupação desordenada da terra impulsionada pela expectativa da pavimentação da estrada. "O governo precisa acelerar as ações emergenciais".

Para o governo, entretanto, as medidas estão sendo tomadas. Três são as frentes destacadas por Johannes Eck. A primeira consiste na integração das ações de rotina dos órgãos. As incursões de monitoramento e fiscalização do desmatamento da Amazônia estão sendo realizadas em conjunto pelo Incra, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), fiscais do Ministério do Trabalho e Forças Armadas. "Com o mesmo orçamento, a simples integração permite muito mais ações". A contratação de servidores por meio de concursos, reforçando a deficiência na área de recursos humanos, é apontada por ele como a segunda frente de atuação governamental. Para completar o tripé, o Executivo planeja um remanejamento interno de recursos orçamentários para canalizar verbas às prioridades do plano que testará o desenvolvimento sustentável por ocasião da obra da BR-163. Esta última frente inclui a previsão de dinheiro para o plano no Orçamento de 2005 e a revisão dentro do Plano Plurianual (PPA) 2004-2007.

O coordenador do GTI também destaca ações estruturais como programas específicos do Ministério da Saúde e do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento para atender a população local que vivem nos ambientes peculiares da Amazônia. "A demanda por serviços públicos vai explodir. A população das cidades da região está crescendo 10% ao ano".

Nesse contexto, Eck reconhece que o fundamental é garantir as ações básicas. "A regularização fundiária e ordenamento territorial já são desafios enormes. Se fizermos isso e aumentarmos a oferta de serviço público, será um grande avanço", admite. "O desafio é enorme e existem riscos".

Aberta pelos militares na década de 60, a Rodovia Cuiabá-Santarém tem um total de 1,765 mil km que atravessam 50 municípios dos Estados do Pará e Mato Grosso. Em sua área de influência, vivem hoje cerca de 1,5 milhão de pessoas. O trecho que será licitado vai de Rurópolis-MT até Nova Mutum-PA, tem extensão de aproximadamente 1 mil km. Na região são encontrados os biomas do Cerrado e da Floresta Amazônica e três bacias hidrográficas (Teles Pires/Tapajós, Xingu e Amazonas). A área tem riquezas naturais abundantes, das quais dependem populações tradicionais, urbanas, agricultores familiares e mais de 30 povos indígenas. Estima-se que só os investimentos nas obras que fazem parte da licitação exigirão algo próximo de R$ 1 bilhão. A área influenciada pela BR-163 discriminada no plano do governo federal compreende quase 1 milhão de km2, o equivalente a 11% do território nacional.
O representante do GTI promete mais agilidade daqui pra frente: "Reconhecemos o atraso, mas a demora de agora será superada. Como na inércia, quando as coisas começam a andar e ganham velocidade, a tendência é que a movimentação não pare". As obras estão previstas para começar em maio de 2005 e o governo promete realizar mais uma consulta final com organizações da sociedade civil em meados de outubro.

Carta Maior, 05/08/2004

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