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Botos resistem e povoam baía no sul fluminense

OESP, Vida, p. A28
11 de Mar de 2007

Botos resistem e povoam baía no sul fluminense
Entre 500 e 1.000 animais vivem em Sepetiba, apesar da pressão causada pela ocupação humana na área

Karine Rodrigues

Em cinco minutos de viagem, a surpresa. Sob o espelho d'água da Baía de Sepetiba, no sul fluminense, pequenos grupos de botos-cinza exibem-se timidamente. Mais 20 minutos de navegação e vem o espetáculo: dezenas deles, em distâncias variadas, formam uma espécie de cordão ao redor da lancha.

São tantos que é impossível segui-los. Só o olhar treinado do biólogo mineiro Leonardo Flach consegue acompanhar os movimentos dos golfinhos e até identificá-los. Depois de cinco anos de estudo na região, ele assegura ter descoberto a maior população de Sotalia guianensis do mundo, estimada entre 500 e 1.000 animais.

A experiência fez o biólogo criar uma adaptação para a máxima popular 'nem tudo que brilha é ouro'. 'Logo vamos vê-los em um número bem maior. É só ficar atento e lembrar que aqui tudo que brilha é boto', ensina, pouco tempo após o embarque. É um efeito produzido pela luz no dorso molhado dos animais: faíscas a distância revelam-se, de perto, golfinhos em evolução. Eles fazem um movimento curioso, emergindo simultaneamente para, logo depois, sumirem todos de uma vez.

Os pesquisadores acreditam que o movimento seja uma estratégia de caça, para atacar em conjunto os cardumes. A ação combinada é possível graças ao sistema acústico que permite saber a distância e o tamanho de um objeto.

Quando o olhar já acostumou com tanto golfinho, fica mais fácil fazer a pausa para a conversa. O título de maior população do mundo, por exemplo, precisa ser relativizado, já que a espécie S. guianensis é encontrada apenas em uma área restrita dos oceanos, que vai de Honduras, na América Central, até Santa Catarina. Além disso, as pesquisas de estimativas populacionais do boto-cinza ainda são raras.

Mas, ressalvas feitas, o título se mantém, e preocupa que o fenômeno ocorra justo na Baía de Sepetiba.

Criadouro natural para uma infinidade de espécies, a área, de cerca de 500 km2, vem sofrendo forte pressão do homem, reflexo da expansão do turismo e da indústria na região, alerta Flach. Lá está, por exemplo, o Porto de Itaguaí.

O biólogo ainda não sabe qual é o impacto causado pelas mudanças recentes, mas não deve tardar a descobrir, já que pretende acompanhar a espécie por muito tempo. O interesse surgiu ainda na graduação, ao conhecer pesquisadores que estudavam o boto-cinza no litoral fluminense. Como o pai morava próximo da Baía de Sepetiba, começou a fazer monitoramentos esporádicos, e prosseguiu no mestrado concluído na Pontifícia Universidade Católica de Minas, onde avaliou a população do mamífero.

CARACTERÍSTICAS

Até recentemente, acreditava-se que o boto-cinza encontrado na Amazônia, o Sotalia fluviatilis, e o golfinho que vive no hábitat marinho eram idênticos, idéia derrubada por meio de análises do crânio e do DNA. Apesar da diferença, ambos vivem igualmente em grupo e preferem ficar a distância, ao contrário da espécie nariz-de-garrafa, muito mais amigável.

Embora não cheguem até a proa da lancha, os guianenses não resistem às ondulações feitas pela embarcação. 'Eles gostam de surfar na onda', conta o biólogo. Evoluem, pulam, giram, deixando à mostra o ventre de colorações branco e rosa.

Para contabilizar a quantidade de animais na Baía de Sepetiba, Flach usou o método científico mais adotado em estudos semelhantes, constituído por uma amostragem por estimativa visual. A área é dividida em setores, que, por sua vez, são seccionados em linhas, onde são registrados animais até 90o de ambos os lados da embarcação, com auxílio de um sistema de posicionamento por satélite.

DISTRIBUIÇÃO

Com a mulher, a também bióloga Patrícia Amaral Flach, ele percorreu rotas, contou golfinhos e, com uma equação matemática e um programa de computador, fez o cálculo, considerando ainda distâncias percorridas e o tamanho da região.

Foi assim que constatou a fidelidade dos animais à região, onde alimentam-se, descansam e procriam. Eles se movimentam, durante o ano todo, em grandes grupos, de até 100 a 300 indivíduos. O dado também causou surpresa, já que isso é comum apenas em alto-mar, não na região costeira. 'Eles usam toda a área da baía. Já contei uma distância de 2 km entre o primeiro e o último indivíduo de tanto animal que tem', diz. Uma hipótese para a ocorrência de grandes agrupamentos é a facilidade para a caça.

Em uma segunda etapa do estudo, ainda não concluída, Flach está adotando uma outra metodologia científica para descobrir se a população está aumentando ou diminuindo.

Por meio de um procedimento conhecido como foto-identificação, o biólogo registrou as nadadeiras dorsais dos animais. Elas funcionam como uma impressão digital. Embora sejam lisas quando o golfinho nasce, podem apresentar feridas e cicatrizes ao longo da vida, fazendo com que ele seja diferenciado pelas marcas. 'Já bati mais de 10 mil fotos', diz o biólogo.

Flach mantém o projeto com o patrocínio da MBR, empresa recentemente incorporada pela Companhia Vale do Rio Doce, que tem na região o Terminal Marítimo da Ilha Guaíba e a Companhia Portuária da Baía de Sepetiba, por onde a empresa exporta minério de ferro.

Também faz parte do estudo um programa de educação ambiental. O objetivo é fazer com que a população e principalmente os pescadores passem a ver o boto-cinza não apenas de uma forma neutra, como ocorre hoje, mas como uma espécie que requer todo o cuidado.

A espécie

Nome científico: Sotalia guianensis

Tamanho: É um dos menores representantes da família Delphinidae. Mede entre 1,80 e 2,10 metros de comprimento. É a mais comum do litoral brasileiro

Coloração: Tem cor cinza escuro no dorso e branco rosado no ventre

Expectativa de vida: Vive até 30 anos de idade

Gestação: Dura 12 meses e o período de amamentação se prolonga por um ano

Alimentação preferencial: sardinha, parati e robalo

Riscos: É uma espécie sob grande pressão antrópica (causada pela ocupação humana na área), segundo o Plano de Ação dos Mamíferos Aquáticos do Brasil, divulgado em 2001 pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)

Incidência: Ocupa o Atlântico de Honduras, na América Central, até Santa Catarina. Em Sepetiba, vivem entre 500 e 1.000 animais

Poluição da água gera doenças em animais

Espécie enfrenta problema com pesca industrial, que é proibida, mas não fiscalizada; captura pode levar à morte
A presença do boto-cinza pode indicar as boas condições de um ecossistema, já que ele está no topo da cadeia alimentar. Porém, é importante saber que a espécie é também insistente: enquanto houver alimentos, permanece no mesmo ambiente, apesar da poluição.

Prova disso é a existência de cerca de 70 golfinhos na Baía de Guanabara, onde o nível de degradação é alarmante. 'Hoje eles não sofrem grandes riscos em Sepetiba, mas, se houver abuso das atividades humanas, isso vai causar um impacto não só neles, mas em todo o ecossistema da região', alerta Leonardo Flach, recordando que, no passado, também havia Sotalia guianenses em abundância na Baía de Guanabara.

Se não causa uma expulsão imediata da população, a poluição não tarda a gerar problemas reprodutivos e doenças variadas nos animais.

Na Baía de Sepetiba, atualmente, ela ainda não é o maior problema, e sim a ação dos atuneiros e dos barcos de pesca artesanais, diz o biólogo. Não só pelas capturas acidentais, quando os animais se machucam ou acabam morrendo nas redes, como pelo eventual desequilíbrio do ecossistema, causado pela pesca desordenada.

A pesca industrial está proibida dentro da baía, mas, assegura o biólogo, vem ocorrendo de forma sistemática por falta de fiscalização.

PEGO POR ENGANO

Não por coincidência, o biólogo tem encontrado animais machucados com uma freqüência cada vez maior.

Em quase cinco horas de viagem pelas águas da Baía de Sepetiba, a equipe de reportagem do Estado deparou-se com quatro barcos de pesca, de tamanhos variados. 'O pescador diz que o boto-cinza chora como criança quando fica preso na rede', conta o biólogo.

Como o golfinho não tem uma carne apreciada, é solto ou, quando morre preso à rede de pesca, jogado de volta à baía. Segundo ele, a quantidade de indivíduos mortos também tem aumentado. Em 2005, foram encontrados 13. No ano passado, 16.

Para o biólogo Salvatore Siciliano, do Departamento de Endemias da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a situação dos Sotalia guianenses não é lá muito confortável, pois habitam a zona costeira, que é a mais degradada pela ação do homem. 'Temos observado que a saúde deles não vai muito bem. Isso se manifesta por problemas variados na pele, contaminações bacteriana e viral, e alterações ósseas', afirmou.

OUTRA ÉPOCA

Siciliano conta que até o fim da década de 1960 as pessoas relatavam a existência de grandes quantidades de botos na Baía de Guanabara.

'Quando a gente percebe, às vezes já é tarde demais', diz o biólogo. Ele considera que, embora regiões como a da Baía de Sepetiba tornem-se, inevitavelmente, alvo de forte pressão antrópica, há mecanismos para tentar evitar que os erros cometidos com a Baía de Guanabara voltem a ocorrer.

'O baiji, golfinho que habitava o Rio Yang Tsé, na China, foi considerado extinto. Isso é triste. Precisamos fazer com que isso não se repita aqui', alerta.

OESP, 11/03/2007, Vida, p. A28

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