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Biopirataria: crime e paranóia

OESP, Vida, p. A26
07 de Mai de 2006

Biopirataria: crime e paranóia
Na falta de definição legal, infrações burocráticas e pesquisas legítimas são rotuladas como atividade criminosa

Herton Escobar

Um biólogo retornando de uma expedição na Amazônia com mais de cem macacos e outros mamíferos empalhados na bagagem. Um pesquisador do Instituto Butantã enviando uma espécie de invertebrado pelo correio para seu amigo cientista na Alemanha. Estudantes de Biologia do interior de Minas despachando centenas de aranhas e escorpiões vivos para a Europa.
Exemplos clássicos de biopirataria? Pode parecer que sim, mas há controvérsias.
Todas são histórias de apreensões feitas pelo Ibama nas últimas semanas, a partir da fiscalização em aeroportos e em parceria com os Correios de São Paulo. Situações que, segundo muitos pesquisadores, refletem o estado de paranóia e confusão que se formou em torno da biopirataria no Brasil. E que vem causando revolta em vários segmentos da comunidade científica.
Apesar de ser apontada como uma das principais ameaças à soberania nacional, a biopirataria ainda não tem definição legal no País. As interpretações sobre o que é ou não é biopirataria, conseqüentemente, variam entre fiscais, ambientalistas e pesquisadores. Em muitos casos, acaba confundida com tráfico de animais silvestres ou intercâmbio rotineiro de material científico, causando situações constrangedoras para pesquisadores e instituições.
O caso mais recente é o do pesquisador Carlos Jared, do Laboratório de Biologia Celular do Instituto Butantã, especialista em morfologia de répteis e anfíbios. Ele foi "flagrado" no mês passado tentando enviar 13 onicóforos (pequenos invertebrados de aparência vermiforme) para um colega de pesquisa na Universidade de Dusseldorf, na Alemanha. O pacote foi interceptado pelos Correios de São Paulo e apreendido pelo Ibama.
Jared, funcionário do Butantã há 34 anos, foi multado em R$ 6,5 mil por coleta não autorizada de animais e em R$ 10 mil, por "tentativa de envio de material genético para o exterior" sem autorização. Os onicóforos não estavam acompanhados do Termo de Transferência de Material (TTM), documento que oficializa o intercâmbio de amostras com instituições científicas estrangeiras. "Na pior das hipóteses, foi uma irregularidade burocrática", defende o colega Hussam Zaher, herpetólogo do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), onde as amostras estão guardadas.
Coletar e trocar amostras biológicas de fauna e flora com os colegas é uma atividade básica de rotina entre pesquisadores que trabalham com biodiversidade. Sem tempo (e paciência) para enfrentar a burocracia de licenças do Ibama, entretanto, muitos acabam trabalhando sem as devidas autorizações. "Se você seguir a legislação à risca, 95% dos institutos de pesquisa do Brasil estão ilegais", afirma, irritado, o herpetólogo Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências da USP.
MORFOLOGIA
O Estado apurou que os onicóforos foram coletados no sul da Bahia, na região cacaueira, onde vivem em meio ao folhiço. Os animais estavam endereçados ao também zoomorfologista Hartmut Greven, com quem Jared acaba de publicar, há três semanas, um trabalho sobre cecílias (tipo de anfíbio parecido com minhocas) na revista Nature.
As amostras serviriam para análises histológicas e caracterização morfológica do aparelho reprodutor da espécie por meio de microscopia eletrônica - nada relacionado a recursos genéticos. A substância "tampão" na qual a maioria dos bichos estava imersa, inclusive, impossibilita qualquer análise de DNA.
O caso, entretanto, foi divulgado pelo Ibama como suspeita de biopirataria. "Taxaram meu nome de uma forma brutal", lamentou Jared a colegas. A pedido do Butantã, o cientista não dá entrevistas sobre o caso. Ele já teria recebido vários e-mails com xingamentos de ambientalistas antibiopirataria.
"Não cabe a nós rotular ninguém, mas não é pelo fato de ser cientista que alguém está isento de cumprir a legislação", disse ao Estado o chefe de Fiscalização do Ibama paulista, Luís Antônio de Lima. "A burocracia é o que determina a lei, e a lei é para todos." Segundo ele, não há como dizer se uma amostra será usada em pesquisa básica ou pesquisas genéticas com fins comerciais. "Se a finalidade era biopirataria, não sei. O que posso dizer é que, sem a intervenção do Ibama, não teríamos conhecimento de que esse material saiu do País."
Para Zaher, o termo está sendo usado como "bandeira de marketing" pelas autoridades ambientais. "Tudo agora é biopirataria", diz. "Querem chamar a atenção."
Graças a uma parceria com os Correios, o Ibama tem feito várias apreensões de material biológico recentemente. Entre elas, centenas de aranhas e escorpiões que seriam enviados de Minas Gerais para a Europa. Apesar da suspeita de biopirataria, pesquisadores ouvidos pelo Estado consideram muito mais provável que os animais fossem destinados a pet shops e colecionadores - o que configuraria tráfico de animais, mas não necessariamente biopirataria. O grande temor sobre a biopirataria é que recursos da biodiversidade brasileira sejam patenteados e usados para criar produtos no exterior, sem um retorno financeiro para o País.
EXPEDIÇÃO
Fora do circuito paulista, o biólogo André Ravetta, da ONG Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente (Sapopema), no Pará, foi parado e autuado no aeroporto de Belém quando voltava de uma expedição científica à Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim - organizada pelo governo do Estado do Amazonas em parceria com ONGs e instituições renomadas, como o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
Ele trazia 103 exemplares de mamíferos coletados na expedição, que seriam levados para o Museu Goeldi. A licença do Ibama, porém, só o autorizava a depositar os animais no Inpa, em Manaus. Faltava uma autorização de transporte até Belém - outra infração burocrática, amplamente rotulada de biopirataria. O objetivo da expedição era, justamente, inventariar e coletar o maior número possível de espécies da reserva.
"A moda agora é dizer que o País é megadiverso e toda pessoa que deseja capturar exemplares da natureza é biopirata ou coisa semelhante", diz o entomólogo Olaf Mielke, da Universidade Federal do Paraná.

Legalmente, não há casos comprovados
Mesmo o exemplo mais citado, o da jararaca, não é certeza de biopirataria
O exemplo mais citado de biopirataria no Brasil - o do veneno da jararaca que virou medicamento contra hipertensão - não é biopirataria coisa nenhuma, segundo o próprio autor brasileiro da pesquisa. "O que aconteceu foi bioestupidez", diz o médico Sérgio Henrique Ferreira, do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP.
Na década de 60, ele descobriu um grupo de moléculas no veneno da jararaca que induz hipotensão (inverso da hipertensão). Os trabalhos foram publicados em revistas científicas e o conhecimento, aproveitado pelo laboratório Squibb para criar o medicamento Captopril, comercializado até hoje no mundo todo. "Ninguém roubou nada do Brasil, isso tem de ficar claríssimo", diz Ferreira. A estupidez, segundo ele, é não saber aproveitar, aqui mesmo, o conhecimento científico produzido no País.
A caracterização da biopirataria é ambígua. Em seu conceito mais estrito, ela se refere especificamente ao uso dos recursos genéticos (genes, proteínas e outras moléculas codificadas pelo DNA) da biodiversidade de um país para o desenvolvimento de produtos, como medicamentos e cosméticos, em outros países. Sem uso dos recursos genéticos, portanto, não haveria crime.
Em uma perspectiva mais ampla, porém, a biopirataria pode ser caracterizada como qualquer uso ou apropriação não autorizada dos recursos biológicos de um país. Isso incluiria o tráfico de animais silvestres e até o registro de marcas com o nome de frutas brasileiras, como ocorreu com o cupuaçu no Japão.
"É importante que o conceito seja amplo, para abranger todas as situações", diz Eduardo Vélez, secretário-executivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente. Por isso, segundo ele, o projeto de lei que está sendo criado para tratar do assunto não trará, ainda, uma definição legal de biopirataria.
O caso do Captopril, segundo Vélez, é anterior à lei nacional de acesso aos recursos genéticos (MP 2.186, de 2001) , o que dificulta sua caracterização como biopirataria. "Legalmente não é, mas, moralmente, é", diz. Mesmo que nada tenha sido roubado do País, segundo ele, o correto seria que parte dos lucros do Captopril fosse dividido com o Brasil, pelo fato do princípio da droga ser originário de uma espécie da fauna brasileira.
Outros exemplos "morais" seriam o perfume Chanel no 5, que utiliza um extrato do pau-rosa da Amazônia, e várias patentes já registradas sobre usos e produtos derivados de frutas e plantas que ocorrem no País.
Legalmente, porém, não é possível apontar um único caso comprovado de biopirataria da biodiversidade brasileira. Para isso, segundo Vélez, seria necessário provar que o recurso biológico veio mesmo do Brasil (e não de algum outro país) e que a patente foi registrada depois da lei de 2001. "Estamos levantando essas informações", disse.

OESP, 07/05/2006, Vida, p. A26

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