VOLTAR

A Billings e a flotação

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GOLDEMBERG, José
02 de Set de 2003

A Billings e a flotação

José Goldemberg

Há cerca de 80 anos, o engenheiro canadense Asa White Kenney Billings concebeu a idéia de formar um lago artificial no Planalto Paulista, cuja água poderia ser lançada serra abaixo, onde geraria eletricidade a baixo custo. Lançando 70 metros cúbicos por segundo (70 m3/s) se poderiam gerar 800 Megawatts no pico e 400 Megawatts na média. Surgiram, assim, o Reservatório Billings e a Usina Hidrelétrica Henry Borden, uma das mais simples e eficientes do mundo.
Os riachos que alimentam esse reservatório têm uma vazão de aproximadamente 10 m3/s, sendo necessário bombear água do Rio Tietê através do canal do Pinheiros para acumular toda a água necessária para que a Usina Borden funcione a plena carga. Isso não era problema no passado, quando a água desses cursos era limpa. Sem essa água o Reservatório Billings geraria uma quantidade pequena de energia e, aos poucos, devido à evaporação de água e a perdas, acabaria por secar. Mesmo sem gerar regularmente, como ocorre hoje, são bombeados para ele cerca de outros 7 m3/s, em média, durante o ano, do canal do Pinheiros, para ajudar no combate às enchentes (na época das enchentes as vazões atingem volumes entre 150 m3/s e 300 m3/s por diversas horas e até dias).
A única razão por que durante muitos anos - até 1992 - a Henry Borden foi capaz de gerar energia é que ela captava o esgoto que era lançado no Tietê e no Pinheiros, o que agora não é mais permitido.
Cerca de 50 m3/s de esgotos são lançados nos rios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). A solução para o problema é tratá-los antes de serem lançados in natura nos córregos que acabam no Tietê e no Pinheiros. Mas estamos muito longe disso. Na RMSP, com exceção da capital, que trata 60% dos seus esgotos, todos os municípios lançam praticamente todo o seu esgoto in natura nos Rios Tietê, Tamanduateí, Pinheiros e seus afluentes, e muitos deles, incluindo São Paulo, também lançam esgotos nos Reservatórios Billings e Guarapiranga ou nos riachos que os alimentam.
Dos 50 m3/s de esgotos da RMSP, apenas 12 são tratados, apesar de a capacidade de tratamento da Sabesp ser de cerca de 18 m3/s. Vários dos municípios se recusam a usar a capacidade ociosa de tratamento da Sabesp por considerarem caro o serviço prestado por ela, apesar de coletarem de seus habitantes taxas para esse fim. De qualquer forma, mesmo após grandes investimentos em infra-estrutura, necessários para a coleta e o tratamento da maior parte do esgoto gerado na região, provavelmente não atingirão a qualidade exigida para o retorno do bombeamento ao Reservatório Billings. Um tratamento complementar, aplicado às águas superficiais, será necessário.
O sistema de flotação é uma antecipação da etapa que objetiva a recuperação da qualidade das águas do Rio Pinheiros de forma a permitir seu bombeamento para o Reservatório Billings. Do ponto de vista de engenharia, o processo de flotação é simples e se espera que funcione sem maiores problemas.
Esse sistema de tratamento de águas abrange a combinação de processos físicos e químicos, por meio dos quais se promove a aglutinação dos sólidos em suspensão presentes nas águas poluídas (floculação), a sua ascensão pela insuflação de ar na forma de microbolhas (flotação), com a remoção do lodo pela superfície da água.
Esse tipo de sistema é utilizado em tratamento de águas residuais industriais, em alguns tipos de tratamento de água para abastecimento público e, ultimamente, de forma diferenciada, em tratamento de águas de rios, utilizando seus leitos como local de tratamento. Exemplo disso são sistemas já implantados e em funcionamento nos canais de drenagem na Avenida Guadalajara e na Rua Acre, na Praia de Enseada, no Guarujá, no Córrego Pedra Azul, afluente do Lago do Jardim da Aclimação, no Córrego do Sapateiro, afluente do Lago do Ibirapuera, no próprio canal do Rio Pinheiros (testes em 1998-1999) e, mais recentemente, tratando pequenas quantidades das águas deste rio para utilização na rega de plantas do Projeto Pomar. Também se encontra em operação o sistema de flotação implantado pela Sabesp no Córrego Guavirutuba, afluente do Reservatório Guarapiranga, e no Córrego Pedra Branca, no Horto Florestal. Esse sistema também está sendo utilizado no tratamento das águas da Baía de Guanabara para alimentação do "Piscinão de Ramos", das águas do Córrego do Carioca, no Aterro do Flamengo, e dos Rios Ressaca e Sarandi, os principais contribuintes da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. No tratamento de esgotos está sendo utilizado como pós-tratamento e tratamento terciário na estação de tratamento de esgoto (ETE) do Bairro da Aclimação, em Uberlândia (MG), e em duas ETEs de Brasília, visando à remoção de fósforo para lançamento no Lago Paranoá.
Para que a água tratada seja lançada na Billings é indispensável que ela atenda a um determinado grau de pureza, que resulta de resoluções do Conama, e caberá à Cetesb a última palavra sobre a viabilidade dessa utilização da água. Em qualquer hipótese, contudo, o canal do Pinheiros será despoluído e este é o problema imediato que enfrentamos.
A etapa inicial do processo de flotação processará 10 m3/s, o que permitirá limpar cinco quilômetros do canal do Pinheiros, e esta é a etapa que se pretende testar.
Não interessa à Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), que opera a Usina Henry Borden, fazê-lo com 10 m3/s. Isso só seria feito se o sistema funcionasse a contento e se fosse possível bombear 50 m3/s, que é o regime em que a usina funcionava até 1992.
O que se trata de fazer, agora, é verificar se o processo funciona bem numa escala maior que a dos sistemas de tratamento existentes. As objeções técnicas levantadas à realização desta etapa de testes, pelo Ministério Público, dizem respeito aos eventuais riscos ambientais que resultariam desse teste; a concessão de liminar pelo juiz da 13.ª Vara da Fazenda Pública foi baseada no "princípio da precaução". Ora, este argumento não se justifica, porque todos os anos são bombeadas para a Billings grandes quantidades da água dos rios in natura, sem tratamento algum, além dos esgotos de cerca de 700 mil habitantes que residem na sua bacia de drenagem e no reservatório que são lançados sem nenhum tratamento.
Estamos, pois, diante de uma tempestade em copo d'água, que possivelmente tem por objetivo embaraçar a administração do Estado.
O que o bom senso indica é que a Justiça deveria permitir o teste do sistema que já foi instalado, passando-se, então, a uma escala maior do projeto, como já deseja a Emae (50 m3/s), ou abandonando o projeto, se ele não se desempenhar satisfatoriamente.
José Goldemberg é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo

OESP, 02/09/2003, Espaço Aberto, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.