VOLTAR

A bíblia do colonialismo na Amazônia

Amazônia Real: https://amazoniareal.com.br/
Autor: Lucio Flavio Pinto
10 de Out de 2022

Concluo a série de artigos sobre a transição da Amazônia da fase de certa autonomia na busca pelo desenvolvimento pela imposição de um modelo externo, que lhe retirou o poder de decidir sobre si mesma.

A Amazônia foi definida pelo II PDA (Plano de Desenvolvimento da Amazônia), a mais importante manifestação da administração pública federal sobre a região (embora hoje esquecida), elaborado pela Sudam para ter vigência entre 1975 e 1979 (coincidindo om o governo do general Ernesto Geisel (o mais tecnocrata da ditadura militar), como uma área pioneira em fase de mudança.

O ingresso nessa nova etapa impunha um "reexame das concepções antigas, que se deixavam dominar pelas idéias de complexidade sem balanceá-las com a das vantagens que o País pode auferir da complementaridade com a economia amazônica".

O plano considerava possível eliminar essa "visão horrorizada", que definia a Amazônia como uma região de dimensões gigantescas e incontrolável, permitindo que os setores "dotados de certas vantagens comparativas e por isso mesmo dotados de impulso dinamizador" assumissem a hegemonia da ocupação seletiva desses vastos territórios.

Neles, havia alguns setores economicamente muito enérgicos: o madeireiro, implicando necessariamente a industrialização da madeira em bruto; o de recursos minerais (ferro, cassiterita, bauxita, manganês, sal-gema, calcário e caulim); a pecuária bovina, também com industrialização imediata; a pesca empresarial; as indústrias eletrodomésticas e eletrolíticas (grafite, carbureto de silício, acetileno, ferro-ligas, alumínio, soda, sódio, cloro); e certas lavouras selecionadas de terra-firme ou várzea (dendê, arroz, cana de açúcar, borracha, pimenta, café e, mesmo, juta e malva).

Principais setores analisados:
* Integração
Por suas características físicas e demográficas, a Amazônia - segundo o PDA - tende a realizar seu crescimento econômico com base em relações com outras áreas. "O mercado interno é pequeno e não comportará logo uma industrialização em larga escala voltada para dentro. Esta deverá processar-se basicamente com vistas ao abastecimento dos mercados nacional e externo, mediante a exploração de vantagens comparativas em termos de custos e qualidade".

A Amazônia se complementaria assim com a economia nacional de duas maneiras: "por meio do suprimento de matérias-primas e de produtos industrializados regionais e mediante contribuições à receita cambial do País". Alguns produtos amazônicos já são considerados de grande importância para o mercado brasileiro, como a borracha, estanho, madeira e energia. E alguns produtos, se não fossem cultivados na região, teriam que ser importados, como a juta e a pimenta-do-reino.

A contribuição da Amazônia para a receita cambial e a capacidade de importar do país como um todo, que "já é respeitável tendo em vista a diminuta população regional", deverá ser "consideravelmente ampliada em futuro próximo com a entrada em operação dos complexos madeireiros e de mineração, sem falar dos numerosos projetos agropecuários".

Além dessa participação, a Amazônia é importante em razão dos seus recursos naturais, "que ajudam a viabilizar certos projetos do governo federal". É o caso do ferro (necessário ao Plano Siderúrgico Nacional) e do cacau (que recolocará o Brasil como o maior produtor mundial). Efeitos semelhantes poderão vir a ser observados em relação ao arroz, ao açúcar e à carne".

* Extrativismo
A economia tradicional amazônica, envolvendo atividades como a extração de madeira ou a coleta de sementes oleaginosas, apesar de envolver 500 mil pessoas em seu processo produtivo, deverá figurar apenas secundariamente nos planos oficiais de desenvolvimento. O documento prevê ainda o abandono da política oficial que tentava promover a sustentação do extrativismo, por considerar que ele "inibe o crescimento regional".

As últimas administrações tentaram realizar uma diversificação da economia amazônica, antes fundada no extrativismo, por meio de três medidas: concessão de fortes estímulos à industrialização, programa de abertura de uma enorme frente de colonização apoiada na ampliação do sistema viário e estímulos à reestruturação da pauta de exportações regionais. Esta política teria que levar a um crescimento equilibrado.

Segundo o PDA, a Amazônia "ainda não tem maturidade para um programa de desenvolvimento equilibrado de setores", mas não se pode considerar que o esforço de diversificação "haja sido coerente e simultâneo. Faltava-lhe, para começar, uma doutrina bem fundada de ocupação e uso econômico da terra na Amazônia. Tais insuficiências são as principais responsáveis, sob o aspecto de formulação política, pela nota de insucesso que parcialmente tem marcado a ação federal na Amazônia".

* Industrialização
A política de industrialização mostrou-se extremamente deficiente: a taxa de absorção de mão-de-obra sempre foi inferior à do crescimento da população ativa do próprio setor; a tecnologia utilizada discrimina a mão-de-obra, privilegiando o capital; as novas indústrias implantadas abriram poucas condições de trabalho; a concentração da renda gerada manteve em limites insatisfatórios a capacidade de comando e os próprios investimentos, ao invés de se multiplicarem, estagnaram.

* Colonização
A política de colonização cometeu muitos equívocos, pois enquanto encaminha para a região "mais ou menos ordenadamente, um fraco contingente de famílias, que vão sendo assentadas segundo um esquema bastante paternalista e cujo ingresso numa era de agricultura comercial é ainda bastante lento, efeitos não esperados da mesma política estimulam indiretamente, através de ondas de publicidade que se propagam muito além dos controles desejados pelo governo, a intensificação de fluxos migratórios espontâneos várias vezes superior, em tamanho, ao dos colonos 'dirigidos'".

Essas levas são constituídas "de lavradores sem nenhuma dotação de capital próprio, com baixo nível de conhecimentos gerais e por vezes viciados pela herança de um rudimentarismo técnico notório".

Se de um lado a terra não era fértil, como esperavam os colonos, nem o governo tinha condições de fornecer-lhes fertilizantes, a imigração indiscriminada criou difíceis problemas que agravaram a situação na Amazônia: absorção de novos contingentes de mão-de-obra, regularização das situações de posse, obrigação de destinar grandes quantidades de dinheiro para criar serviços básicos, além de dirigir crédito para sustentar preços agrícolas".

"Reduzindo a questão a termos simples, o incentivo direto ou indireto à imigração nordestina resulta apenas em deslocar geograficamente dentro do País um problema já instalado em certa região, transferindo para a Amazônia o ônus de recuperar os chamados excedentes populacionais do Nordeste". O documento considera então que a política de colonização da Amazônia fracassou e que sua revisão é indispensável.

* Exportações
Situando a Amazônia no contexto da política global, que "atribui ênfase à ajuda estrangeira e ao imperativo de importação de certos bens de capital, insumos básicos e tecnologia avançada", o PDA considera que a região interessa ao país enquanto possibilita o aumento das exportações. "Entretanto, modelos de desenvolvimento à base de exportações podem, em certos pontos, revelar-se arriscados para regiões subdesenvolvidas como a Amazônia. Tudo indica que a administração federal está alertada quanto a esses riscos que podem afetar o crescimento regional".

* Prioridades
Os "cuidados técnicos e político-administrativos" parecem orientar-se para os seguintes pontos chaves:

"a) compatibilizar os interesses da exportação futura de carnes com eventual contribuição ao atendimento das necessidades alimentares do país;
b) incentivo ao processamento, na região amazônica, de bens minerais e produtos madeireiros, de forma a progressivamente montar um regime que retenha o maior valor agregado possível no país e amplie as oportunidades de emprego produtivo na Amazônia.
c) associação do governo federal a certos empreendimentos mineiros, quando julgado útil ou conveniente por motivos econômicos ou de segurança nacional;
d) proteção nacional à fauna e à flora, de modo a assegurar o equilíbrio entre os interesses de frentes madeireiras, viárias ou minerais e os direitos do índio constantes na Constituição".
O documento admite que esses dois últimos pontos são os de aplicação mais falha.

* Brasis
O Plano de Desenvolvimento da Amazônia admite, para fins de planejamento, que existem três regiões distintas no Brasil: a moderna, constituída pelo Centro-Sul; a retardatária e em estado de estagnação relativa, que é o Nordeste; e a fronteira tropical, a Amazônia. Na região amazônica, "as fontes propulsoras do desenvolvimento recente não estão situadas no mercado interno nem, basicamente, no aproveitamento da conjuntura internacional. Têm sua origem em transferências públicas e privadas, a partir da região moderna, em grau relativo mais elevado que no próprio Nordeste".

De certa maneira, o PDA justifica a existência de desigualdades entre essas regiões, pois teria sido justamente o maior desenvolvimento do Centro-Sul que permitiu a realização de maciças transferências de dinheiro na forma de investimento para a Amazônia. Persistindo essa política, "as perspectivas de desenvolvimento da região ficam estreitamente vinculadas à disponibilidade de recursos na região moderna para transferência".

A retribuição que a Amazônia pode dar a esse investimento será contribuindo para a realização das metas do II PND [Plano Nacional de Desenvolvimento]. Essa contribuição se efetiva de três maneiras: com a geração de divisas, resultante de exportações; de economia de divisas, produzindo insumos básicos para a região moderna, hoje importados; e liberação de produção exportável, comprometida atualmente por forte demanda interna.

* Estrangeiro
O PDA sugere que só se recorra a investimentos externos quando os recursos oficiais e privados nacionais forem insuficientes. "É evidente que uma opção por conferir prioridade à ajuda externa no desenvolvimento econômico em confronto com o de fortalecer os fluxos de capital privado brasileiro e, em alguns casos, os do próprio capital público nacional, envolve em si mesmo um problema geopolítico e de segurança ao qual estarão atentas as autoridades federais de planejamento. Pode esperar-se que a opção talvez seja resolvida no sentido de colocar o recurso externo preferencialmente na região moderna, onde sua assimilação e suscetibilidade aos controles públicos permitem reduzir desde logo a possibilidade de fricções futuras e facilit ar a acomodação de interesses recíprocos".

O documento reconhece, entretanto, que o capital estrangeiro pode desempenhar um importante papel na região, "um papel complementar e útil, desde que se delimitem claramente obrigações e compromissos ao lado das vantagens, de forma a garantir o sucesso da estratégia geral do desenvolvimento".

* Desequilíbrio
Para realizar o objetivo central estabelecido pelo II PND, de crescimento do produto e distribuição mais equitativa da renda, será preciso acelerar o crescimento regional com base no aproveitamento das vantagens comparativas de setores ou produtos regionais selecionados, intensificar a integração por meio da elevação do volume de trocas interregionais, promover a ocupação territorial e a aceleração do nível de segurança na área por meio do alargamento da fronteira econômica.

O PDA se propõe então a executar na região um modelo de crescimento desequilibrado ("na medida em que privilegia determinados setores ou produtos - os dotados de vantagens comparativas -, pondo em plano secundário os demais") corrigido ("na medida em que se inserem complementações e correções que visam fundamentalmente a conduzir a região a participar das vantagens e utilidades que cederá ao País e ao Exterior".

* Mudança
Embora evite afirmar que a colonização dirigida será extinta, o PDA sugere que ela será desestimulada ao mínimo porque motiva a migração espontânea. O documento pede ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) que atribua marcante seletividade ao processo dirigido de povoamento da Amazônia", porque, não obstante seus méritos, "uma colonização oficial disciplinada gera uma colonização espontânea indisciplinada mais que proporcional".

Como é impossível proibir, o documento acha necessária uma efetiva seletividade no ingresso de novos imigrantes espontâneos na Amazônia. Crê que "à medida que o modelo demonstrar toda a sua força e a região estiver sendo impulsionada por uma dinâmica vigorosa de crescimento", a mão-de-obra se deslocará naturalmente para a região.

"Naquele momento, porém, a natureza das atividades econômicas em curso, os estilos de cultivo, as técnicas já introduzidas deverão provocar uma variação de hábito e uma adaptação cultural do imigrante, induzindo-o a preservar a ecologia ao invés de aniquilá-la e tornando-o também, se for o caso, mais exigente em termos de regularização de suas posses de terra, de defesa de preços, de acesso ao crédito, etc".

* Concentração
A aplicação do modelo provocará a concentração de boa parte dos empreendimentos nos setores-chave nas mãos de pessoas físicas ou jurídicas não residentes na região amazônica, "o que se explica pelo vulto dos capitais exigidos para pô-los em marcha e sabido que a região é carente desse fator". Reconhece que o modelo, embora contenha boas potencialidades, "encerra também uma predisposição a provocar refluxo de renda para as zonas de origem dos capitais e de promover ali, ao invés de na Amazônia, seus principais efeitos multiplicadores".

* Correção
Esses efeitos negativos, no entanto, poderiam ser corrigidos pela adoção de linhas estratégicas apontadas pelo próprio plano. Uma delas seria o progressivo aumento do nível de elaboração das matérias-primas. Isso se tornaria possível, em parte, pela crise do petróleo, que elevou os preços do transporte a longa distância dos minérios em bruto "e torna atraente para as grandes empresas o processamento industrial nas zonas das jazidas".

Também a estratégia adotada pelas multinacionais nos países subdesenvolvidos possibilitaria essa transformação: elas não se interessariam mais em manter absoluto controle sobre as fontes de matérias-primas, porque: l) ao invés do controle da matéria-prima, querem segurança no fornecimento; 2) por isso, estão procurando a associação com grupos nacionais, na forma de "joint-ventures".

* Pecuária
O PDA propõe que o governo federal "declare a Amazônia Legal área preferencial para exportação de carne bovina durante o prazo de 15 anos a partir de 1975". Isso permitiria às modernas empresas de abate e frigorificação pagar pelo boi gordo preços mais elevados que no Brasil Central. Com a medida, se possibilitaria a modernização do setor do ponto-de-vista econômico e ecológico. Seria instituído também um regime especial de importações de insumos relacionados com a exploração da pecuária de corte, com a isenção total de impostos.

Em relação ao minério, o plano sugere estender à fase de pesquisa geológica a legislação dos incentivos fiscais.

Quanto à colonização, propõe quatro medidas: consolidação dos núcleos de colonização já existentes nas estradas, por meio da introdução de culturas industriais permanentes; desestímulo aos fluxos migratórios não seletivos; fixação dos colonos espontâneos já localizados na área; reorientação espacial e setorial dos futuros contingentes migratórios e dos eventuais excedentes demográficos verificados entre os atuais colonos espontâneos e entre as populações atualmente vinculadas à estrutura extrativista.

https://amazoniareal.com.br/a-biblia-do-colonialismo-na-amazonia/

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.