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Belo Monte: A luta pela Volta Grande entra em uma nova fase

Amazônia Real - https://amazoniareal.com.br
Autor: FEARNSIDE, Philip M.
22 de Jun de 2021

Belo Monte: A luta pela Volta Grande entra em uma nova fase

Por Philip Martin Fearnside
Publicado em: 22/06/2021

Uma decisão judicial de 17 de junho suspendeu temporariamente a permissão concedida em 08 de fevereiro pelo Ibama para permitir que ainda mais água seja desviada do rio Xingu.

Mesmo sem o desvio adicional de água, o trecho de 130 km da "Volta Grande" recebe água insuficiente para seus ecossistemas únicos e para seus habitantes indígenas e ribeirinhos tradicionais. A nova decisão corre o risco de ser revogada por meio das leis de "suspensão de segurança", que permitem a reversão de qualquer decisão que causa "graves danos" à economia.

A nova decisão também pode ser neutralizada pelo governo Bolsonaro depois que os estudos técnicos dna decisão forem concluídos em dezembro. Também pode ser anulado por um novo grupo interministerial que está prestes a ser decretado.

Uma versão em inglês deste texto foi publicada no site da Mongabay [1].

Em 17 de junho, uma decisão judicial [2] marca uma nova fase para a luta pela água na "Volta Grande" do rio Xingu entre as duas barragens que compõem o complexo de Belo Monte. O resultado será consequente para os povos Indígenas e ribeirinhos que dependem da Volta Grande, para a extraordinária biodiversidade desse trecho do rio e para as atuais e futuras lutas de barragens em todo o Brasil.

Em 2015, o complexo de Belo Monte, bloqueou o rio Xingu, um afluente do rio Amazonas que flui ao norte no estado do Pará, causando graves impactos sociais e ambientais que haviam sido previstos, mas que não impediram a aprovação e construção do projeto [3]. Os indígenas impactados não foram consultados conforme exigido pela Convenção 169 da OIT [4] e pela legislação brasileira (5.051 de 19 de abril de 2004 [5], hoje 10.088 de 05 de novembro de 2019 [6]. A primeira das duas barragens do complexo (Pimental) desvia água por meio de um canal e uma série de bacias de igarapés inundadas até a segunda barragem (Belo Monte), onde fica a casa de força principal e de onde a água retorna para o rio Xingu 130 km a jusante da primeira barragem (Figura 1)

Duas terras Indígenas estão localizadas no Volta Grande, e uma terceira terra Indígena, que também depende dos peixes e quelônios da Volta Grande, está localizada em um pequeno afluente [7]. Também existe uma população considerável de ribeirinhos que depende do rio [8]. A Volta Grande tem várias espécies de peixes que não são encontrados em nenhum outro lugar e agora estão ameaçados de extinção [9] e tem uma variedade de ecossistemas únicos que dependem do ciclo anual de cheias [10].

Em 08 de fevereiro de 2021, o Ibama acatou um pedido da empresa de energia responsável por Belo Monte permitindo que ainda mais água fosse desviada da Volta Grande do que o permitido anteriormente[11, 12]. A exigência anterior de vazão para Volta Grande também era insuficiente para evitar impactos graves [13]. Ironicamente, o governo e a empresa de energia chamam a regulamentação anterior de "hidrograma de consenso", mas o "consenso" era entre a empresa de energia e o Ibama e não incluía as pessoas afetadas na Volta Grande.

Em 17 de junho, uma decisão de um tribunal federal do Estado do Pará suspendeu temporariamente a permissão que o Ibama havia concedido em 08 de fevereiro [14]. A pausa é para permitir que estudos técnicos sejam feitos antes que o IBAMA autorize qualquer alteração nas vazões exegidas na Volta Grande [15]. No entanto, decisões judiciais como essa são revertidas rotineiramente invocando as leis de "suspensão de segurança" [16] em de Belo Monte [17]. As suspensões de segurança foram criadas durante a ditadura militar de 1964 a 1985 (Lei 4.348 de 26 de junho de 1964) [18], mas ainda estão em vigor (Lei 12.016 de 07 de agosto de 2009)[19].

Essas leis permitem que qualquer decisão judicial seja revertida se causar "graves danos" à economia pública. Uma vez que qualquer barragem hidrelétrica é importante para a economia, as suspensões de segurança podem ser invocadas para anular qualquer decisão tomada com base na violação de regulamentos ambientais e proteções de direitos humanos (por exemplo, [20, 21]).

É provável que uma suspensão de segurança seja o próximo lançe do setor de energia. Talvez isto seja uma oportunidade para o público aprender sobre a existência e as consequências dessas leis. Poucas pessoas fora da comunidade jurídica sabem que essas leis existem porque as informações divulgadas pela imprensa cada vez que essas leis são invocadas quase sempre se limitam a declarar que o juiz "X" reverteu decisão "Y" permitindo que o projeto de infraestrutura "Z" avançasse. Um dia as leis de suspensão de segurança terão que ser revogadas se o Brasil quiser evitar que se repite muitas vezes mais a história que se desenrolou em Belo Monte, com suas multiplas violações de direitos humanos [22] e regulamentos ambientais [23]. Essas leis nunca serão revogadas a menos que o público esteja ciente do problema [24].

Uma ameaça adicional é uma medida provisória sendo preparada para emissão pelo Presidente Bolsonaro que retiraria do Ibama da autoridade para regular os fluxos de água das barragens [25]. Essa responsabilidade seria atribuída a um grupo interministerial denominado "CARE" (Câmara de Normas Operacionais Excepcionais para Barragens Hidrelétricas), que seria presidido pelo Ministério de Minas e Energia. A CARE seria composta por representantes dos ministérios da Economia, Infraestrutura, Agricultura, Desenvolvimento Regional e Relações Exteriores, além do Advogacia Geral da União e da Casa Civil [26]. Observe que o Ministério do Meio Ambiente não consta nesta lista; no entanto, retificar esta omissão não reduziria o impacto ambiental e social da CARE, dada a orientação antiambiental do ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro [27].

A suspensão atual do negócio firmado entre o Ibama e a empresa de energia provavelmente será uma trégua temporária, mesmo se um juiz complacente não for encontrado para invocar uma suspensão de segurança. Os estudos técnicos exigidos pela decisão de 17 de junho devem ser concluídos até dezembro [28], e depois seria provável que os nomeados do governo Bolsonaro no Ibama aprovassem a renovação do acordo desse órgão com a empresa de energia antes da temporada crítica de enchentes começar em janeiro. Em outras palavras, a luta para salvar Volta Grande desse novo ataque apenas começou.

A imagem que abre este artigo é de autoria de Marizilda Cruppe/Greenpeace e mostra morador tentando pescar no que restou da Volta Grande do Xingu.
Notas

[1] Fearnside, P.M. 2021. Brazil's Belo Monte Dam: Struggle for the Volta Grande enters a new phase (Commentary). Mongabay, 21 de junho de 2021.

[2] Justiça Federal. 2021. Decisão Número: 1000684-33.2021.4.01.3903. Poder Judiciário, Justiça Federal, Subseção Judiciária de Altamira, Pará.

[3] Fearnside, P.M. 2019. A barragem de Belo Monte: Lições de uma Luta por recursos na Amazônia. p. 37-54. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 3. Editora do INPA, Manaus, Amazonas. 148 p.

[4] ILO (International Labour Organization). 1989. C169 - Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169).

[5] PR (Presidência da Republica).2004. Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004. PR, Brasília, DF.

[6] PR (Presidência da Republica). 2019. Decreto No 10.088, de 5 de novembro de 2019. PR, Brasília, DF.

[7] Fearnside, P.M. 2019. Belo Monte: Atores e argumentos na luta sobre a barragem amazônica mais controversa do Brasil. p. 23-36. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 3. Editora do INPA, Manaus, Amazonas. 148 p.

[8] Magalhães, S.B. & M.C. da Cunha (eds.) 2017. A expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte: Relatório da SBPC. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), São Paulo, SP. 448 p.

[9] Sabaj-Perez, S.M. 2015. Where the Xingu bends and will soon break. American Scientist 103(6): 395-403.

[10] Zuanon, J., A. Sawakuchi, , M. Camargo, I. Wahnfried, L. Sousa, A. Akama, J. Muriel-Cunha, C. Ribas, F. D'Horta, Pereira, T. & Lopes, P. 2021. Condições para a manutenção da dinâmica sazonal de inundação, a conservação do ecossistema aquático e manutenção dos modos de vida dos povos da volta grande do Xingu. Papers do NAEA 28(2): art. 413.

[11] Brum, E. 2021. Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia. El Pais, 18 de fevereiro de 2021.

[12] Higgins, T. 2021. Amazon's Belo Monte Dam cuts Xingu River flow 85%; A crime, Indigenous say. Mongabay, 08 de março de 2021.

[13] Pezzuti, J.C.B., C.C. Carneiro, B.R. Garzón & T. Mantovanelli. 2018. Xingu, O Rio que Pulsa em Nós: Monitoramento independente para registro de impactos da UHE Belo Monte no território e no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande do Xingu. Instituto Socioambiental (ISA), Altamira, Pará. 52 p.

[14] O Globo. 2021. Justiça aceita ação do MPF e reduz vazão de Belo Monte para geração elétrica. O Globo, 14 de junho de 2021. https://bityl.co/7Q09

[15] O Globo. 2021. Justiça cancela termo de compromisso que previa desvio de 80% das águas do Xingu para Belo Monte.

[16] Garzón, B.R, R.S.T. do Valle & L. Amorim 2015: Por que a lei não se aplica a Belo Monte: A suspensão de segurança. In: Vozes do Xingu: Coletânea de artigos para o Dossiê Belo Monte: Vozes do Xingu. Anexo online a: Villas-Bôas, A., B.R. Garzón, C. Reis, L. Amorim & L. Leite (eds.): Dossiê Belo Monte: Não Há Condições para a licença de Operação. Instituto Socioambiental (ISA), Brasília, DF. p. 156-169.

[17] Palmquist, H. 2014: Usina Teles Pires: Justiça ordena parar e governo federal libera operação, com base em suspensão de segurança. Ponte, 27 de novembro de 2014.

[18] PR (Presidência da Republica). 1964. Lei No 4.348, de 26 de junho de 1964. PR, Brasília, DF.

[19] PR (Presidência da Republica). 2009. Lei No 12.016, de 7 de agosto de 2009. PR, Brasília, DF.

[20] Prudente, A.S. 2013: O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança e a proibição do retrocesso no estado democrático de direito. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil 10: 108-120.

[21] Prudente, A.S. 2014: A suspensão de segurança como instrumento agressor dos tratados internacionais. Revista Justiça e Cidadania, No. 165.

[22] AIDA, 2018. Brazil must respond to human rights violations caused by the Belo Monte Damhttps://aida-americas.org/en/press/brazil-must-respond-human-rights-vio…. AIDA, 02 de maio de 2018.

[23] Villas-Bôas, A., Garzón, B.R., Reis, C., Amorim, L. & Leite, L. 2015. Dossiê Belo Monte: Não Há Condições para a Licença de Operação. Instituto Socioambiental (ISA), Brasília, DF. 55 p.

[24] Fearnside, P.M. 2015. Hidrelétricas e hidrovías na Amazônia: Os planos do governo brasileiro para a bacia do Tapajós. p. 85-98. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 2. Editora do INPA, Manaus. 297 p.

[25] Ventura, M. 2021. Governo prepara MP que tira poderes da Agência Nacional de Águas e do Ibama para evitar Apagão.- O Globo 14 de junho de 2021.

[26] Wiziack, J. & N. Pamplona. 2021. Esboço de MP dá poderes a grupo interministerial para decidir sobre vazão de rios e abre espaço para racionamento.Folha de São Paulo, 14 de junho de 2021.

[27] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. O novo presidente do Brasil e "ruralistas" ameaçam o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima global. | Amazônia Real, 30 de julho de 2019.

[28] MPF (Ministério Público Federal). 2021. Belo Monte: Justiça cancela termo de compromisso do Ibama com a Norte Energia por falta de estudos técnicos. Secom, MPF, Belém, Pará.

Philip Martin Fearnside
É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br

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