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BC precisa enfrentar o comércio ilegal de ouro

Valor Econômico, Opinião, p. A16.
Autor: SANTILLI, Márcio; OLIVEIRA, Rodrigo de
07 de Dez de 2022

BC precisa enfrentar o comércio ilegal de ouro
Não existe no país um mecanismo de rastreabilidade

Márcio Santilli
Rodrigo de Oliveira

07/12/2022

No dia 19 de setembro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Aerogold com o objetivo de desarticular uma organização criminosa envolvida na extração e na comercialização de ouro ilegal retirados nos rios dos Estados de Rondônia e do Amazonas.

A operação teve como um dos principais alvos a instituição financeira que mais comprou ouro de garimpo nos últimos cinco anos. Embora esteja cada vez mais evidente a participação das instituições financeiras na lavagem do ouro, o Banco Central pouco tem feito para aperfeiçoar a fiscalização e para prevenir e combater os crimes do setor.

A legislação atribui ao ouro de garimpo natureza jurídica de ativo financeiro ou instrumento cambial e confere exclusividade da primeira aquisição a instituições financeiras autorizadas pelo BC, as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs).

Ou seja, após ser explorado em garimpos autorizados, o ouro só pode ser comprado por Postos de Compra de Ouro (PCO), que são os braços das DTVMs nos municípios com produção aurífera.

O vendedor deverá apresentar seus documentos pessoais e o número do processo minerário de origem, que corresponde à área autorizada de onde o ouro teria sido extraído. Como não existe no país qualquer mecanismo de rastreabilidade, o vendedor pode indicar um processo que não corresponde à verdadeira origem do minério.

É a modalidade mais comum de lavagem de ouro: o ouro é explorado ilegalmente em áreas protegidas (como terras indígenas e unidades de conservação) ou não autorizadas e, no momento da venda, é vinculado fraudulentamente a lavras garimpeiras regularizadas.

Em razão da facilidade de fraude, o mercado do ouro tem sido utilizado para lavar dinheiro oriundo de diferentes atividades ilegais e até mesmo do tráfico de drogas, como vem revelando diversas operações da PF.

O risco de fraude é agravado por uma benesse legal que confere ao vendedor a responsabilidade pelas informações prestadas e que estabelece uma presunção de legalidade do ouro e da boa fé do comprador, isto é, das DTVMs.

Em um mercado dominado pela ilegalidade, a regra - conquista do lobby da Associação Nacional do Ouro - funciona na prática como um escudo jurídico, pois dificulta a responsabilização criminal dos donos das DTVMs e permite que elas comprem grandes volumes de ouro em regiões tomadas pela exploração ilegal, sem fazer qualquer averiguação.

Conforme estudo da UFMG, ao menos 54% da produção de ouro em lavras garimpeiras autorizadas no país foi realizada de modo irregular (ouro ilegal e potencialmente ilegal) - o equivalente a 27 toneladas. O estudo aponta que 96% das áreas convertidas em garimpo estão fora de processos minerários que registraram oficialmente produção de ouro.

São as DTVMs que compram ouro ilegal e o introduzem no mercado com um verniz de legalidade, para ser exportado para bancos, joalherias e até mesmo para grandes bigtechs, como Apple, Google, Microsoft e Amazon, como revelou matéria recente da Repórter Brasil.

A prevenção e o combate ao comércio ilegal de ouro demandam um aprimoramento da fiscalização e da regulação das operações das DTVMs, o que é de responsabilidade do BC.

É urgente a intensificação da fiscalização, para apurar infrações das DTVMs, como o descuido de controles internos, negligência a boas práticas de auditoria, prestação de informações falsas. Atualmente, existem oito DTVMs no país, que juntas somam 89 postos de compra. Trata-se de um mercado monopolizado, o que facilitaria a fiscalização.

Também se faz necessário maior rigor na aplicação de penalidades às DTVMs que comprarem ouro ilegal, sobretudo as reincidentes. Entre 2018 e 2021, as DTVMs mais do que quintuplicaram o valor de suas operações de compra de ouro de garimpo, saltando de R$ 1,4 bilhão para R$ 7,4 bilhões.

Ao menos seis das oito instituições financeiras foram ou estão sendo investigadas pela PF. Elas seguem operando normalmente.

Outra medida importante seria reforçar a responsabilidade das DTVMs pelo ouro ilegal comprado nos seus postos de compra. É bastante comum que essas instituições aleguem na justiça não serem responsáveis pela compra e lavagem do ouro ilegal praticadas por seus mandatários.

O BC precisa robustecer as obrigações de prevenção e de combate à lavagem de bens e capitais pelas DTVMs, previstas na Lei de Lavagem de Dinheiro. São aplicáveis a todas as instituições financeiras, em conformidade com as diretrizes internacionais sobre o tema, no sentido de conhecer seus clientes e de reportar operações consideradas suspeitas, par

As instituições financeiras devem avaliar o risco financeiro, jurídico e socioambiental de suas atividades. As operações serão consideradas suspeitas de acordo com suas características, como o porte, a forma e as partes envolvidas.

Freio de arrumação

A exigência dessas obrigações poderá contribuir com o enfrentamento ao comércio de ouro ilegal. Por exemplo, o atual regramento dispõe que as instituições deverão considerar na avaliação de risco sua "área geográfica de atuação", o que é particularmente importante para o tema em questão.

Segundo a UFMG, o Pará produziu 30,4 toneladas de ouro de garimpo, dos quais ao menos 22,5 toneladas (74%) foram extraídas de maneira irregular.

As cidades de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso responderam por 85,7% do comércio de ouro irregular em 2019 e 2020. Na avaliação das operações nessas localidades, as DTVMs precisam adotar procedimentos proporcionais ao nível de risco.

A expansão do garimpo predatório é um problema grave e complexo, cujo enfrentamento demanda um esforço coordenado de diversas instituições, ainda mais neste momento de crise social e econômica e de valorização do ouro no mercado internacional.

No entanto, não há dúvidas de que o combate ao comércio ilegal demanda um "freio de arrumação" nas DTVMs, ao que o BC não se comprometeu efetivamente até o momento. Enquanto essas instituições batem recordes de lucros, o garimpo segue provocando mortes de indígenas, a destruição de rios e florestas e a contaminação da população amazônida.

Márcio Santilli é sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA)
Rodrigo Magalhães de Oliveira é assessor do Instituto Socioambiental.

Valor Econômico, Opinião, p. A16.

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/bc-precisa-enfrentar-o-comercio-…

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