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Batalha secular: Num antigo quilombo no Rio de Janeiro, descendentes de escravos continuam a luta pela terra e pela manutenção da cultura

O Globo, Especial, p. 5
20 de Nov de 2003

Batalha secular: Num antigo quilombo no Rio de Janeiro, descendentes de escravos continuam a luta pela terra e pela manutenção da cultura

Débora Thomé

Até um ano atrás, dona Terezinha, de 59 anos, não tinha em casa luz elétrica, geladeira, televisão. Há um ano também, foi que o médico começou a fazer uma visita regular mensal ao lugar onde mora. Telefone, nem correio chegaram lá ainda. Dona Terezinha é a matriarca de um dos 700 quilombos que existem ainda no Brasil, o Quilombo da Fazenda São José da Serra, perto de Conservatória (RJ). 0 conceito de quilombo hoje é outro. Para uma terra ser reconhecida como tal, ela não precisa ser necessariamente o local para onde iam escravos em busca de liberdade, pode ser também um espaço onde descendentes de escravos mantiveram sua moradia. No papel, o conceito de quilombo mudou. Na vida real - de casa de pau-a-pique e terra batida - o que se vê é que a idéia primeira do quilombo, como uma comunidade de ajuda mútua, de tomadas de decisões conjuntas e, de certa forma, igualitárias, manteve-se.
No Quilombo da Fazenda São José da Serra, moram cerca de 150 pessoas, espalhadas em 18 casas onde tudo é feito em conjunto. "0 telhado a gente fez com a ajuda do pessoal"; ` o encanamento fomos nós que fizemos." Assim como são eles também que plantam, cozinham, criam os animais. "Todo mundo vai pra roça, cada um tem a sua terrinha". E quando falta alimento para alguém? "A gente dá pra esse alguém, ora", foi a resposta de dona Terezinha, que, com a morte da mãe, dona Zeferina, tomou-se a responsável pela comunidade. Dentre as obrigações, a sua mais importante tarefa ali é dar conselhos:
- Minha mãe disse antes de morrer: "Segue conforme eu estou deixando." E eu sigo, assim como meus irmãos e as crianças. Aqui não tem briga não. Quando tem problema, a gente conversa e se entende.
Apesar do bisavó escravo, dona Terezinha prefere evitar o assunto pois, segundo ela, "ninguém gostava muito de lembrar este sofrimento."
- 0 pior é que esse sofrimento vem se arrastando até os dias de hoje - complementa seu irmão, Toninho Canecão, que atualmente está escrevendo um livro com as memórias do avó, filho de escravos,,e cuida dos interesses da comunidade.
Mesmo tendo sido reconhecidos como quilombolas há seis anos, e morando no mesmo lugar desde 1830 (o que já daria anos de usucapião), eles ainda não são donos da própria terra. Enquanto isso, mantêm a agricultura de subsistência. Plantam feijão, café, milho, mandioca, cana, inhame, como seus avós faziam. Criam porco, cabra, galinha. Nos dias de festa, o porco vira feijoada. D. Terezinha - que, além de todas as funções (é merendeira da escola, faz bonecas artesanais, colchas de retalho e ainda vai pra roça, claro, além de cuidar da comunidade) - toca tambor para o jongo enquanto os netos dançam. No fim das contas, sua tarefa vai muito além. É dela também a responsabilidade de manutenção da cultura.
No quilombo, são poucos os que têm TV ou lêem jornal, mas quando perguntada sobre em quem votou nas últimas eleições, a matriarca não hesita:
- Ué? 0 voto não é secreto?
Todo mundo ali vota. A estola, que já existe há muito tempo, é freqüentada por todas as crianças que, mais velhas, seguem estudando na cidade próxima. Na roça, trabalhando nas fazendas próximas, os homens ganham 10 reais por dia; mas as mulheres, confirmando as estatísticas, ganham menos: 8 reais.
As crianças são muitas, de todas as idades. Algumas sonham em sair do quilombo. Tiago, de 13 anos, diz que quer ir para a Aeronáutica. No entanto, enquanto a hora de voar para longe não chega, estuda e ajuda a mãe. "Aqui cada um tem a sua tarefa", explica a mãe, Cida, de 34 anos. Com 80 anos, Dona Santa, também parente de Cida, morou lá a vida toda. Morou e trabalhou: na roça. Com os pés visivelmente calejados, conta que viveu para o trabalho, assim como seus pais e seus avós.
0 povo de São José é bastante religioso. Eles vão à missa uma vez por semana e à umbanda uma vez por mês.
- Eu peço sempre a Deus união. De que importa ser rico se não tem união? Aqui, quando um vai pra roça, vai todo mundo junto; quando vai descansar, todo mundo descansa e, até quando vem visita, a gente leva eles para trabalhar na enxada - conta dona Terezinha.
Sua liberdade existe, seu quilombo é outro, mas a luta dos quilombolas permanece dura, mesmo depois de mais de um século de resistência.

O Globo, 20/11/2003, Especial, p. 5

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