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A batalha pelo Rio Doce

O Globo, Sociedade, p. 38-39
Autor: LEITÃO, Míriam
19 de Abr de 2015

A batalha pelo Rio Doce

Míriam Leitão

Aimorés (MG) e Colatina (ES) - Adonai Lacruz, administrador do Instituto Terra, começa a falar com naturalidade como se não fosse espantosa cada frase do que está dizendo:
- O primeiro sonho já está realizado. O instituto plantou uma floresta. Foram dois milhões de mudas plantadas que cresceram e hoje são árvores. Os 700 hectares da fazenda estão cobertos. O viveiro produziu, ao todo, quatro milhões de mudas, em 16 anos, para nós e outros projetos. Agora estamos começando outro sonho: proteger todas as nascentes do Vale do Rio Doce. Vai levar 30 anos.
Transformar uma terra seca numa floresta que hoje enche os olhos de verde é muito, mas fazer um programa para todo o vale parece loucura. É um território do tamanho de um país, equivale a um Portugal. Mas no instituto a gente começa a achar que o impossível acontece. O Rio Doce e todos os seus afluentes estão incluídos no novo sonho, que é o de cercar cada um dos 375 mil olhos-d'água. O rio que nasce em Ressaquinha, na Mantiqueira, em Minas, percorre 853 quilômetros até encontrar o Oceano Atlântico em Regência, Espírito Santo.
Quando as pessoas que trabalham no instituto fundado por Lélia e Sebastião Salgado falam que estão começando um trabalho, é porque andaram bastante. Nos últimos quatro anos, o projeto foi elaborado e teve definidos seu custo e sua viabilidade. Já está encerrado o piloto, no qual foram protegidas quase mil nascentes do Rio Doce ou nos seus afluentes.
O projeto é procurar cada um dos pontos onde mina água - ou onde há chance de que a água aflore -, cercar 0,8 hectare em volta desses pontos e plantar algumas árvores para proteger. Além disso, o produtor que aderir ao projeto receberá dois presentes preciosos: o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o esgotamento sanitário instalado na propriedade. E de sobra ganhará como cartão de visitas uma placa de que aquela propriedade está no Projeto Olhos D'Água.
- Nós trabalhamos muito para transformar o projeto em unidades, para saber o preço de cada pedaço. O kit é este: duas nascentes protegidas, a regularização ambiental através do CAR e o tratamento do esgoto. O custo é de R$ 6 mil por unidade - diz Lacruz.
O projeto completo tem um custo que assusta à primeira vista. São R$ 2,5 bilhões, mas para serem investidos ao longo de 30 anos. A certeza que se tem por lá é que ou se faz assim, anulando cada traço deixado por anos de degradação da terra e agressões aos rios, ou não haverá água para as futuras gerações. A equipe do jornal passou dois dias visitando produtores rurais, vendo de perto as nascentes cercadas, conversando com técnicos agrícolas, gerentes do projeto e o prefeito de Colatina, que é o presidente do Comitê da Bacia do Rio Doce. Dias depois, nova viagem ao Espírito Santo para conversar com Lélia e Sebastião Salgado.
O instituto dá o material para fazer a cerca, mas quem a faz é o dono da terra. O CAR, que é visto como difícil de ser cumprido pelas várias exigências burocráticas do novo Código Florestal, é feito pelos técnicos do projeto. O esgoto é totalmente instalado pelo instituto, usando tecnologia da Embrapa, simples e eficiente. Três caixas de fibra de vidro processam e destilam os resíduos do banheiro com bactérias de esterco de boi. No final do processo, sai uma água com adubo orgânico, rico em nitrogênio.
Mário Cesar de Lacerda morou em Sorocaba, e depois em Vitória, onde enfrentou várias vezes a violência urbana. Decidiu realizar seu sonho de voltar para a área rural. Ele se define como uma pessoa que tem "a cabeça voltada para a roça". Comprou uma propriedade de 150 hectares em um distrito de Aimorés chamado Conceição do Capim. Numa das casas do pequeno lugarejo, nasceu o fotógrafo Sebastião Salgado. Mário Cesar já protegeu seis nascentes:
- Nesse tempo de seca, não secou nenhuma. No meu vizinho, secou.
Esse mesmo contraste entre o verde molhado da propriedade e a seca do vizinho pode se ver também na casa de Adão Alves da Silva e de sua mulher, Eliana, em Expedicionário Alício, em Minas. Ele cria gado e seus pastos estão visivelmente mais verdes do que os da propriedade vizinha.
- Nós não tivemos as águas este ano, mas aqui não faltou, pelo contrário. Tenho água para a irrigação e está sobrando capim para as minhas vacas de leite - diz Adão.
Até as grandes propriedades, como a Fazenda Santa Isabel, de 1.500 hectares, com 1.300 cabeças de gado, têm sido beneficiadas pelo programa. Já protegeram 20 nascentes e querem cercar todas as outras.
- Eu conto com o instituto, porque temos enfrentado muitos períodos de seca por aqui - diz o supervisor administrativo da fazenda, José Geraldo Teixeira.
Ao dividir um programa ambicioso em unidades de R$ 6 mil, o Instituto Terra viabiliza apoios. A Fundação Anne Fontaine, por exemplo, está no terceiro ano de incentivo ao programa. Tem doado US$ 40 mil por ano. A EDP de Portugal é parceira, a Vale também. A ArcelorMittal acabou de fechar um convênio para fornecer R$ 7 milhões em material para cercar as nascentes. Tudo isso dá só para o começo. O BNDES não aprovou ainda o apoio ao projeto. Os governos de Minas e Espírito Santo assinaram parceria.
O Rio Doce ainda é belo em muitos trechos. Parece forte. Em outros, se vê os bancos de areia, o assoreamento, o resultado dos despejos de esgoto. Será preciso um trabalho demorado para protegê-lo. Quem vai ao Instituto Terra e anda por Minas e Espírito Santo, olhando as nascentes brotando do chão, em plena seca, volta acreditando que loucura é não sonhar em salvar o Rio Doce.

Um périplo em busca de águas mais limpas
Fotógrafo percorre dois estados promovendo medidas de recuperação ambiental de rios

Míriam Leitão

Aimorés (MG) e Colatina (ES) - Lélia e Sebastião Salgado passaram semanas no Brasil em uma agenda intensa. Ficaram entre Minas e Espírito Santo em reunião com autoridades, incluindo os dois governadores, prefeitos, empresários, produtores rurais e Ministério Público. Costuraram apoio ao Projeto Olhos d'Água, a menina dos olhos deles. Conversei com o casal em Vitória. Eles sempre falam como se a vida fosse eterna.
- A ideia do longo prazo é a mais importante. Se o Brasil levou 50 anos para destruir o vale, podemos, em 30 anos, recuperar grande parte - diz o fotógrafo Sebastião Salgado.
- Eu tenho certeza de que antes de terminarmos o nosso projeto, outras bacias vão seguir nosso exemplo - completa Lélia, presidente do Instituto Terra.
Ela é capixaba, ele é mineiro. Os dois são do mesmo vale. Moram em Paris, vivem no mundo e acham que pertencem ao vale. Tudo é pensado. Os técnicos são filhos de produtores rurais, formados por eles em recuperação ambiental. Não tentam impor a lei, mas convencer os produtores a respeitá-la. As nascentes são monitoradas.
- É preciso saber se a água está crescendo - diz Sebastião.
Ele explica que a água vem do replantio das espécies nativas nos "pontos de recarga". O viveiro de Aimorés produz um milhão de mudas por ano e agora eles começam em Colatina outro viveiro para cinco milhões de mudas. Querem refazer matas ciliares, plantar no topo dos morros, proteger as águas. Se alguém duvida, encontra a convicção de Sebastião Salgado. "Nosso projeto é refazer todas as nascentes do Doce".

Caçadores de nascentes circulam pelo Vale do Rio Doce
Jovens tentam convencer proprietários rurais a entrarem para o projeto do Instituto Terra

Míriam Leitão

Aimorés (MG) e Colatina (ES) - Os olhos treinados de dois jovens se fixam no alto de um morro. Na seca do entorno, um ponto mais verde captura a atenção e o entendimento dos dois.

- Josenilto, você está pensando no que eu estou pensando?

- Estou sim, Cíntia, aquilo só pode ser um.

- Como vamos fazer para ir lá e cercar esse?

- Finge que você tá passando mal, a gente vai na casa do proprietário e pede um copo de água. E aí a gente vai conversando.
Assim foi que os capixabas Cíntia Gomes, de 25 anos, natural de Jaguaré, e Josenilto Nascimento, de 28 anos, nascido em São Mateus, municípios do Norte do Espírito Santo, conseguiram proteger mais uma nascente na Bacia do Rio Doce. Daquela vez foi em Colatina. Na conversa que se seguiu ao mal-estar simulado, os dois funcionários do Instituto Terra acabaram convencendo o proprietário a cercar quase um hectare da sua terra, justamente onde o pasto estava mais verde, e entrar no Projeto Olhos D'Água. Eles são caçadores de nascentes. Nada lhes escapa.

Um olho-d'água pode ser um pequeno afloramento ou apenas uma umidade. Pode ser só uma área mais verde na propriedade. Cercado e protegido do pisoteio de gado e, em alguns casos, com replantio em volta, brotará da terra, aumentará de volume. Pode virar um pequeno poço de água, como o que existe, transparente, na casa de João Folador, ou até crescer e formar um lago, igual ao encontrado na propriedade de Adão Alves e Eliana. A água escorre para córregos, riachos, rios e desemboca no Rio Doce.

No instituto, há vários funcionários mobilizados por este projeto. Cíntia e Josenilto nos acompanharam nas caminhadas para ver de perto as nascentes protegidas e o resultado líquido do trabalho. Cíntia Gomes chegou ao instituto com 17 anos, na turma de 2008. Tinha acabado de terminar o curso técnico na Escola Família Agrícola e foi selecionada para a turma de 20 alunos do curso do Núcleo de Estudos em Restauração Ecossistêmica. Ao fim do curso, foi contratada. Mas não se deu por satisfeita. Entrou na faculdade de Biologia, que já concluiu, e está agora num curso de pós-graduação em engenharia ambiental. Ela gosta de desafios.

- Às vezes os meninos voltam dizendo que um proprietário não aceitou entrar no projeto, aí eu digo: deixa que eu vou. Várias vezes fiz o proprietário mudar de ideia - diz Cíntia, exibindo uma desenvoltura e segurança que destoam do rosto muito jovem.

Já viveu situações engraçadas pelo fato de ser a única mulher no grupo dos caçadores de nascentes e ter o rosto juvenil:

- Uma vez um homem me disse: "O que você está pensando? Eu tenho o triplo da sua idade e você pensa que vai me ensinar?". Em outro momento tratei tudo por e-mail e telefone. Aí marcaram de eu ir lá almoçar. Quando cheguei, o dono me falou: "Mas é você que é a Cíntia?"

Sim, é ela. Hoje é recebida como autoridade a quem os sitiantes ou fazendeiros fazem perguntas técnicas. Sua especialidade é sempre o mais difícil. Talvez por isso, sua monografia será sobre um dos maiores desafios do Brasil: saneamento básico rural. Ela acha que tem jeito.
'GOSTAMOS DA TERRA'
Josenilto também é do tipo que não desiste. Tem um ar mais tímido que Cíntia. Fala apenas quando é perguntado. Mas sabe o que quer:

- Dos seis filhos dos meus pais, eu estudei mais. Três irmãos não estudaram. Eu terminei a Escola Família Agrícola, fiz o curso do Instituto Terra, e agora estou terminando Biologia.

Está noivo de uma também ex-aluna do Instituto Terra, mas avisa que só se casa depois do curso concluído.

Perguntei aos dois por que eles tinham escolhido essa área de estudos.

- Olha, nós dois, tanto Cíntia quanto eu, somos filhos de pequenos proprietários rurais, gostamos da terra - diz ele.

Os pais de Cíntia têm uma propriedade de 40 hectares que produz café conilon. Os de Josenilto, de 25 hectares, produzem café e pimenta. Completamente apaixonados pelo projeto, estão convencidos que é desta forma que se resolverá o problema da degradação dos rios brasileiros. Protegendo um a um os milhares de olhos-d'água dos rios, e tratando o esgoto. E por isso eles não perdem uma chance.

Cíntia passava por uma estrada de Aimorés, quando umas crianças gritaram:

- Ô moça, põe uma plaquinha bonita dessas lá em casa também.

- Então convençam o seu avô a proteger uma nascente.

Assim ela conseguiu mais um.

Eu entrevistava João Folador sobre as nascentes que estão protegidas e o aumento de água na terra dele:

- No começo tinha gente que me dizia, "mexe com isso não. Eles vão tirar sua terra". Eu entrei no programa, e agora tem gente que vem aqui dizendo que quer entrar também.

Josenilto ouvia em silêncio. Acabada a entrevista, ele falou:

- Seu João, quando é uma hora boa para eu vir conversar com o senhor.

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- De tarde. De manhã tenho que tirar o leite, tratar os animais, tem mais trabalho. Vem de tarde, lá pelas 10h.

Marcaram para conversar nessa hora da tarde, às 10 da manhã no Brasil urbano, sobre os novos interessados.

O que Cíntia e Josenilto sonham, além de proteger todas as nascentes do vasto Rio Doce? Querem levar para a terra deles, o castigado norte do Espírito Santo, o que eles estão aprendendo na vida.

Rio dá sinais de que está chegando ao seu limite

Míriam Leitão

Aimorés (MG) e Colatina (ES) - Dos 228 municípios de Minas e Espírito Santo que integram a Bacia do Rio Doce, só 26 têm algum tratamento de esgoto. Apenas Ipatinga trata integralmente os resíduos. Em Governador Valadares não há saneamento básico. Em Colatina começa a ser implantado. O Rio Doce recebe todo o esgoto de 202 municípios e parcialmente de outros 25. A maior parte do resíduo industrial vai direto para o rio. A Mata Atlântica foi devastada na região. O rio corre extremo risco.
As informações são de Leonardo Deptulski, prefeito de Colatina e presidente do Comitê da Bacia do Rio Doce. Ele conta que o rio dá sinais de que está chegando ao seu limite.
- Há quatro anos começou a se agravar o problema da cianobactéria que prolifera quando a lâmina d'água baixa muito na seca. Ela produz um odor terrível, que torna seu uso impróprio. Ainda não se sabe exatamente quais são os efeitos para a saúde humana. Isso é resultado do fato de que menos de 10% de todos os resíduos industriais e domésticos da Bacia do Rio Doce tem tratamento - diz Deptulski.
O Rio Doce sofre outras agressões como a destruição da mata ciliar ao longo de quase toda a margem.
- Ele está sucumbindo aos efeitos da ação humana. Nesta seca, o Doce teve uma vazão de 110 metros cúbicos por segundo. Nos registros históricos a última vez que tivemos uma marca tão negativa foi em 1942. Ou seja, agora é o pior nível dos últimos 70 anos. A ação humana criou uma situação de risco. Este ano está sendo um marco - alerta.
O saneamento básico é um problema grave no país inteiro. O presidente do Comitê da Bacia diz que essa é a tarefa para os próximos anos e décadas na região. Neste momento, ele considera que é fundamental começar a produzir água para o rio, antes que alguns afluentes sequem ou se tornem intermitentes. E o Projeto Olhos D'água, do qual ele se diz um apaixonado parceiro, está fazendo isso.
- Nós estamos aqui na fazenda do João Folador. Ele protege nascentes que produzem água que vão para o córrego do Alegre, depois desaguam no São João Grande e, por fim, chegam ao Rio Doce. O João é um produtor de água. Isso tinha que ser um mutirão. Tem que haver recursos orçamentários. Hoje os recursos para a recuperação e proteção de nascentes são inexistentes - diz.
CONFLITOS PELO USO DA ÁGUA
O quadro é grave em toda a Bacia, mas há regiões, segundo o prefeito, em que já existem conflitos pelo uso da água e em breve pode passar a ter um déficit hídrico crônico.
Eu perguntei onde a situação era mais crítica em todo o Vale do Rio Doce e ele me respondeu falando o nome da cidade onde nasci:
- Em Caratinga é mais grave. De lá em diante a crise é pior. Nós estamos trabalhando com um cenário de redução forte da disponibilidade de água.
O prefeito usa uma expressão bonita para definir a importância do programa do Instituto Terra para reverter esse perigo.
- Onde nasce um rio? Em milhares de pontos que têm que ser protegidos. O olho-d'água é o berço do rio.

O Globo, 19/04/2015, Sociedade, p. 38-39

http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/instituto-inicia-pro…

http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/cacadores-de-nascent…

http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/rio-doce-da-sinais-d…

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