VOLTAR

A aventura da democracia

A Crítica, Tema do Dia, p. A3
07 de Set de 2008

A aventura da democracia
Desafios para se fazer política em São Gabriel da Cachoeira

Leandro Prazeres
Enviado especial

Em uma das regiões mais remotas do Brasil, o exercício da democracia arranca suor e exige sacrifício de quem vota e de quem quer ser votado. Distante 858 quilômetros de Manaus e com 21 mil eleitores, o Município de São Gabriel da Cachoeira tem uma geografia eleitoral peculiar: a maioria do seu eleitorado (11 mil) vive numa das 500 comunidades indígenas espalhadas por mais de 109 mil quilômetros quadrados. Nesse cenário, a reportagem de A CRÍTICA percorreu mais de 1,3 mil quilômetros em 10 dias de viagem, acompanhando a comitiva do candidato Pedro Garcia (PT) e de seu vice André Baniwa (PV), que tentam ser os primeiros indígenas a comandar o mais indígena dos municípios brasileiros. No percurso, encontramos um Brasil onde o português é uma língua quase estrangeira. Um País onde os homens da floresta, assim como os da cidade, vivem numa complexa mistura de esperança e desilusão diante da política.
Nesse local, buscar os votos do interior é fundamental, mas para se chegar à maioria dessas comunidades, só existem dois caminhos: os rios ou o céu. "Não tem como fazer campanha em São Gabriel da Cachoeira sem pensar no interior. São as comunidades que decidem. É uma campanha muito cansativa", afirma Pedro Garcia, da etnia tariano que já foi candidato a prefeito em 2004.
PELO AR
A primeira parte da viagem, iniciada no dia 10 de agosto, prova que esta não é uma campanha "convencional". Para se chegar ao segundo maior colégio eleitoral de São Gabriel - Iauaretê, com quase 4 mil eleitores - foram necessárias uma hora e meia de vôo em um pequeno bimotor. Do alto, um manto verde escuro de árvores até onde a vista alcança.
A parada em Iauaretê é estratégica. O distrito é a "caixinha de surpresas" das eleições de São Gabriel. Além de concentrar os votos da população que vive na comunidade, Iauaretê é o maior pólo de votação do rio Uaupés, onde 15 etnias convivem. "Já teve muito candidato que veio aqui e saiu certo de que venceria. No dia da apuração, vem o susto. Temos um eleitorado muito politizado e é difícil convencê-lo", afirma padre Justino Sarmento Rezende, 47, pároco e articulador social da região.
Após duas horas de discursos em tukano e em português, a comitiva embarca no avião rumo a São Joaquim, uma comunidade localizada na fronteira com a Colômbia.
POR ÁGUA
No dia seguinte, começou a parte mais difícil da viagem. A partir dali seriam nove dias a bordo de uma voadeira de metal com sete metros de comprimento e nenhum conforto. Os seis passageiros se acomodam entre caixas e galões de combustível. Nem prefeituráveis têm privilégios. "Nesse tipo de viagem a gente nunca tem luxo", diz André Baniwa.
Sem paradas, a viagem entre São Joaquim e a sede de São Gabriel duraria aproximadamente cinco dias, mas numa região onde a diferença entre a vitória e a derrota pode ser de 243 votos (foi por essa diferença que Pedro Garcia perdeu em 2004), todas as comunidades são importantes. Em nossa trajetória, mais de 50 comunidades foram visitadas.
SACRIFÍCIO
A viagem em busca do voto começa cedo. Às 5h, todos acordam. Às 7h, no centro comunitário (um retângulo de 4x10 metros coberto com palha) da aldeia em que se dormiu no dia anterior, é servida a primeira refeição do dia: mingau de farinha e café preto. Em seguida, todos embarcam na voadeira e seguem viagem.
Em cada comunidade, o mesmo ritual se repete.
Candidatos são recebidos educadamente pelos "capitães" (caciques) que convocam os moradores do local para ouví-los. Após a recepção, os candidatos falam e depois ouvem as reivindicações das lideranças.
No caso de Pedro e André, os discursos eram em baniwa ou em nheengatu (língua geral), idiomas que André domina.
DIÁLOGO
Foi assim em Juivitera, comunidade com aproximadamente 40 famílias, no médio Içana. Valentim Paiva, 78, é um dos "capitães" mais velhos de toda a região. No início da noite do dia 16, ele recebe a comitiva. As mulheres preparam a refeição para o grupo enquanto os homens falam de política.
"Quando os políticos vêm aqui, prometem um monte de coisas. Aí, a gente vai na sede pra pedir as coisas que prometeram e sempre dizem que não têm dinheiro. Isso, quando recebem a gente", reclama Valentim indignado. Uma viagem entre Juivitera e a sede de São Gabriel pode levar até quatro dias em um bongo (canoa feita com o tronco inteiro de árvores) movida por um motor de 5 hps. Valentim mora em uma das comunidades mais próximas de São Gabriel.

O caminho das pedras

O rio Içana tem 669 quilômetros de extensão e mais de 93 cachoeiras, mas durante a cheia, a maioria delas fica submersa. Mesmo assim, na viagem de Pedro Garcia e André Baniwa, a comitiva passou por seis delas e deu mostras de que buscar os votos das aldeias de São Gabriel pode ser ainda mais cansativo do que se imagina. Para passar por elas, é preciso contorná-las por terra arrastando a voadeira.
Depois de tirar todas as bagagens da voadeira, o grupo recolhe troncos e os colocam no chão para diminuir o atrito entre o bote e o chão. Em seguida, vem a hora da força: é preciso arrastar a embarcação que pesa mais de 400 quilos por até 500 metros.
Foi assim em "Buia", conhecida pelos baniwa como a "mãe de todas as cachoeiras", com 12 metros de declive dispostos em 200 metros de fortes corredeiras.
Cada passageiro pega em um ponto da voadeira e começam a arrastá-la. "Na última viagem que fiz, nós erramos e a voadeira inundou. É uma travessia muito perigosa", explica o vereador e candidato à reeleição Orlando Nogueira.

Busca rápida

O mais indígena entre os indígenas Na região do Rio Negro, existem 23 povos indígenas. De acordo com o Censo Demográfico do IBGE realizado em 2008, 76,5% da população de São Gabriel da Cachoeira se auto-denomina indígena. Esse índice coloca o município como o mais indígena do Brasil.

A Crítica, 07/09/2008, Tema do Dia, p. A3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.