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Avatar é Aqui

Revista Bravo n. 153, mai 2010, p. 52-56
31 de Mai de 2010

Avatar é Aqui
Por que artistas como James Cameron defendem causas como a dos índios do Xingu? E qual o efeito prático desse apoio?

Por Anna Rachel Ferreira e Wagner Gorab

O diretor de cinema James Cameron esteve no Brasil no mês passado com dois objetivos. O primeiro era lançar a versão em Blu-ray (a tecnologia sucessora do DVD, com altíssima definição) de seu filme Avatar, a maior bilheteria de todos os tempos em valores absolutos. O segundo era fazer militância ecológica. Ao chegar em São Paulo no dia 11, um domingo, Cameron foi ao Parque do Ibirapuera plantar uma muda de pau-brasil. Era o pontapé inicial de uma campanha do estúdio de cinema Fox, destinada a plantar um milhão de árvores ao redor do mundo. Na ocasião, estava acompanhado da mulher, Suzy Amis, e da atriz Sigourney Weaver, que em Avatar faz o papel de uma cientista com consciência ambiental. Cameron participou também de um almoço com os índios Sheila Juruna e Kwagadu Xipaya, e integrantes de ONGs como a Amazon Watch e o Instituto Socioambiental. Todos - nativos e entidades - comprometidos com a bandeira que Cameron decidiu levantar: a do protesto contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que provocaria, segundo estudos dos ambientalistas, um impacto devastador no equilíbrio ecológico da Amazônia. Uma causa polêmica: o projeto, orçado em R$ 19 bilhões, é uma das estrelas do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento promovido pela candidata oficial à presidência, Dilma Rousseff.
A militância continuou ao longo da semana. Na segunda-feira, Cameron e sua comitiva foram a Brasília participar de uma manifestação contra a construção da hidrelétrica. O diretor subiu num carro de som e discursou, em inglês (com tradução simultânea) contra Belo Monte. No mesmo dia, Cameron seguiu para a cidade de Altamira, às margens do Xingu. Lá, pegou uma lancha voadeira em direção à aldeia Mrotijan, no rio Bacajá, afluente do Xingu que terá a vazão diminuída para a construção de Belo Monte.
Foi recebido com festa. "Em alguns momentos, os índios nos puxavam e todos dançavam juntos", diz Marcelo Salazar, do Instituto Socioambiental, uma das entidades ecológicas representadas na excursão. Entre os Xicrin Kayapó, em Mrotijan, Cameron recebeu uma visita famosa: Raoni Kayapó, o cacique que em 1989 apareceu em vários eventos ao lado do cantor britânico Sting. Com muito interesse, segundo Salazar, Cameron passou mais de duas horas ouvindo as histórias e reivindicações dos índios. Reafirmou sua intenção, demonstrada numa viagem anterior, de fazer um documentário sobre o assunto, para ser incluído como extra em futuras reedições do DVD de Avatar. Na quinta-feira, o cineasta já estava em Washington, onde contatou o Congresso americano e o presidente Barack Obama para falar sobre o assunto. Nesse momento, a imprensa do mundo inteiro noticiava o engajamento do diretor, que agiria como uma versão no mundo real do protagonista do filme Avatar - um estrangeiro que se apaixona pela causa dos nativos e decide defender a floresta.
SAPOS, COBRAS E INSETOS
No Brasil, a repercussão da turnê de Cameron com os ambientalistas mereceu mais críticas do que elogios. O vice-presidente da república, José Alencar, disse: "Não podemos aceitar isso. Se passar do ponto, teremos que dar um pito nele". Estava implícita na declaração a ideia de que Cameron interferia indevidamente em assuntos de um país que não é o dele. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva bateu na mesma tecla: "Podemos dizer a qualquer habitante do planeta Terra que ninguém tem mais preocupação de cuidar da Amazônia e do nossos índios do que nós". Num único dia, a quarta-feira 14 de abril, Cameron apanhou em três lugares diferentes de um mesmo jornal, a Folha de S. Paulo. O articulista Marcelo Leite, especializado em ciência, o colocou como integrante da "vertente celebritária do ambientalismo". O humorista Helio De La Peña, do grupo Casseta e Planeta, comparou a atitude dos brasileiros diante da viagem de Cameron ao personagem de um comercial de chinelos, um argentino que critica o Brasil. "Como diria o jogador Romário, o cara chegou agora e quer sentar na janela?", escreveu Helio. O colunista José Simão disse que, para os índios, o filme Avatar soava como "Ah, vai tarde!". Diante da militância de Cameron e das reações, duas perguntas ficaram no ar. Por que razão um artista apoia uma causa como a dos índios do Xingu? Empatia sincera, marketing ou desejo de aparecer? E, quando isso acontece, qual o efeito do apoio? Não seria o oposto do que o artista pretende, já que as reações tendem a ser mais de crítica do que de mobilização?
Em primeiro lugar, cabe examinar como o canadense James Cameron se interessou pela questão da usina. Em assuntos de ecologia, seu envolvimento sempre foi pautado mais pelo coração do que por conhecimento de causa.Na infância na cidadezinha de Kapuskasing, o filho de uma enfermeira com um engenheiro eletricista gostava de se embrenhar pela floresta e capturar sapos, cobras e insetos, para mais tarde observá-los no microscópio. Aos 15 anos, apaixonou-se pelos programas de televisão do explorador francês Jacques Cousteau, e decidiu que seria mergulhador. Realizou o sonho aos 17 anos, quando a família se mudou para a Califórnia. Desde então, acumulou 3 000 horas debaixo da água. A motivação ecológica por trás de Avatar tem a ver com essa paixão pelo mergulho. O diretor se preocupa há algum tempo com o fato de o aquecimento global estar destruindo os corais, que são a base da cadeia alimentar dos oceanos. Em dezembro do ano passado, quando do lançamento do filme, ele disse: "Eu não estou querendo fazer as pessoas se sentirem culpadas. Quero apenas que elas internalizem o senso de responsabilidade que temos, por sermos os guardiães do planeta. Com Avatar, acho que posso ajudar a fazer isso por meio da emoção".
O contato com a causa dos índios do Xingu veio depois de Avatar estourar nas telas. Em fevereiro deste ano, durante evento para arrecadação de fundos para uma entidade de pesquisas sobre a Amazônia, em Los Angeles, Cameron conheceu a militante ecológica Atossa Soltani. Ela é fundadora da Amazon Watch, uma ONG californiana criada em 1996 que encampou a causa dos nativos que se opõem à construção da usina da Belo Monte. Atossa soube que Cameron havia sido convidado para o Fórum Internacional de Sustentabilidade, que ocorreria nos dias 26 e 27 de março em Manaus, e ofereceu-se não apenas para acompanhá-lo, mas também para organizar uma excursão ao Xingu. Cameron topou, e desembarcou pela primeira vez em Altamira no dia 28 de março, junto com a mulher e uma comitiva de ambientalistas.
O RIO É O CÉU DOS ÍNDIOS
Juntos, todos se encaminharam à aldeia dos índios Araras, onde integrantes de várias tribos se reuniram para recebê-lo. Lá, Cameron ganhou um cocar amarelo do líder dos Kayapós e um colar vermelho e preto da tribo Xipaya. "Ele é o mais novo guerreiro do Xingu", disse a índia Sheila Juruna, que o presenteou com uma lança de sua aldeia e pintou seu rosto de vermelho — cor que, em sua tribo, simboliza a guerra. Cameron deixou-se fotografar paramentado com os presentes, e assim apareceu em reportagem do jornal americano The New York Times. A matéria diz que índios da região que haviam visto Avatar no cinema acharam que a história do filme se parecia com a deles. Na produção hollywoodiana, mineradores querem desapropriar uma terra onde existe uma árvore sagrada. No Amazonas, a usina de Belo Monte prejudicaria o regime dos rios - que, para a tribo Juruna, é uma espécie de céu, já que a crença local diz que é em suas águas que ficam os espíritos dos mortos (veja quadro).
A partir dos fatos, é possível especular com mais propriedade sobre as razões do apoio de Cameron aos índios. Ele é um profundo conhecedor do ambientalismo? Certamente não. Apaixonou-se sinceramente pela causa dos índios? É possível que sim. Seu apoio à causa dos índios tem um componente de marketing? Sim, como tudo que envolve os grandes estúdios de Hollywood - não é à toa que surgiu a campanha por um milhão de árvores. Sua interferência nos assuntos brasileiros é indevida? Não - numa democracia, qualquer um tem direito de opinar sobre o que quiser, seja ou não nativo no país. Talvez meio sem saber - afinal, não é especialista no assunto - Cameron cutucou um vespeiro. A polêmica sobre a construção da usina de Belo Monte já dura mais de vinte anos. O projeto, elaborado ainda no tempo do regime militar, foi retomado pelo governo petista, pressionado a fazer obras de infra-estrutura que dessem conta da crescente demanda de energia do país. Tornou-se uma das joias da coroa do PAC. Em entrevista a BRAVO!, o ministro de Minas e Energia Márcio Zimmermann destacou o caráter ecológico do projeto. Segundo ele, para minimizar o impacto ambiental, apenas 516 quilômetros quadrados seriam inundados, contra 1.225 do projeto original. Ele afirma também que as áreas indígenas de Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira Bacajá, visitadas por Cameron, não seriam inundadas, ao contrário também do que previa o projeto original (as entidades ambientalistas dizem que, mesmo assim, o impacto na ecologia da região seria considerável). Ainda de acordo com o governo, a usina seria uma fonte de energia mais barata para a região do que eólica, solar, gás, óleo e até carvão.
Por último, cabe perguntar: que efeito a interferência de Cameron terá sobre a opinião pública? O impacto dos artistas sobre causas polêmicas tem variado ao longo do tempo. Pode-se dizer que o marco inicial é o escritor francês Émile Zola, que no século 19 levantou a bandeira do militar judeu Alfred Dreyfus, perseguido num exército de cúpula anti-semita. Ao longo do século 20, as opiniões dos escritores sempre foram ouvidas nos grandes debates mundiais, e a figura emblemática dessa geração é o autor americano Norman Mailer. Apesar de não serem especialistas em nada, eram considerados "humanistas" que mereciam ser ouvidos. Com a chamada "era das celebridades", os cantores pop também começaram a palpitar sobre política. É emblemática dessa geração a figura do Beatle John Lennon, com sua militância pacifista nos anos 70 (Give Peace a Chance, "Dê Uma Chance à Paz", é uma de suas canções mais famosas). A militância dos artistas - ao lado de um jornalismo cada vez mais livre para mostrar imagens chocantes na televisão - ajudaram a minar o discurso que defendia a invasão americana no Vietnã.
TODO MUNDO OPINA SOBRE TUDO
Hoje, a opinião de "humanistas" e artistas do extrato pop é bem menos levada em conta. Cada vez mais crítica, objetiva, cética e bem-informada, a opinião pública prefere os discursos embasados em dados concretos, exaustivamente pesquisados - principalmente nos Estados Unidos, onde são os acadêmicos os agentes culturais mais influentes. Dá-se de barato que artistas que abraçam causas o fazem principalmente pela emoção, como aliás o próprio Cameron assume. A opinião deles é importante, mas não tanto mais do que a de qualquer um de nós - especialmente numa era em que, com a internet e seus blogs, todo mundo opina sobre tudo. Não deixa de ter, no entanto, um efeito. Talvez sem saber, Cameron tocou numa ferida ainda aberta. Após sua partida no final do mês, Belo Monte voltou a ocupar o noticiário com destaque e pontos obscuros sobre a construção da usina foram investigados. A jornalista Míriam Leitão, por exemplo, revelou no diário O Globo ofícios e despachos que mostram que o governo pressionou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Nacionais Renováveis, o Ibama, para que este desse um laudo positivo sobre Belo Monte. De acordo com a jornalista, as pressões provocaram inclusive a substituição da cúpula da organização, que tendia a criticar o projeto da usina. Prova de que, numa democracia, polêmicas sempre são saudáveis e trazem à luz fatos que ajudam na tomada de decisões. E tais discussões são vitaminadas quando o polemista é um arrasa-quarteirão como James Cameron.

Revista Bravo n. 153, mai 2010, p. 52-56

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