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Ativista Txai Suruí faz do direito ferramenta de defesa dos povos originários

Marie Claire - revistamarieclaire.globo.com
Autor: Humberto Tozze
29 de Nov de 2021

https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2021/11/ativista…

É entre os limites dos municípios de Cacoal (RO) e Aripuanã (MT) que vivem os Suruí Paiter, comunidade indígena da qual a ativista e estudante Txai Suruí, de 24 anos, faz parte. Única brasileira a discursar na COP26, ela fez história ao lembrar a importância dos povos originários no combate às mudanças climáticas

Imagine crescer sem saber que a história de seu povo tem mais de 6 milênios. E, mais, que sua cultura e seu idioma constituem a gênese do mesmo território que hoje conhecemos por Brasil. Foi o que Walelasoetxeige Surui descobriu em setembro deste ano após a visita da linguista Ana Suelly de Arruda Câmara Cabral, da Universidade de Brasília (UNB), à Terra Indígena Sete de Setembro, onde vive o seu povo, os Suruí Paiter. Talvez você conheça Walelasoetxeige por Txai Suruí, a ativista indígena e estudante de direito de 24 anos que em novembro passado subiu na plenária de abertura da C0P26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) para falar com os líderes mundiais. Única brasileira convidada a discursar no encontro anual que reúne chefes de Estado com o objetivo de implementar estratégias, a partir das metas do Acordo de Paris (2015), e assim frear o ritmo do aquecimento global, Txai conversou com Marie Claire pouco antes de partir de Glasgow, na Escócia, sede do evento, para Suécia, para continuar as conversas sobre o aquecimento global.

A mensagem de Txai durou contados três minutos. Tempo suficiente para denunciar o descaso do Governo brasileiro no que diz respeito à proteção das populações indígenas e fazer o alerta: a luta contra o aquecimento global não irá adiante se o mundo não escutar os povos originários da floresta. "Há tempos estamos falando sobre isso", diz. "São os indígenas que seguram as florestas de pé." Um dos primeiros efeitos percebidos sobre o desequilíbrio climático foram as mudanças nas frutas. "Elas começaram a nascer fora de época e cada vez menores", conta a sua mãe, Ivaneide Bandeira Cardozo. Culpa da derrubada das florestas, que a cada ano se torna mais preocupante.

O reconhecimento internacional foi instantâneo. A maioria celebrava sua causa e a fala precisa. Outros criticavam de ela não corresponder ao imaginário de como uma indígena deveria vestir ou se portar. Um dos comentários veio de Brasília, a 5 mil quilômetros dali. "Estão reclamando que não fui para Glasgow. Levaram uma índia para lá -para substituir o [cacique] Raoni- para atacar o Brasil", disse o presidente Jair Bolsonaro, que escolheu se ausentar do evento. E a tentativa de intimidação não foi só verbal. Dentro do espaço da COP, Txai lembra de como foi interrompida por um brasileiro enquanto dava uma entrevista para uma emissora belga. "Ele ficava me cercando, tentando interromper as entrevistas. Quando estava terminando uma delas, chegou em mim e disse para eu não falar mal do Brasil. Que o governo estava ali para ajudar, para trabalhar. Foi uma clara intimidação", conta.

Esse episódio, assim como os ataques que viriam depois, acionou o alerta de integrantes das Nações Unidas, que conversaram com Txai a respeito de protocolos de segurança digital. A embaixada brasileira ofereceu suporte e disponibilizou escolta pessoal, medida dispensada pela ativista. "Não achei que fosse necessária. Convivo com ameaças há muito tempo e acho que o perigo maior vai ser quando voltarmos para o Brasil, principalmente porque moro em Rondônia, um dos estados mais bolsonaristas do Brasil, onde mais se visa o agronegócio e o desmatamento."

Ativista de berço

Nascida em uma família altamente combativa, Txai acompanha os pais em manifestações desde pequena. "Foi gestada no ativismo", lembra Ivaneide. A mãe lembra com orgulho de quando, em 2002, protestava junto a seu marido e outros indígenas em frente ao Palácio do Governo de Rondônia, contra as invasões em seus territórios. Os dois desviaram os olhos da menina, na época com 5 anos, por alguns instantes. Tempo suficiente para que ela desaparecesse na multidão e encontrasse o caminho até o falecido deputado federal Eduardo Valverde (PT), que discursava naquele momento, para pegar o microfone de sua mão e clamar ao parlamentar que cuidasse das crianças indígenas. A jovem sempre acompanhou a mãe, mas soube cultivar a própria independência. Foi nas andanças com a Ivaneide que aprendeu o idioma Kawahiva, do povo Uru-eu-wau-wau, o qual considera o seu segundo lar. A língua dos Suruí é o Tupi Mondé.

Aos 8, viu o perigo de perto pela primeira vez, ao acompanhar mãe em uma operação de vigilância para expulsar invasores da terra indígena Uru-eu-wau-wau. E ainda muito nova, em 2021, ela, os irmãos e primos criaram um mapa cultural em 3D sobre os Suruí, em parceria com o Google. A iniciativa nasceu a partir de uma ideia do cacique Almir Narayamoga Surui, pai de Txai, que viajou até a sede do Google, na California, para propor o projeto que ajudaria a proteger as florestas.

Desde jovem, Txai ajuda com os trabalhos de denúncia da Kanindé - Associação de Defesa Etnoambiental, da qual toda a família faz parte. Hoje se ocupa da parte jurídica da associação. "Entendemos que atuar pelo Judiciário também é muito importante para a proteção e salvaguarda dos direitos dos povos indígenas. Porque se a frente de denúncia não vem dando certo, temos que tentar de outras maneiras." Com as irmãs Walelasoepiliman e Walelasoeikngh, a estudante criou no começo de 2020 o Movimento da Juventude Indígena de Rondônia que conta com 1.700 jovens, de mais de 50 etnias. Durante a pandemia, os jovens se mobilizaram para entregar cestas básicas entre os familiares e também entre os indígenas que vivem em contexto urbano. Antes disso, em 2018, integrou o Conselho Estadual da Criança e Adolescente de Rondônia. Ali percebeu que não havia políticas públicas pensadas para a juventude indígena.

Almir se orgulhava em dizer aos outros de sua linhagem que sua filha seria uma grande liderança. Houve uma situação específica, durante a MAPIMAI (Festa da Criação do Mundo), em que Almir colocou a menina em cima de um tronco de uma árvore imensa, no meio da aldeia, e disse a todos que um dia ela iria fazer muito pelos povos indígenas, conta a mãe emocionada. Dentro da etnia Suruí Paiter existem quatro clãs: Gameb (Marimbondos pretos), os guerreiros; Gagbir (marimbondos amarelos), que cuidam das festas; Makor (Taboca), que tratam da espiritualidade; e Kaban (fruta azeda), encarregados das roças. Txai faz parte dos Gameb, responsáveis pela proteção do território e do povo. É a descendência paterna que designa qual clã cada indivíduo fará parte.

Ivaneide, por sua vez, não é filha de indígenas, embora tenha essa ancestralidade. Seu pai, Aldenor Bandeira, era seringueiro, e ela vivia com ele na floresta, dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, mesmo território que Ivaneide viria a lutar pela demarcação anos depois. Desde pequena era incentivada por ele a lutar pelos direitos dos indígenas - missão que tem cumprido durante toda a vida adulta. Hoje, vive escondida em função de ameaças de morte. "Sempre foi difícil, mas agora o bicho pegou." Ela foi uma das fundadoras da Kanindé. As ameaças endereçadas à família eram tantas que em 2012 receberam proteção da Força Nacional, a pedido da então Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Na época, denunciaram explorações ilegais de madeira. Txai e os irmãos, ainda pequenos, eram acompanhados por seguranças por todos os lados que iam. "Eles ficaram um bom tempo com a gente até o momento em que pedimos para deixar de sermos acompanhados, porque aquilo é muito traumatizante. Você é acompanhado por policiais armados o tempo todo, você tem que parar de ir a certos lugares porque são perigosos", conta Txai.

Um trecho do discurso de Txai chamou a atenção de Ivaneide. Foi quando a filha disse que seu povo tem "ideias para adiar o fim do mundo". A mãe entendeu que aquela frase vai além da citação conhecida por intitular a obra de Ailton Krenak, e alude à sabedoria dos ancestrais que sabem que a natureza carrega a sua própria cura. Antes de ter Txai, Ivaneide achava que não poderia ter filhos. Foi pelas mãos da sogra que passou por um ritual com chá e banho de folhas da Amazônia. Quatro meses depois, engravidou. Aquela foi a sua grande cura. "Ela é o resultado de várias lutas, inclusive da luta para nascer." Mãe e filha, em diferentes momentos, fazem o mesmo apelo: pelo fim da destruição das florestas e do apagamento dos povos originários. "A floresta tem a cura. Quem sabe a gente não descubra ali a cura para essas pandemias. Mas para isso precisamos dela em pé", conclui Ivaneide.

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