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Atingidos pelo progresso

O Globo, Razão Social, p. 12-15
20 de Dez de 2011

Atingidos pelo progresso
Histórias de ribeirinhos do Rio Madeira que precisaram sair do lugar onde moravam para dar espaço à Usina de Santo Antônio

Amelia Gonzalez*
amelia@oglobo.com.br
Rondônia, Porto Velho

Quase todos os dias dos 84 anos da vida dela começam da mesma maneira. A viúva Emilia Mendes se levanta às 4 e meia da madrugada, faz um café e senta-se no umbral da casa com a xícara nas mãos. Antes que o sol se levante e comece a incomodar, sempre tão quente, ela se deixa ficar com o olhar perdido para a árvore que tem em frente de casa. O dia só começa mesmo depois de alguns bons minutos de pura contemplação daquela paisagem que Emilia conhece tão bem, palmo a palmo. Afinal, foi ali que nasceu, foi ali que se casou com Vicente, seu único marido. A vida seguia assim, sem tropeços, até que, um dia, Emilia recebeu a visita de técnicos que foram medir o terreno para saber se sua casa seria uma das atingidas pelas águas do reservatório da Usina de Santo Antônio, que está sendo construída em Rondônia. A casa não seria atingida, mas estava numa área de risco, e era preciso tirá-la dali. A equipe da Santo Antônio Energia apresentou-lhe as soluções: receber o dinheiro, ter um crédito para comprar outra casa em iguais proporções na cidade ou se mudar para uma casa novinha construída perto dali. Emilia ouviu calada todas as opções. No final, disse, peremptória: "Daqui eu só saio morta."
Muita gente tentou convencê-la do contrário, os três filhos entraram em ação, mas nada. A solução foi erguer uma casa para Emilia apenas poucos metros acima. No quintal da casa estão as madeiras da residência antiga, que Emilia fez questão de guardar. Vamos encontrá-la já na casa nova, lavando alguma louça num fim de tarde do mês passado. Ela só anda descalça, só dorme em rede, não sabe ler e já tem dificuldades para enxergar. Mas ouve bem e responde com clareza quando pergunto se ela ficou feliz com a solução encontrada:
---- Não gostei não, mas o que eu posso fazer? Dei graças a Deus de ainda estar viva. Eu não entendi nada, não sei porque tiveram que fazer isso tudo - disse Emilia, que nunca aprendeu a ler porque o pai não deixava que as filhas fossem à escola.
Coordenador dos processos de reassentamentos da Santo Antônio Energia desde 2007, Ivan Silveira está nessa estrada há 25 anos, com a mesma ocupação. E se lembra que, quando começou, ainda com alguns resquícios dos tempos do regime militar no Brasil, não tinha nenhum marco regulatório para os empresários explorarem os recursos naturais. A ordem, naquela época, era desenvolver a qualquer custo. Hoje, no dia a dia de sua tarefa em Rondônia, cumpre à risca a legislação ambiental. Para começar, fez inúmeras reuniões e comunicou aos 1.736 moradores ribeirinhos do Madeira que serão atingidos pela barragem de uma das quatro maiores hidrelétricas do Brasil, com 2.218 MW de energia assegurada, os direitos de cada um. Embora reconheça que nesse processo sempre haverá interesses que se conflitam, vê com satisfação o avanço na relação:
--- Só o fato de ter marco regulatório já facilita muito as coisas, tanto para quem está fazendo o empreendimento quanto para os atingidos. Tem famílias e entidades que acham que o empreendedor vai ter que garantir seu sustento pelo resto da vida. Não é bem assim. O estado tem o instrumento regulador, o processo de licenciamento, as compensações. Houve muita discussão com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), fizemos muitas plenárias. Os atingidos tiveram três opções: ou recebiam o dinheiro, ou o crédito para comprar casa, ou vinham para o reassentamento. Na hora de fazermos avaliação dos bens de cada um para pagarmos em dinheiro, sempre avaliamos por alto. Pagamos, em média, R$3 mil por hectare de terra, mas houve pagamentos de até R$6 mil - disse ele.
De comum acordo com o Ibama, a empresa fez campanhas para alertar os moradores de que a melhor opção era o reassentamento. Desse jeito eles teriam, além de uma casa nova próximo ao antigo endereço, o direito de receber em dinheiro aquilo que eles tinham ou produziam e não poderia ser reproduzido no novo local. Se transformassem tudo num único valor, as chances de o dinheiro acabar sem terem realizado nada eram enormes:
---- Tivemos exemplos positivos de aproveitamento do dinheiro e outros que não foram bons. As pessoas gastavam tudo e voltavam querendo mais. Mas foram raros. Basta dizer que tivemos 92% de processos amigáveis e só 8% entraram na Justiça.
Jair Marcolongo foi sozinho para o reassentamento Riacho Azul. A esposa preferiu continuar com o salão de cabeleireiro que tem em Porto Velho e que, atualmente, é a única forma de sustentar as quatro filhas do casal. No sítio que recebeu da Santo Antônio Energia há um ano, ele não conseguiu fazer crescer as plantações de mandioca, abacaxi, mamão. A terra é árida, segundo Jair. Para ele, está muito difícil a vida no novo ambiente. Preferia morar onde sempre morou, onde conseguia plantar banana e vivia também da pesca. Mas o sítio antigo hoje é área de risco de alagamento. Se tivesse tido escolha, Jair teria preferido receber dinheiro pela sua casa antiga. Mas, como não tinha documento provando que o sítio era seu, ficou na lista dos que foram obrigados a aceitar o reassentamento. Recebeu uma ajuda de custo - R$1.200 por mês durante sete meses - e a ajuda técnica do pessoal da Embrapa, mas a produção não deu certo. Achou o dinheiro muito pouco, queria continuar ganhando. E já anda pensando em sair dali. Assuntando daqui e dali, ouviu dizer que tem gente vendendo um sítio como o seu, de dez hectares, por R$80 mil:
----- Dá uma tristeza grande. Queria que tivesse dado certo. Gosto de agricultura. Agora fiz investimento em galinhas: comprei 800 pintinhos mas muitos morreram, ficaram 300. Na verdade, eu tive pouca assistência técnica da Embrapa e a terra aqui não é boa - queixa-se.
A falta de peixe para continuarem exercendo a atividade que mais gerava renda no lugar é uma das maiores queixas dos reassentados. Que algumas espécies vão desaparecer dali, isso é fato. Que os peixes, como animais sensíveis, não devem estar gostando nada do barulho, da poeira e da movimentação no rio, também é fato. Mas que a empresa gastou R$4 milhões num projeto para pôr chips em várias espécies para saber se eles serão capazes de navegar depois das obras, também é fato. Segundo o diretor de sustentabilidade da empresa, Carlos Hugo, não será possível afirmar que vão reduzir a zero o impacto, mas há um forte investimento para tentar minimizá-lo:
- Essa questão da fauna aquática é realmente muito complicada para a situação. O peixe se movimenta ao longo do rio há milhões de anos e um barramento como esse que está sendo feito é realmente complicado para ele - disse Carlos Hugo.
Os cuidados com os peixes envolveram pesquisas. O Ibama exigiu que a empresa focasse em cinco espécies, mas sabe-se que várias delas não conseguirão mais se reproduzir ali no Madeira depois que a usina estiver instalada. É o desenvolvimento econômico mostrando uma de suas faces menos sustentáveis. Como minimizar o baque na vida de quem sempre teve a pesca como geração de renda? Ivan Silveira minimiza:
- Não vai dar para afirmar que a pesca no Madeira se tornará inviável. O projeto ainda não foi concluído. A questão é que eles estavam acostumados com um tipo de pesca, de arpão, na Cachoeira do Teutônio. A pesca vai continuar, mas não desse jeito - disse ele.
Sebastião Ferreira do Nascimento tem 59 anos, três filhos, e sempre viveu da sua pesca. Há pouco tempo descobriu um câncer, tipo raro, nos olhos, que o obriga a ficar em casa, a nova casa onde mora agora, perto das filhas, no reassentamento Riacho Azul. Do dia da mudança ele guarda uma lembrança triste, que chama de "o chororô das filhas". Mas hoje está tranquilo, gosta mais do lugar onde mora porque ali não tem bandido, como tinha onde morava. Mas, de uma coisa tem certeza: ali no Madeira, onde sempre pescou, não vai mais ter peixe:
- De peixe eu entendo. A empresa fica dizendo que nós vamos voltar a pescar, mas isso não vai acontecer. Os peixes não têm como subir, não têm como passar. Quem tirou foto daquela cena bonita, quando eles subiam a cachoeira aos pulos, que guarde. Porque isso não acontece mais não.
O trabalho de visita às comunidades, onde os moradores começaram a ser registrados, iniciou-se em 2007. Durante esse processo, o Ibama exigiu que a Santo Antônio revisse a área de seu reservatório, acrescentando 25 a 30 mil hectares para envolver a área de remanso.
- Saímos de cerca de 800 reassentados para mais de 1.700 porque o Madeira varia muito, ele extravasa na cheia e forma os igarapés na seca. Fizemos nossa Área de Preservação Permanente a partir deste remanso, por isso tivemos que mexer com um número maior de pessoas, para que elas não ficassem numa área de risco - explica Ivan Silveira.
Das 1.736 pessoas, apenas 500 foram reassentadas. As outras preferiram levar só o dinheiro.
Estava um mormaço quente quando chegamos ao sítio de Lucenilce Monteiro Nascimento, logo na entrada do Riacho Azul, na BR314. Ativa, ela se preparava para pegar a picape Strada que comprou com o dinheiro que recebeu da indenização e ir até a cidade fazer compras. Simpática, aceitou parar um pouco a função para conversar. Controu que foi uma decisão difícil entre pegar o dinheiro e ir para o reassentamento. Preferiu virar uma reassentada, ir para um lugar onde poderia continuar a fazer o que ela e a irmã, Lucimeire, sempre fizeram na vida: plantar e colher mandioca:
- Eles ainda ajudaram dando o adubo para prepararmos a terra. O resto foi conosco. Eu gostei disso. O que conseguimos ganhar aqui dá para comprar a gasolina, comer, vestir os meninos. Comprar carro foi um investimento porque precisamos ir até a cidade (Porto Velho) para comprar e vender, não é luxo. Se não tivéssemos o carro dependeríamos do frete, que é mais caro. Gostei daqui, mas sempre é difícil sair do lugar onde se mora, né?
O Movimento dos Atingidos por Barragens esteve presente em todo o processo de negociação, segundo Ivan Silveira. Às vezes fazendo reivindicações barulhentas, outras se queixando do Ibama, que deveria ter feito uma avaliação mais ampla sobre os reassentamentos. A empresa se defende dizendo que atendeu "em grande parte" todas as reivindicações.
--- Umas coisas não conseguimos atender. O MAB queria, por exemplo, que todos os reassentados tivessem isenção de energia elétrica e auxílio de três salários durante cinco anos. Isso não podemos fazer -- arremata Ivan Silveira.
Eram 15h, estava muito quente quando chegamos à casa de Maria Josene Taumaturgo, de 42 anos. Ela dormia, tentando aproveitar o clima gostoso fornecido pelo ar condicionado que comprou com o dinheiro da indenização. Recebeu a comitiva, encabeçada pelas assistentes sociais Valdineuza Borges e Ideisa França Martins, da ONG Centro de Pesquisa de População Tradicional, com um sorriso. Mas ali todo mundo conhece o temperamento forte de Josene, e sabe que ela não tem papas na língua.
Essa casa é o sonho de toda dona de casa. O problema é que tem gente que não tem dinheiro para manter uma casa dessas. Até para manter limpa é caro. E já tem quem esteja vendendo por R$35 mil, quando o preço seria R$80 mil.
O outro problema Josene sentiu depois que instalou o ar condicionado: a conta de energia veio alta:
A Santo Antonio tinha dito que ia nos dar um ano de energia grátis, até a gente se adaptar, e eu mandei ver no ar condicionado. Agora, não querem pagar. Comprei as coisas para decorar a casa e o dinheiro já está indo embora. Para sobreviver, meu marido tem uma oficina de carro e eu lavo e passo roupa. Mas aqui não tenho quase freguesas.
No processo de reassentamento, a empresa é obrigada a voltar aos locais das novas moradias para saber se está tudo indo bem. O Ibama cassa a licença se isso não for feito. Com 12 meses do trabalho iniciado, a equipe de técnicos que revisitou os locais já detectou problemas. O auxílio que estavam recebendo para se estruturarem já está acabando, e muitos reassentados querem mais dinheiro:
- Fomos ver o que aconteceu e, depois de investigarmos, achamos que não é justo continuarmos a pagar esse dinheiro - disse Ivan.
O bar chama a atenção de quem passa pela estrada em direção ao Riacho Azul. Maria Aparecida, de 42 anos, teve que lançar mão da indenização que recebeu para juntar aos R$40 mil que teve direito já que, onde morava, ela também tinha um ponto comercial. Só assim conseguiu erguer o bar que fica na frente da casa onde mora com o marido e três filhos. Aparecida não tem uma visão otimista. Para ela, a indenização foi muito pouca e os fregueses apareciam mais no outro bar, que ficava num lugar menos ermo. Ela também sente falta da pescaria:
--- Hoje, se a gente quiser um peixe tem que ir ao mercado comprar. Antigamente, não. Era peixe a toda hora, fresquinho na nossa mesa. Mas, o que fazer? É o progresso, né?
Também comerciantes, o casal Damair Alves de Oliveira e Paulo Casimiro de Lima, ambos com 65 anos, agora têm um bar novo, todo pintado de azul e na beira da estrada. Mas foi difícil tomar a decisão de aceitar sair do seu canto, que virou área de risco, para outro, mesmo mais novo e atraente:
--- Eu já estava acostumada, morava lá há 50 anos, não queria sair. Mas quando me disseram que ia ser preciso mesmo, decidi vir, fazer o quê, minha filha? - disse Damair.
Em parceria com a prefeitura, a empresa abriu a escola Riacho Azul, que está sendo dirigida por outra reassentada, Francisca Brito Salles, de 56 anos:
---- Eu morava no Humaitá, mas me mudei em 2008 para este lugar. Logo depois, descobrimos que teríamos que sair da nossa casa. É triste porque a gente fica pensando nas árvores que deixou para trás. Mas fiquei feliz em poder trabalhar aqui e ainda temos chance de plantar mandioca para ganhar nosso sustento.
Na escola, há 61 alunos, de 6 a 16 anos, quase todos reassentados. As instalações são ótimas, mas há somente três professores. Segundo a diretora, há uma expectativa de a prefeitura conseguir contratar pelo menos mais três. Desde que consiga convencer os professores a se deslocarem para tão longe.

O Globo, 20/12/2011, Razão Social, p. 12-15

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