O Globo - https://oglobo.globo.com/
14 de Jan de 2025
Ataque de pistoleiros a assentamento do MST reforça escalada da violência no campo, fomentada pelo crime organizado
Disputas agrárias têm se acentuado nos últimos anos, com destaque para 2023, quando foram registrados 2.203 casos no Brasil
Por Samuel Lima - São Paulo
14/01/2025 03h30 Atualizado agora
O ataque de pistoleiros contra um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Tremembé (SP), na região do Vale do Paraíba, é mais um capítulo da crescente violência no campo, que ganha novos contornos com a atuação recente do crime organizado no comércio irregular de lotes da reforma agrária. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram uma escalada de casos no Brasil nos últimos anos, assim como uma alta de registros em São Paulo.
O ano de 2023 foi o de maior incidência de conflitos na série histórica da CPT. Foram registradas 2.203 ocorrências. Em São Paulo, foram 38 conflitos por terra, 13 casos de trabalho escravo no meio rural e cinco disputas pela água - total de 56 casos contra 30 de 2022. Dados relativos ao 1o semestre de 2024, divulgados em dezembro, mostram que a incidência continua alta, ainda que em ritmo um pouco menor do que no ano anterior.
Fontes apontam o enfraquecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a pouca efetividade no combate a criminosos no meio rural como fatores que estimulam a violência e vitimam famílias que resistem a ceder os espaços em troca de dinheiro.
A principal linha de investigação sobre o caso de Tremembé é a de que Antônio Martins Santos Filho, conhecido como Nero do Piseiro, teria organizado uma chacina depois que lideranças do movimento se recusaram a permitir a tomada de um lote do assentamento Olga Benário negociado por criminosos. Ontem, foram enterrados os dois mortos no ataque, Valdir do Nascimento de Jesus, de 52 anos, e Gleison Barbosa de Carvalho, de 28. O ministro Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário, foi até Tremembé no fim de semana e lamentou o episódio.
Segundo o advogado da CPT, Eduardo de Macedo Cunha, essas vendas de lotes têm ocorrido em todo o estado, com grupos criminosos e milícias aliciando e intimidando agricultores:
- As lideranças do MST e de outros movimentos organizados do campo ficam sempre sendo a linha de tiro dessa turma, porque denunciam esses casos ao Incra.
A instituição, porém, não tem atuado da maneira como deveria, na avaliação de Cunha, muito por falta de estrutura. Cabe à autarquia federal investigar as denúncias e pedir o despejo de quem ocupa as terras de maneira indevida.
- O Incra hoje é uma mentirinha. Quantas vidas teremos que perder?
A superintendente estadual do Incra, Sabrina Diniz, diz que o atual governo retomou a política de fiscalização que teria sido abandonada na gestão de Jair Bolsonaro (PL), a quem acusa de fazer "vista grossa" e subnotificar os casos:
- As invasões começaram a ser mais constantes e a se fixar dentro desses territórios que antes eram mais organizados pelo MST, por conta do histórico de ocupação. Quando vem um governo progressista, com forte parceria com os movimentos sociais, esses invasores se sentem ameaçados, e aí se organizam para destruir as lideranças, aniquilar as lideranças locais.
Em 2023, no próprio assentamento Olga Benário, a superintendente afirma que uma invasão foi revertida após notificação do Incra. O lote acabou desocupado. Ela admite, no entanto, que a pasta só conseguiu regularizar cerca de três mil terrenos até o momento, cerca de metade da demanda estimada.
Lideranças do MST entendem que o poder público está falhando na governança dos territórios de reforma agrária. Márcio José, um dos coordenadores do movimento, diz que "sobra tudo para as comunidades" depois da destinação dos lotes:
- A gente consegue segurar da maneira que dá, mas chega uma hora que o conflito evolui para um episódio armado para o qual não estamos preparados. E nem é papel do movimento social fazer isso, deveria ser papel do Estado.
O militante relata ainda uma espécie de "jogo de empurra" entre as polícias, com os órgãos estaduais agindo apenas em caso de emergência por se tratarem de áreas federais e a PF afirmando que não é seu papel oferecer proteção aos acampamentos. Por conta disso, defende a criação de uma polícia agrária e varas judiciais especializadas.
As fontes consultadas pelo GLOBO apontam uma série de locais como de risco para repetição de episódios como o da semana passada. Diniz, por exemplo, fala em regiões próximas a penitenciárias, como Iaras e o próprio Vale do Paraíba. Cita ainda denúncias de arrendamento ilegal e ameaças em Colômbia, que fica próxima a Barretos.
O advogado da CPT lembra que o Pontal do Paranapanema, no extremo oeste do estado, palco de diversos conflitos agrários na década de 1990, também é um ponto de atenção, assim como Agudos e Andradina. Cunha ressalta, contudo, que a prática de venda de lotes está espalhada por todo o estado e o país.
Não é tanto uma coincidência esse tipo de conflito estar se acentuando em São Paulo, na opinião do geógrafo e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Bernardo Mançano Fernandes, pelo fato de o estado apresentar um nível de urbanização elevado.
- Grande parte dessas terras estão próximas às cidades, e isso traz uma série de interesses e forças legais e ilegais - aponta o pesquisador. - Eu sei de vários casos que estão acontecendo, de pressão imobiliária, do narcotráfico querendo entrar nos assentamentos, com as milícias fazendo esse trabalho.
Conflitos agrários
O histórico de massacres no campo já vitimou 302 pessoas desde a redemocratização, em 1985, de acordo com dados da CPT. Destas, pelo menos 64 foram identificadas como agricultores sem-terra e 13 como assentados.
As duas mortes registradas em Tremembé não estão contabilizadas, pois a atualização mais recente dos dados ocorreu há dois anos e a metodologia considera como massacre apenas episódios com três ou mais assassinatos.
Segundo relatos, um grupo de criminosos invadiu o assentamento, por volta das 23h, e efetuou os disparos sem qualquer aviso. Além dos dois mortos, seis pessoas ficaram feridas.
Entre os casos listados consta um ataque a tiros em um assentamento de Felisburgo (MG), em 2004, protagonizado pelo dono da fazenda e que deixou cinco mortos e 12 baleados.
Grande parte dos conflitos envolvem também confrontos entre sem-terra e a polícia, como nos massacres de Corumbiara (RO), em 1995, e Eldorado dos Carajás (PA), em 1996. Apenas esses dois casos somam 28 vítimas.
https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/01/14/ataque-de-pistolei…
As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.