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Asfalto na Floresta: BBC Brasil percorre a BR-319 na Amazônia

BBC Brasil - www.bbc.co.uk
Autor: Eric Camara
27 de Out de 2009

Para uns, "estrada da destruição"; para outros, "rodovia do futuro", a BR-319 (Porto Velho-Manaus) - construída na década de 70, parte do projeto do governo militar brasileiro de integrar a Amazônia, e abandonada na década seguinte - é uma síntese dos desafios fundamentais para a região: preservar e desenvolver.

O repórter da BBC Brasil, Eric Camara, está percorrendo os quase 900 quilômetros da rodovia - já pavimentados ou ainda esburacados - para ver de perto como o polêmico reasfaltamento da estrada deve afetar a vida dos moradores e a natureza da região.

Transamazônica e Apurinãs

Pode ser o nome, a extensão, a localização, sei lá. A rodovia Transamazônica sempre pareceu ter um ar meio mitológico.

Para começo de conversa, são quase 5 mil quilômetros de estrada, cortando a Amazônia de leste a oeste. O tipo de obra faraônica com a qual é difícil não se deixar impressionar.

Nesta terça-feira, a expedição da BBC Brasil passou por 35 quilômetros dela. É inevitável quando se passa por Humaitá pela BR-319 rumo a Manaus.

Inevitável também foi perceber que a lendária Transamazônica é, em alguns trechos, nada mais que uma estradinha de barro, dessas que se vê levando a sítios do interior.

A diferença é que vira e mexe aparecem enormes retro-escavadeiras e caminhões do Exército, que trabalham na duplicação e repavimentação das pistas.

Pouco depois de voltar à BR-319, uma placa quase apagada informa: Manaus a 640 quilômetros.

A entrada para a aldeia Tucumã, da etnia Apurinã, fica poucos quilômetros adiante.

E foi em frente a ela que nós nos encontramos com cerca de 20 indígenas.
O cacique da aldeia Tucumã, Luiz Apurinã, não parecia totalmente convencido sobre as vantagens da repaveamento da BR-319.

"Se vai ser positivo? Olha...", vacilou o líder, enquanto a irmã atrás "soprava": "vai ser muito positivo para nós."

Ninguém parece estar muito certo das consequências que a obra pode ter sobre os Apurinã.

Pudera, segundo Luiz Apurinã, grileiros e criadores de gado já são uma ameaça presente na vida da aldeia Tucumã.

"Quanto mais a estrada melhora, mais chegam brancos, né?", disse Martinho Apurinã, um dos moradores mais antigos da aldeia.

Para eles, o mais urgente é a demarcação das suas terras. Sem isso, eles temem perder espaço rapidamente com a reabertura da estrada.

Moradores já reclamam até de madeireiros e extrativistas ilegais, que estariam comprometendo a subsistência da aldeia Tucumã.

O chefe-substituto da Funai em Humaitá, Raimundo Parintintin, disse que o problema deve ser solucionado em breve.

"Está sendo feito um levantamento detalhado sobre a situação nessas terras. Nós entendemos a situação deles e queremos demarcar as terras o mais rápido possível", afirmou..

Enquanto esperam, os Apurinã da BR-319 tentam chegar a uma opinião sobre as vantagens da possível reabertura da estrada.

Família do Jipe Clube

Muita gente deve achar essa nossa expedição um tremendo programa de índio (sem trocadilhos, por favor) - se meter nos confins da Amazônia, n uma estrada esburacada e muitas vezes perigosa, acampando pelo caminho...

O fato é que nós, da equipe da BBC, estamos evidentemente a trabalho - embora, ficar esperando presidente em lobby de hotel cinco estrelas me pareça um fardo bem mais pesado.

Digressiono. Outros três integrantes da equipe de apoio também estão trabalhando, afinal, eu não gostaria de enfrentar a BR-319 enfrentando um carro de aluguel.

Todos são integrantes do Jipe Clube de Porto Velho. Outros dois jipeiros vieram "de carona" (no carro deles, é claro). Só pela aventura.

Fica quase tudo em família: dois irmãos, Leonardo e Tiago e pai e filho, Antônio Ferreira da Silva, o Toninho, e Igor.

E assim finalmente cheguei no ponto.

Nunca fui de gostar de carro, mecânica, essas coisas, mas imagino que poucos programas aproximem mais um pai a um filho, ou mesmo dois irmãos, do que passar cinco dias de sufoco na Floresta Amazônica.

Parque Nacional do Mapinguari

Para quem não conhece, os arbustos e árvores baixas podem até dar a impressão de que a área foi desmatada recentemente, mas o chamado cerrado amazônico é tudo menos isso.

São campos considerados minas de ouro para cientistas - viveiros da biodiversidade amazônica.

Foi em uma dessas regiões de cerrado amazônico que uma nova espécie de gralha foi registrada pela primeira vez pelo pesquisador Mario Cohn-Haft, há menos de um ano.

Ao longo da BR-319, há diversos campos como estes, que podem ser vistos em imagens de satélites.

Eles aparecem como manchas amarelas que - para os leigos, é bom repetir - podem parecer focos de desmatamento. A diferença é que esses tais "focos" ao longo da BR-319 ficam em locais bastante inacessíveis.

Só se chega até eles com um mateiro e várias horas abrindo trilhas floresta adentro.

Por isso é que decidimos pegar um atalho: fomos até o recém-criado Parque Nacional do Mapinguari.

Lá vimos cotias, araras, muitas andorinhas, papagaios e até rastros de anta, o maior mamífero da América do Sul.

Da "nova" gralha, nada. Mas tudo bem, tivemos uma bela impressão do que os inimigos da reabertura da BR-319 dizem estar sob risco de sobrevivência, caso ela realmente seja inteiramente recuperada.

A partir desta segunda-feira, vamos começar a encontrar as pessoas que vivem às margens da rodovia, muitas vezes em condições de pobreza com enormes dificuldades de acesso a serviços básicos, como saúde e educação.

Não vou ficar surpreso, se descobrir que para essas populações, a importância da incrível biodiversidade amazônica fique em segundo plano, diante da necessidade de, por exemplo, chegar rapidamente a um hospital.

Porto Velho

Sob um calor inclemente, na rodoviária de Porto Velho, uma passageira cercada de malas e caixas, reclama do preço que pagou pela passagem de avião para voltar de Manaus à capital rondoniense.

Mais de cem quilômetros estrada acima, no assentamento Renascer, a professora primária conta que há cinco anos dá aulas no local e, por falta de transporte público, é obrigada a pegar carona na ida e na volta.

As duas histórias tem como ponto comum a BR-319. No trecho urbano da rodovia, onde fica a rodoviária, a autônoma Hilda Oliveira me contou que pagou R$ 300 pela passagem aérea.

Já a passagem do ônibus da Eucatur que liga Porto Velho a Humaitá, no Amazonas, a última parada na rodovia, é bem mais barata: R$15.

De acordo com o gerente da empresa na capital de Rondônia, Maximino Bedin, se estivesse em operação, o trecho até Manaus chegaria a uns R$ 120 e encheria até seis ônibus por dia.

Até Humaitá são quatro serviços por dia, mas para Márcia da Silva, que ganha menos de R$ 700 por mês como professora da rede municipal, o preço é proibitivo.

Ela teria que pagar o valor do bolso diariamente para saltar no Renascer, um povoado com 68 famílias nas margens da BR-319.

Em vez disso, ela se vira como caroneira para percorrer as quase duas horas que separam o local da capital do estado vizinho.

As duas mulheres veem nos planos de reabertura da estrada a expectativa de uma qualidade de vida melhor.

Hilda de Oliveira diz que visitaria a filha em Manaus mais frequentemente. A professora Márcia sonha com a instituição de transporte público.

O que pude perceber, entretanto, é que pelo menos no caso da professora, mais do que solução direta para os problemas do assentamento Renascer, a BR-319 é vista como uma impalpável esperança no futuro.

Na escola municipal de 80 alunos em que Márcia trabalha não há segundo grau.

"As crianças aqui são praticamente condenadas a parar de estudar, por falta de escola depois do ensino médio", diz.

Eu pergunto o que a BR-319 tem a ver com isso, e ela me diz que pelo menos assim o governo deve voltar a olhar para as pessoas que vivem à beira dela.

Antes da partida

De Porto Velho a Manaus, a nossa equipe vai trazer diariamente vídeos, fotos, sons e reportagens sobre as condições das comunidades e da natureza exuberante da região.

Faltando pouco mais de um mês para o início da reunião sobre mudanças climáticas das Nações Unidas em Copenhague, na Dinamarca, o equilíbrio entre preservação e desenvolvimento na Amazônia brasileira assume proporções globais.

O desmatamento é responsável por cerca de 20% das emissões dos gases que provocam o efeito estufa no planeta. No Brasil, de acordo com os dados oficiais (de 1994), ele responde por mais de 70% das emissões nacionais.

Se, como criticam os adversários do projeto, o reasfaltamento da BR-319 levar à derrubada da floresta, o Brasil vai ter dificuldades em manter os compromissos de desmatamento já assumidos internacionalmente, como parte do programa nacional de combate às mudanças climáticas.

Os defensores da ideia, no entanto, afirmam que todas as medidas possíveis para resguardar a floresta estão sendo tomadas e que não pavimentar a rodovia é condenar as populações da região ao abandono.

Acompanhe a expedição da BBC pelo mapa interativo na nossa página www.bbcbrasil.com e pelo Twitter (bbcamazonia) para viver com os nossos repórteres o dia-a-dia na BR-319 e tirar as suas próprias conclusões sobre a polêmica.

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