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Arte milenar revela riqueza cultural do Brasil

O Globo, Ciência e Vida, p. 52
01 de Fev de 2004

Arte milenar revela riqueza cultural do Brasil
Análise de pinturas e gravuras encontradas de norte a sul do país reconstitui vida de sociedades extintas

A Ilha do Campeche, em Santa Catarina, atrai turistas pela beleza de suas praias. Há cerca de quatro milênios, porém, era um dos lugares escolhidos por grupos hoje desaparecidos para gravar inscrições em rochas à beira mar. Passados tantos séculos, tais inscrições, em sua maioria desenhos geométricos, integram painéis que figuram entre os melhores exemplos de arte pré-histórica no Brasil.

Os desenhos geométricos das ilhas de Santa Catarina estão também entre os sítios que a arqueóloga Madu Gaspar, do Museu Nacional/UFRJ, gostaria de ver conhecidos pelo grande público como símbolos de uma ignorada monumentalidade da pré-história do Brasil. Autora de "Arte rupestre no Brasil" (Jorge Zahar Editor), o primeiro livro sobre arte pré-histórica brasileira voltado para o público leigo, Gaspar defende a arqueologia como militância para valorizar um patrimônio que a maioria dos brasileiros desconhece.

Para a pesquisadora, as pinturas e gravuras milenares genericamente rotuladas como arte rupestre (em rocha) não são importantes apenas devido ao apelo estético ou à antigüidade, mas também por serem caminhos para o conhecimento de uma diversidade étnica e cultural extinta. A seguir, Madu Gaspar fala sobre como o estudo da arte rupestre tem contribuído para erradicar estereótipos sobre os primeiros povos a habitar essas terras milênios antes de elas passarem a ser chamadas de Brasil.

RIQUEZA CULTURAL: "Ainda hoje permanece enraizada a idéia equivocada de que as sociedades pré-históricas brasileiras eram muito primitivas. Mas quando observamos, por exemplo, as pinturas do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, do Vale do Peruaçu, em Minas Gerais, e os impressionantes desenhos gravados em rochas voltadas para o mar aberto, em lugares de acesso perigoso, nas ilhas de Santa Catarina, percebemos que essas pessoas não eram movidas somente por uma incessante busca de comida, como se costuma pensar. Havia domínio do simbólico e forte apelo estético. A pré-história brasileira era um caldeirão cultural. São milhares de anos de ocupação."

HERANÇA: "A arte pré-histórica é uma herança e também uma porta para um mundo que acabou, para o qual não temos referência. Por isso, temos dificuldade de interpretá-la. Contemplamos um painel pré-histórico com nosso olhar moderno, imediatista, centrado no artista, na estética. Mas quando falamos em pré-história estamos nos referindo a trabalhos muitas vezes coletivos e feitos ao logo de muitas gerações. Muitos dos grafismos e desenhos que vemos hoje integravam sistemas de comunicação, tinham um valor social importante."

MOTIVAÇÃO: "O que chamamos de arte pré-histórica era, em parte, um instrumento fundamental de comunicação. De norte a sul do Brasil, há referências a nascimentos, puberdade, caçadas e também recados simples, algo como 'estive aqui'. Alguns estudiosos vêem uma forte ligação com a magia. Mas não penso que seja apenas isso. Certamente pinturas e desenhos eram também um meio de comunicação, algo pertinente para aquelas sociedades. Talvez, alguns desses desenhos representassem mensagens características de certos grupos sociais, assim como hoje tatuagens e piercings também passam mensagens em nossa sociedade."

ILHAS: "Os desenhos geométricos de ilhas de Santa Catarina são um exemplo interessante de como o que chamamos de arte era também uma forma de comunicação. Os grafismos estão em ilhas, algumas delas de acesso perigoso, mas acredita-se que foram escolhidas por representarem pontos importantes para as pessoas que os fizeram. "

A COR DO PASSADO: "Agora começam a surgir técnicas sofisticadas para analisar com mais precisão a idade, a origem e a composição dos pigmentos usados na pré-história. Havia muitas tonalidades e algumas desapareceram."

GEOGRAFIA DA PRÉ-HISTÓRIA: "Ao associar uma pintura pré-histórica com seu contexto (localização, composição, artefatos encontrados no local etc.) podemos tentar reconstituir o passado, ou pelo menos ter uma visão parcial dele. Um pingo de tinta pode contar uma grande história."

UM PAÍS ANTIGO: "É fantástico ver que o Brasil está recuperando seu passado. O Brasil não é um país jovem. Tem milênios de ocupação e cultura. Sabemos que já havia gente aqui há 12 mil anos. Foi na Amazônia que surgiu, por exemplo, a primeira cerâmica das Américas. Não temos pirâmides, mas há seis mil anos grupos do litoral erguiam sambaquis de 25 metros de altura. O brasileiro precisa ter conhecimento disso para que possa se orgulhar e proteger seu patrimônio."

O Globo, 01/02/2004, Ciência e Vida, p. 14

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