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Arte Baniwa a expressão cultural

ARC Design n. 29, mar./abr. 2003, p. 26-36
Autor: ESTRADA, Maria Helena
30 de Abr de 2003

Arte Baniwa a expressão cultural

Maria Helena Estrada
Fotos Pedro Martinelli

Desenhos milenares inscritos nas pedras, conhecimentos de botânica adquiridos na própria vivência na mata, destreza manual, cultura revalorizada. Desses ingredientes é feita a arte Baniwa.
A obstinação de antropólogos, sociólogos, educadores, etnobotânicos e agrônomos reunidos em torno a organizações dedicadas ao trabalho junto às comunidades indígenas, soube valorizar e dignificar a arte indígena e viabilizar o desenvolvimento sustentável desse grupo étnico, tornando possível a comercialização de seus artefatos.

Alto Rio Negro, Bacia do Rio Içana, fronteira com a Colômbia e a Venezuela. É nesse pedaço de Floresta Amazônica que se encontra uma população de 12 mil índios, sendo cerca de 4 mil no Brasil, ocupando a maior parte de uma área de 100.000 km2 (solos áridos e pobres, manchas descontínuas de terra firme separadas por igapós), no Estado do Amazonas. É a etnia baniwa, parte do grupo linguístico aruak.
Sabe-se: as populações indígenas, nessa região e em todo o Brasil, se submeteram ao trabalho escravo, foram catequizadas, dizimadas. Pela força do branco, o próprio índio passou a duvidar do valor de sua cultura.
Habitando há séculos o extremo noroeste do Brasil, os povos baniwa vivem tradicionalmente da cultura da mandioca brava e da pesca. Seus artefatos, usados apenas para consumo da tribo, passaram aos poucos, e em pequenas quantidades, a serem trocados por bens de consumo, ou ainda - costume estabelecido pelas missões católicas - "pagos" com roupas usadas.
Mas essa realidade começa a mudar.
"Nos últimos cinco anos a produção artesanal baniwa assumiu uma forma de economia autônoma e autodeterminada", escreve em sua monografia Lucia Peixoto Calil. Essa mudança tem sido conduzida por três organizações: Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI) e Instituto Socioambiental (ISA), cada uma em sua função específica, que detalharemos ao final.
O que é a arte baniwa? Como ela consegue ser fiel às suas características milenares? Por que esse artesanato é visto como arte?
O homem baniwa colhe o arumã, recolhe as plantas que servirão para o tingimento e a fixação das cores, prepara e corta a palha, realiza o trançado das peneiras, dos cestos e do tipiti. A mulher baniwa rala, espreme a massa de mandioca ralada no tipiti, coa na peneira, processa a mandioca: faz farinha e beijus nos artefatos criados pelo seu homem. É assim desde sempre.
Além da peneira e do tipiti, os baniwas tramam os urutus (ooloda, na língua baniwa), que servem para guardar farinha, beiju ou roupa, e também a mandioca, antes ou depois de espremida no tipiti.
O arumã (Ischnossiphon) cresce em touceiras, em terrenos úmidos ou semi-alagados, e brota após o corte. Além do arumã, os baniwas também usam a jacitara, o caranã e o javari. E, lendo esses nomes de plantas brasileiras, nos damos conta de quanto desconhecemos nosso país!
Quando aparecem motivos geométricos a cores, estas "sílabas gráficas" têm um significado simbólico específico, com claras referências à rica mitologia e religiosidade dessa etnia.
Um cesto ou uma peneira, que podem nos parecer trabalho elementar, tomam forma por meio de um sofisticadíssimo processo. "Fazer cestaria de arumã com esmero é tornar-se adulto, atestado de como sobreviver no mundo", escreve o antropólogo Beto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro (ISA), no livro "Arte Baniwa". No ritual de iniciação, os meninos baniwas em reclusão aprendem a fazer cestaria de arumã, cujas peças serão ofertadas à kamarara, amiga ritual.
Hoje São Paulo tem à disposição no comércio, muitas vezes sem mesmo se dar conta do que tem em mãos, peças originais da arte baniwa. E quando falamos em originais, queremos dizer que são peças nas quais não há vestígio da mão branca ou "moderna" em sua confecção, que o arumã é colhido, preparado e tingido, que o trançado é executado exatamente, há pelo menos mais de 500 anos, da mesma forma. Mas até chegarem a São Paulo ou a qualquer outro destino comercial, a odisséia é das mais árduas!
O artesão, de modo geral, trabalha na cestaria nas horas vagas, depois de exercer suas atividades na agricultura, na caça, na pesca, na fabricação de ralos de madeira, canoas e remos e, eventualmente, na construção das casas. Você ainda acredita na lenda de que índio é preguiçoso?
Para a cestaria o arumã é cortado, desbastado, amarrado em feixes e levado à aldeia; separa-se a casca (que vai ser usada) do miolo (parte dele servindo para o trançado da embalagem); cortam-se as talas, milimétricas, e o artesão pode decidir usar o arumã ainda com a casca, ou raspar e arear os colmos em um igarapé. No caso de trabalhar com grafismos coloridos, os colmos são tingidos antes da retirada das talas. Trabalho demorado, os tingimentos vermelhos são obtidos de plantas (urucu, carajuru, bignoniáceas) e, os pretos, da fuligem do querosene ou do óleo diesel, ou ainda da cinza dos fornos. Os fixadores são seivas viscosas extraídas da entrecasca do ingá ou de algumas outras árvores, finas lascas retiradas com facão, que são esmigalhadas e espremidas no tipiti. A partir daí, começa o trançado. E essas são as etapas de mais fácil realização!
Hoje a tradição da cestaria está sendo transmitida pelos mestres, escolhidos pelas próprias comunidades entre os melhores artesãos, que nas escolas ensinam os jovens índios.
O inacreditável, no entanto, é o transporte dos urutus, balaios, jarros e peneiras - devidamente embalados nos paneiros -, que começa com o carregamento dos bongos (barcos). Cada bongo transporta oito pessoas e cem dúzias de urutus. Barcos carregados descem rio abaixo, e a cada cachoeira a mercadoria é toda descarregada, transportando-se por terra, nos braços e ombros, cestos e barcos; calmaria no rio, recarrega-se tudo, até a próxima cachoeira - são pelo menos dez (!) no trajeto iniciado na aldeia, no Alto Rio Içana, até São Gabriel da Cachoeira, em uma viagem que pode levar uma semana. Neste ponto, a cestaria viaja 30 km para ser reembarcada no Porto de Camanaus; mais três dias até Manaus, e então, em balsa e caminhão, via Belém, são mais 2.120 km até São Paulo.
Mas como coordenar essa produção quando uma cadeia de lojas como a Tok & Stok, por exemplo, faz um pedido? Quantidades por tipologia, prazo de entrega, controle de qualidade, embalagem correta, etiquetagem, são condições fundamentais para que se possa ter uma venda continuada. Como fazer chegar os pedidos aos artesãos, muitas vezes vivendo em comunidades isoladas? Como montar uma cadeia produtiva?
Parece inviável o processo, se pensarmos na distância e precariedade de meios para se alcançar os "locais de produção".
Mas a engrenagem tem funcionado, e com precisão. A empresa ou loja, no momento do pedido, entra em contato com o ISA, em São Paulo, que avisa a FOIRN, em São Gabriel da Cachoeira; esta comunica as condições da encomenda à OIBI, que entra em contato com sua referência na aldeia Tucumã-Rupitã. Pelo rádio, alerta-se as comunidades sobre o volume e a data de entrega, programando cada artesão individualmente.
O artesão ajusta sua rotina diária reservando um dia, ao menos, para cortar o arumã, extraindo de 100 a 200 colmos, que produzirão duas meias-dúzias de urutus pelo sistema de encaixe, ou seja, com alturas e diâmetros decrescentes, em duas semanas de trabalho.
Cinquenta dias após a divulgação da encomenda, inicia-se a viagem para recolher a produção em cada comunidade, anotando quantidade e crédito.
Depois disso você diria, ao escolher um cesto baniwa em uma loja de São Paulo, ou de outra cidade do Sul, que comprou um simples cesto de lixo ou de guardados?
Nesse ponto levanta-se uma das questões relativas à comercialização dos artefatos da tribo baniwa, da arte baniwa. Vistos como utilitários em uma loja de produtos diversos, obedecendo aos preceitos mercadológicos, cada tipologia irá para um departamento: cesto baniwa com cesto de plástico, peneira baniwa com peneira de metal. Como evitar essa desagregação? Como manter intacto o enorme valor cultural e ambiental dessas peças, que traduzem nossa cultura mais remota?
Considerações desse tipo fazem parte das preocupações do ISA.
Retomando a origem do processo, vemos que a escolha da atividade da cestaria como experiência-piloto de formas alternativas de geração de renda mostrou-se um caminho viável, depois de algumas experiências de outra natureza.
Comprovam essa escolha encomendas como a da Tok & Stok e as vendas corporativas, como as 2 mil unidades de urutus no lançamento da linha Ekos, da empresa Natura.
Mas a revalorização e comercialização da cestaria é um dos elos da cadeia de um projeto maior. O Programa Regional de Desenvolvimento Indígena Sustentável do Rio Negro é uma parceria de longo prazo entre o ISA, o FOIRN e as associações indígenas filiadas. Esse programa inclui um vasto "cardápio" de ações integradas nas áreas de demarcação e fiscalização das terras, direitos, comunicação, transporte, educação escolar, valorização da cultura e da agrobiodiversidade, saúde e segurança alimentar.

Organizações envolvidas no projeto Arte Baniwa:
Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI). Responsável por toda a gestão do processo, até a etapa de entrega ao comprador.
Instituto Socioambiental (ISA). Identifica mercados potenciais e assessora contatos comerciais. Assessoria institucional na definição de estratégias de desenvolvimento do projeto, atuação política e articulação da OIBI com outras instituições indígenas, governamentais e da cooperação nacional e internacional.
Federação das Associações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Apoio de comunicação e logística em São Gabriel.
Para maiores informações:
OIBI (Organização Indígena da Bacia do Içana): oibiwatsa@poranganet.com.br
ISA (Instituto Socioambiental): (11) 3660-7949, com Natalie; natalie@socioambiental.org
Fontes:
Arte Baniwa: cestaria de arumã. Beto Ricardo. São Gabriel da Cachoeira - São Paulo, 2001.
Fazendo Arte e Inventando Novas Tradições: a experiência de comercialização da Arte Baniwa. Lúcia Peixoto Calil. Texto fotocopiado.

ARC Design n. 29, mar./abr. 2003, p. 26-36

http://www.arcdesign.com.br/revista-detalhes-edicao.php?codRevista=75

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