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Arrendamento é um dos principais desafios na gestão territorial de áreas indígenas

ISA - NSA
Autor: Bruno Weis
26 de Jul de 2006

Aluguel de parte de TI Kaingang para sojicultores, no Rio Grande do Sul, provoca expulsão de 300 índios e faz com que a Funai reafirme a ilegalidade da prática. Diante da falta de alternativas econômicas para os povos nativos, contudo, o arrendamento de Terras Indígenas (TIs) para atividades agrícolas ou pecuárias segue sendo feito em diversos pontos do Brasil.

Uma Instrução Normativa (IN) publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no Diário Oficial da União, no final de junho, lançou luz sobre um problema na gestão territorial das áreas indígenas que costuma permanecer à sombra, muitas vezes por interesse dos próprios índios: o arrendamento de Terras Indígenas (TIs). A IN n o3, de 28 de junho, proíbe a prática, reiterando um veto existente na própria Constituição Federal e no Estatuto do Índio (artigo 18), de 1973. O problema é que a lei não vem sendo respeitada e o aluguel de parte de TIs em muitos pontos do Brasil gera uma série de conflitos dentro e fora das comunidades envolvidas. Entre os principais, os impactos ambientais das atividades econômicas - principalmente pecuária e cultivo de soja - e cisões e desagregações de aldeias, com o surgimento de lideranças indígenas mais interessadas no acúmulo de bens e dinheiro do que nos interesses da coletividade.

O mais recente conflito ocorreu na Terra Indígena Ligeiro, no Rio Grande do Sul, onde vivem 1.900 índios Kaingang. Ou viviam. Uma disputa interna entre lideranças envolvidas com o arrendamento de parte da área para sojicultores resultou na expulsão de 300 índios da TI em fevereiro passado. De acordo com a Funai, um dos caciques da Ligeiro estaria alugando parte da TI para fazendeiros em troca de investimentos na correção e preparação das terras para o cultivo da soja, além de parte da safra colhida.

Juracilda Veiga, antropóloga do Núcleo de Cultura e Educação Indígena e editora do Portal Kaingang, afirma que o que vem ocorrendo na TI Ligeiro são sub-arrendamentos, com idosos e mulheres sendo pressionados a ceder seus pedaços de terra para a liderança associada aos sojicultores. "As roças das famílias são expropriadas em troca de um rancho (cesta básica) mensal. O cacique lhes diz que não vale a pena plantar se eles podem receber os alimentos prontos". A antropóloga nota uma mudança radical nas formas de liderança na comunidade. "Antes os caciques eram marcados pela generosidade, eram aqueles que davam sempre mais do que recebiam. O cacique atual virou um déspota, interessado apenas em enriquecer a ele e aos seus".

Luis Fernando Vilares, procurador-geral da Funai, explica que os grupos Kaingang da TI Ligeiro que não concordam com o arrendamento pediram ao governo uma declaração expressa do órgão contra a prática. "O caso da TI Ligeiro foi a gota d´água, mas existem vários casos de arrendamento no País que temos acompanhado. Dada a gravidade do conflito na Ligeiro, a Funai teve que dar uma resposta". No final de junho, parte da população expulsa retornou à TI Ligeiro escoltada pelas polícias federal e militar, mas a Funai mantém um grupo de trabalho (GT) na localidade para mediar o conflito, traçar um plano de gestão territorial da TI e desenvolver projetos de geração de renda que sejam alternativas ao arrendamento.

O episódio motivou a Funai a publicar a IN - na qual um artigo prevê punições aos funcionários do órgão federal coniventes com a prática. O procurador Vilares admite que funcionários do órgão se beneficiem de processos de arrendamento, muitas vezes recebendo dinheiro para intermediar os contratos, mas diz que o mais comum é que os servidores sejam omissos diante da prática. "Os chefes de posto que fazem vista grossa devem sofrer punições, seja suspensão ou advertência". O procurador, entretanto, não dispõe de um levantamento das punições efetuadas pela Funai junto aos seus servidores envolvidos.

Em texto a ser publicado na nova edição do livro Povos Indígenas no Brasil (2001-2005) - com lançamento previsto para outubro -, Juracilda Veiga, que também é a coordenadora do GT da Funai na TI Ligeiro, explica que nos últimos anos a demanda de produtos agrícolas pelo mercado internacional gerou uma nova pressão sobre as Terras Indígenas. "Ao mesmo tempo em que várias delas foram recuperadas, por estarem amparadas no direito constitucional, essas terras estão voltando ao mercado através da prática de arrendamento, feito em parcerias entre indígenas e particulares", escreve Veiga. "Essa prática acontece tanto através de parcerias entre alguns índios quanto através de 'cooperativas indígenas', o que transformou as terras indígenas em bens de mercado. Esse mecanismo tem impedido a muitas famílias indígenas o acesso à sua terra ancestral, transformando as aldeias em dormitórios, jogando a população nas piores e mais desprotegidas formas de trabalho, tais como: carregamento de aves, corte de erva mate, colheita de maçã e de uva".

Arrendamento e parceria: o caso Kadiwéu

O arrendamento é uma prática antiga e disseminada em Terras Indígenas de todo o País. Muitas vezes, é travestida de "parceria pecuária" ou "parceria agrícola", entre índios e fazendeiros, para permanecer no terreno da legalidade. A diferença entre as modalidades, de acordo com parecer do jurista Roberto Santos, reside no fato de que, no arrendamento, os índios transmitem a terceiros a posse da terra - ainda que temporariamente - para que os arrendatários desenvolvam suas atividades de criação e engorda de gado, por exemplo, e paguem aos índios pela cessão dos pastos. Isso é proibido pois as terras indígenas são bens da União de posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas. No caso das parcerias, contudo, a terra permanece na posse dos índios, que recebem o gado de terceiros, mas ficam responsáveis pela atividade econômica. O que se divide, então, não é a terra, mas o lucro pela venda dos animais e seus produtos. Na prática, porém, ambas as modalidades se misturam e se confundem, muito em função da falta de aptidão da maioria das etnias indígenas para a pecuária.

Uma rara exceção ocorre com os índios Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, em um dos casos mais antigos e documentados de arrendamento e parceria pecuária em terras indígenas. Conhecidos como "índios cavaleiros", os Kadiwéu sempre demonstraram familiaridade com a criação de animais de grande porte. Em verbete publicado em 1999 na Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil, a antropóloga Mônica Thereza Soares Pechina, da Universidade de Brasília, afirma que os criadores de gado do Mato Grosso do Sul começaram a invadir a área indígena Kadiwéu, em meados do século passado. Tinham inclusive autorização do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o órgão federal à época responsável pela política indigenista do governo brasileiro. No começo dos anos sessenta, mais de 60 contratos de parceria pecuária haviam sido efetivados entre os índios e fazendeiros.

Muitos dos contratos, entretanto, maquiavam o arrendamento de parte do território Kadiwéu. A antropóloga diz que "esta ocupação alterou significativamente a utilização pelos índios de seu território. No início da década de 1990, eram 89 as fazendas arrendadas no interior da Terra Indígena Kadiwéu, as quais se estendiam pelo território quase que na sua inteireza, de forma a ficarem os índios espremidos nas suas aldeias." A especialista afirma também que, além do número de cabeças de gado sempre excederem ao combinado nos contratos, a quantidade de animais provocou o esgotamento dos recursos naturais do território. Os contratos de parceria foram, inclusive, objeto de investigação por parte do Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul.

Até o final dos anos oitenta o pagamento das taxas e a gestão dos contratos de parceria eram geridos pela própria Funai, quando passaram a ser controlados diretamente pela Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu (ACIRK). A verba do aluguel das terras consistia, então, na principal renda das comunidades indígenas. No começo dos anos noventa o governo federal iniciou um processo de despejo dos fazendeiros arrendatários que obteve relativo sucesso e redundou na consolidação da autonomia indígena no território. Os problemas, entretanto, não cessaram. "A necessidade da garantia da sua subsistência, hoje ainda mais difícil na ausência da renda, por um lado, e a forte pressão que sofrem de ex-arrendatários e de arrendatários recalcitrantes, por outro, mostram a gravidade do quadro", escreve Pechina. "Para a consolidação de uma nova situação que venha de fato a atender os seus mais legítimos interesses, os Kadiwéu precisam contar com uma estrutura que a viabilize e concretize. Os Kadiwéu anseiam tornarem-se pequenos criadores mediante um projeto auto-sustentável. Para tanto, necessitam de gado e de apoio técnico condizente. Necessitam, enfim, de efetivo apoio, sobretudo governamental".

Falta de alternativas

O antropólogo André Amaral de Toral compara, no livro Terras Indígenas e Unidades de Conservação da natureza - o desafio das sobreposições, publicado em 2005 pelo ISA, a situação na Ilha do Bananal, no Tocantins, com as parcerias entre os Kadiwéu e pecuaristas no Mato Grosso do Sul. "Não existe, na Ilha, a possibilidade de desenvolver uma parceria para a criação de gado como ocorre, por exemplo, no Mato Grosso do Sul", afirma. "Uma coisa é uma cultura historicamente familiarizada com o cavalo e criação de gado como os Kadiwéu. Outra coisa é uma sociedade de pescadores e artesões como os povos da língua Karajá, interessados econômica e culturalmente mais na rede hidrográfica da ilha do que nos campos que a entremeiam."

No artigo, Toral sustenta que o arrendamento das Terras Indígenas na Ilha do Bananal tem crescido nos últimos anos e provocado divisões nas comunidades. Sobre a TI Inãwébohona, dos Javaé, Karajá e Avá-Canoeiro, o antropólogo diz que "não existe, no âmbito das comunidades indígenas, uma posição fechada em relação ao aluguel das terras". Toral, que coordenou o GT da Funai para identificar e delimitar a TI, também afirma que "entre as lideranças Javaé existe praticamente um consenso a respeito das vantagens de se alugar a terra. Alegam a falência da assistência oficial da Funai e do estado do Tocantins, além da inexistência de projetos alternativos".

Sobre a forma de arrendamento, Toral diz também que "... os ganhos não são canalizados para projetos de interesse da comunidade; antes, permanecem restritos às famílias de lideranças legítimas dessas aldeias. Os preços praticados são abaixo do mercado regional e os índios são submetidos a todo tipo de trapaça. Via de regra, as cabeças não são contadas e existe muito mais gado na Ilha do que o declarado". Ele conta também que geralmente quem se opõe ao arrendamento são os grupos familiares que estão excluídos do negócio. "Seu sonho é separar-se da aldeia e iniciar uma nova, onde possam ganhar dinheiro com o arrendamento".

A pressão da soja

A falta de alternativas econômicas também está por trás das "parcerias" firmadas entre sojicultores e povos indígenas do Mato Grosso. Em outro artigo para a nova edição do livro Povos Indígenas no Brasil (2001-2005), o geógrafo Dan Pasca afirma que "parte das comunidades Pareci não vê outra alternativa à inserção no sistema econômico do agronegócio. No entanto, o modelo de parceria agrícola vigente parece ser mais um passo na expropriação da terra e dos recursos naturais dos povos indígenas. Contratos que prevêem a participação dos Pareci com a terra e a mão-de-obra em troca de um retorno de menos de 2% do valor da colheita caracterizam uma parceria bastante desigual".

O geógrafo afirma que "a área cedida pelos Pareci para a plantação de soja subiu para 1.400 hectares em 2003 e alcançou 2.000 ha. em 2004, gerando um retorno de 3 sacas (180 quilos) de soja por hectare para os Pareci, face a uma produtividade de 55 sacas por hectare. Em 2005, ano de crise da sojicultura no País, a área plantada diminuiu para 1.700 ha., resumindo-se a contrapartida a uma saca (60 quilos) de soja por hectare, o que corresponde a menos de 2% da colheita".

Os casos de arrendamento no Mato Grosso são tantos que a publicação da Instrução Normativa pela Funai, no mês passado, provocou preocupação na Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato). O temor recai sobre a possibilidade de apreensão de máquinas e bens agrícolas que estiverem dentro de terras indígenas, o que está previsto na IN. Em reportagem publicada no Diário de Cuiabá, a assessora jurídica da Famato, Elizete Araújo, afirma que a entidade não sabe quantos hectares de áreas indígenas estão arrendados no estado. "De qualquer forma vale lembrar que há cerca de dois anos, quando muitos contratos de arrendamento foram firmados entre produtores e índios, houve a anuência de funcionários da Funai. Agora somos pegos com esta medida que apavora um setor tão prejudicado por decisões da União nas últimas duas safras", afirmou.

De acordo com Dan Pasca, a pressão da soja no Mato Grosso é sentida principalmente pelos povos Xavante, Enawenê-Nawê, Nambikwara e Pareci. Sobre estes últimos ele conta que a pressão dos sojicultores começou ainda na década de oitenta, quando estes estavam interessados na abertura de uma estrada que cortasse as TIs Utiariti e Pareci para facilitar o escoamento de suas produções. A estrada foi aberta e os índios tiveram como contrapartida o fornecimento de combustível para as viaturas da Funai e das comunidades indígenas, implantação de lavouras mecanizadas, formação de pomares, assistência agrícola, abertura de estradas interligando as aldeias e intercessão junto ao governo estadual para a construção de um hospital.

A pressão do agronegócio sobre a utilização de áreas dentro das TIs demarcadas passou a crescer. "Alguns grupos locais Pareci entenderam que, para melhorar a sua situação, não lhes restaria outra alternativa que firmar contratos de arrendamento com seus vizinhos sojicultores", escreve o geógrafo. Apesar de o Ministério Público Federal ter embargado alguns contratos de arrendamento, dada sua ilegalidade, Pasca conta que os fazendeiros e algumas comunidades Pareci decidiram continuar as "parcerias" informais. "Desde 1995, os Pareci vinham plantando arroz e posteriormente soja, com o auxilio de seus vizinhos (prefeitura de Sapezal, grupo AMaggi etc.), que doavam sementes e financiavam adubos e agrotóxicos. A área inicial de 60 ha. expandiu-se gradativamente ano a ano".

A soja aparentemente conquistou uma parcela das lideranças Pareci. Dan Pasca conta que, em 2003, a estrada que corta o território indígena foi bloqueada para dar visibilidade às reivindicações destas lideranças, a saber: autorização para projetos de parceria agrícola e liberação de financiamento para plantio da soja. "Representantes da Funai, enviados para negociar a liberação da estrada, foram feitos reféns", lembra o geógrafo. "A situação, descrita como extremamente tensa na mídia local, se acalmou - como por um passe de mágica - com a chegada dos representantes do governador. Na ocasião, uma série de medidas foram tomadas e prometidas pelo governo do estado para agilizar o processo".

Soja versus gado

As conseqüências do arrendamento de terras indígenas variam muito em razão da atividade alocada nas áreas. Os impactos da pecuária em áreas já degradadas de terras indígenas, por exemplo, são muito menores, em princípio, do que a abertura de lavouras de soja em áreas de mata preservada. Quando os Panará, por exemplo, voltaram para seu território original no Mato Grosso divisa com Pará, em 1999, uma pequena parcela da área havia sido convertida em pastos. A população indígena não dispunha de nenhuma fonte de renda ou alternativa econômica e decidiu arrendar os pastos para fazendeiros.

Até a União indenizar em 2003 os Panará por danos morais e materiais causados pelo contato pelo homem branco, o dinheiro do arrendamento foi a principal base de sustentação financeira da comunidade, e afetava apenas mil hectares, ou 0,25% da TI Panará. A atividade segue existindo até hoje. "Mas, ao contrário daquele tempo, estes recursos não são mais imprescindíveis", avalia André Vilas-Boas, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental. "O problema é que os resultados das alternativas econômicas, fomentadas nas aldeias com o manejo de recursos naturais, são de médio prazo. Os índios têm dificuldade de encerrar de vez a relação com os pecuaristas e falta a eles um melhor esclarecimento sobre os aspectos perversos desta relação por parte da Funai e do Ministério Público".

O advogado Fernando Mathias, do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, afirma que o arrendamento (ou suas variantes legais) tem prosperado em um ambiente de ausência de políticas consistentes de gestão territorial para povos indígenas. "Dependendo da região, esse cenário tem implicações mais ou menos graves do ponto de vista socioambiental", avalia Mathias. "Na fronteira agrícola, por exemplo, a figura do arrendamento traz consigo os riscos de desmatamento, poluição por agrotóxicos e perda de direitos territoriais por restrição da posse permanente dos índios sobre suas terras. Em outras regiões, onde essa pressão econômica não se verifica, pode ser que o arrendamento seja a única alternativa diante do vácuo de políticas públicas voltadas ao atendimento de demandas básicas de alimentação, saúde e renda".

Seja qual for o cenário, sublinha o advogado, o arrendamento é sempre uma alternativa surgida de fora para dentro, que é tanto mais utilizada quanto maior for o interesse de uso econômico da terra por terceiros. "Na medida em que não surge como prioridade própria da comunidade, a prática pode sempre suscitar desagregação social". Fernando Mathias ainda afirma que qualquer solução simplista de "legalizar" ou "proibir" o arrendamento pouco contribui para equacionar o problema. "A questão requer estratégias de curto prazo, para coibir casos em que haja dano aos povos indígenas (perda da posse territorial, conflitos internos ou degradação ambiental), bem como ações de médio e longo prazo que permitam criar alternativas econômicas que reconheçam e valorizem o patrimônio ambiental e cultural existente nas terras indígenas de forma mais rentável do que o arrendamento".

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