VOLTAR

Arquipélago de privações

O Globo, Razão Social, p. 10-13
06 de Dez de 2011

Arquipélago de privações
Às vésperas do plebiscito no Pará, marajoaras buscam identidade própria e sustentável

Camila Nobrega*
camila.nobrega@oglobo.com.br
Marajó, Pará

Às vésperas do plebiscito no Pará, marajoaras buscam identidade própria e sustentável Em comum, os moradores dos 16 municípios do arquipélago de Marajó têm a exuberância dos rios do Pará, o popular isopor com camarão e açaí debaixo do braço nas viagens de barco e a paixão pelo carimbó. Mas, por trás da imagem de ilha alegre e turística, a população marajoara carrega estatísticas gritantes, como a média de um médico para cada cinco mil habitantes, mortalidade infantil acima dos 20% e, em alguns municípios, incidência de malária em um terço da população, segundo levantamento recém lançado do Instituto Peabiru, com dados de 2010, parte do projeto Viva Marajó, que tem apoio do Fundo Vale. Às margens das políticas públicas do Pará, os marajoaras vão às urnas semana que vem, dia 11, para votar o plebiscito do desmembramento do estado. Mas a resposta que queriam dar não é nem "sim" nem "não". Na esperança de mudanças econômicas, ambientais e sociais, eles estão em busca de uma identidade própria que tenha a sustentabilidade como base. Querem se tornar um território federal, independente.

Líder da Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó (Amam) e moradora do município de Curralinho, Marília Tavares é uma das que defende a proposta. Segundo ela, a realidade das ilhas, que formam o maior arquipélago fluvial do mundo e uma das maiores reservas de água doce do planeta, é o abandono do poder público. Na situação atual, nem o meio ambiente nem as pessoas estão protegidas.

- Se dividir o estado, não quero ser paraense. Quero ser território federal, marajoara - disse, ressaltando as reivindicações do movimento, enquanto saboreava um prato de açaí com farinha, acompanhando espetos de camarão assado, típicos da região - Não nos falta comida. Isso a natureza dá, mas aqui vivemos de outras carências, de informação, de acesso à educação, à saúde básica, ao saneamento. É claro que é preciso preservar as nossas águas e florestas, mas há seres humanos no Marajó. Uma coisa não fica bem sem a outra.

Percebendo isso, a própria população está se movimentando, buscando parcerias, gritando ao poder público. Eles estão atrás do tripé da sustentabilidade, buscando mais participação social, certificação de produtos orgânicos, como o açaí (ver box na página seguinte) e repensando a educação e o acesso à saúde. Não querem mais ver suas crianças se prostituindo, ou morrendo logo após ao nascer. É pela ausência de investimentos estaduais no extenso território de mais de 100 km2 que a associação local defende a emancipação. O projeto de transformação do arquipélago em território federal tramita no Congresso Nacional desde 2002 e ganhou novo fôlego com a proximidade do plebiscito, que propõe a divisão do Pará em três estados: Tapajós, Carajás e Pará. Se o estado for dividido, o arquipélago do Marajó será território paraense, mas a população de 456 mil habitantes dos municípios marajoaras está buscando outro destino, o que se tornou uma polêmica entre o governo do estado e a União.

Em meio a essa queda de braço, está a população do arquipélago. O Marajó de que estamos falando aqui não tem nada a ver com a ilha que ganha páginas de guias turísticos. Na maioria deles, não há búfalos, nem hotéis, nem turistas. Em muitos, sequer há as belas praias de rios que ilustram a internet quando se busca a palavra "Marajó". A parte turística se restringe a dois municípios, Soure e Salvaterra, que recebem quase todos os visitantes da região. Nos outros 14 municípios, as atividades econômicas são, basicamente, a pesca, o açaí e a farinha, além da madeira.

São cidades onde comuns são cenas de esgoto sendo lançado diretamente na água do rio onde crianças e adultos se banham ao pôr do sol e a ausência de tratamento da água antes de beber. Nem o rio é preservado, nem a saúde da população. Fazem parte do cenário também a chegada e partida de barcos - as famosas gaiolas - lotadas de redes que levam os marajoaras à capital, Belém, ou até Macapá, capital do Amapá, mais próxima em alguns casos. Eles viajam até 30 horas em busca de atendimento médico adequado, de produtos de supermercados da capital, e de educação. Em média, para frequentar uma escola local, uma criança leva cerca de quatro horas de barco para ir, oito no total de um dia. Mas, para frequentar uma universidade, a maioria precisa ir a Belém. São casos que se tornam prioridade da família, já que são tão poucos.

No município que visitamos, Curralinho, outra imagem recorrente é a de moças com rosto de meninas que, antes de completar 18 anos, ostentam barrigões que dão à luz um terço da população local, segundo o diagnóstico do instituto Peabiru. A gravidez precoce é um dos principais motivos de evasão escolar e de problemas de renda nas famílias que se formam antes do tempo, não só em Curralinho, mas em todos os municípios marajoaras. Segundo o líder comunitário Assunção Novaes, o Cacau, por mais que tenha havido conscientização, o problema começa na própria cultura local.

- Quando a menina menstrua, para a população ela já é mulher. Muita gente ainda não entende que é um processo de formação - disse Cacau, que está às voltas com o problema dentro de casa - Eu milito pelo Marajó e pela conscientização, mas acabo de saber que minha filha de 13 anos está grávida.

Cacau também defende a emancipação do território, e um olhar mais sustentável para o Marajó:

- Nós também somos a floresta. Sabemos, na prática, que sem educação, sem saneamento e sem projetos, o homem não tem como conviver bem com a natureza.

Mas a pergunta que veio à tona com a proximidade do plebiscito é: a quem pertence, afinal, o arquipélago de Marajó? O Instituto de Terras do Pará (Iterpa), responsável pela criação de assentamentos da reforma agrária no estado, reivindica a posse. Segundo o presidente do Iterpa, Carlos Lamarão, de acordo com a constituição de 1988, só ilhas que fazem fronteira com outros países são território da União. Não é o caso de Marajó. Por isso, ele defende que, caso o estado se divida, o arquipélago fique no Pará.

- Temos que ter cuidado com os movimentos sociais. Eles querem se tornar território federal, mas o Acre melhorou algo com isso? Se ficarem no estado, vai haver investimentos também, em educação, saúde. A situação lá é preocupante - disse ele, justificando a ausência do governo estadual na região - É um território muito extenso. E ainda vive num sistema quase feudal. Grandes fazendeiros eram paternalistas e se encarregavam de prover alimentos. A população se adaptou dessa forma. É preciso definir de quem é a propriedade, para começarmos os investimentos de fato.

No entanto, a Secretaria de Patrimônio da União é taxativa: de acordo com a Constituição Federal, as ilhas reivindicadas pelo Pará são de posse da União. E pela União, o território, após o plebiscito, continuaria submetido ao governo federal, o que pode levar à emancipação das ilhas no futuro. O caso ameaça ir parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, enquanto a briga política segue, a população continua sobrevivendo às duras penas.

Já os paraenses de Belém fazem coro com o Iterpa. Estão com medo da divisão e da perda de Marajó, como contou Geraldo Santos, dono de uma barraca no Complexo Ver-o-Peso, o mercado central da capital.

- Não queremos perder Marajó. O povo não quer que o Pará se divida.

Há dois meses, o maior lucro de Geraldo na barraca são camisas e bandeiras do Pará. Algumas estampas são diretas e dizem: "Não à divisão". A proximidade do plebiscito incitou um sentimento de territorialismo na população de Belém. Por dia, Geraldo e a esposa têm vendido uma média de 30 bandeiras do estado, penduradas em lojas, bares e botequins, feiras e até varandas.

Mas os paraenses em geral não conhecem a realidade de Marajó, por onde passa um quarto de toda a água do planeta. Ainda de acordo com o diagnóstico do projeto Viva Marajó, os marajoaras sequer têm para onde destinar o lixo, que vai parar nos rios. É o que leva aos altíssimos níveis de verminoses, hepatite, doença de Chagas, entre outras que assolam os municípios do arquipélago. Os moradores não acreditam mais na presença do estado, como o morador de Curralinho Marco Baratinha:

- Não chegam investimentos estaduais aqui, só federais, como o bolsafamília, o Pronaf. Por isso queremos ser território federal.

Segundo ele, por trás desse conflito está o interesse do Pará em aumentar a arrecadação. Nas ilhas em disputa, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) faz assentamentos. O Incra concede títulos de uso da terra a famílias, sem dar a propriedade definitiva. Mas o Pará quer cobrar para dar título permanente de propriedade.

Segundo o coordenador do projeto Viva Marajó, Carlos Augusto Ramos, há oito milhões de hectares que estão ocupados por fazendeiros, sem posse legal, e que podem ser destinados a pequenos produtores, para cultivo do açaí:

- O Marajó é importantíssimo para a humanidade. É um estuário, com vários ecossistemas. Mas o Brasil não conhece a região, e a situação é calamitosa. Por isso, a aposta é no território federal. Faltam inclusive dados oficiais. Estamos dialogando com o Ministério Público e com as prefeituras, porque eles precisam dos dados do diagnóstico que fizemos.

Em Curralinho, nem a prefeitura tem estado aberta a diálogos. Tentamos localizar o prefeito por meios oficiais e com ajuda da Amam, mas não conseguimos. Mas, saindo de Marajó, o que fica na cabeça é outra coisa: embora a situação seja de calamidade pública, os sorrisos são fartura daquele lugar. Se for até lá, guarde um tempo, para aceitar dezenas de convites para tomar um cafezinho na casa dos moradores.

Travessia de barco para Marajó pode durar mais de 24 horas

Ao pisar no barco, o cenário lembra o lado lúdico de um picadeiro. Mas, em vez de artistas embolados em trapézios e tecidos, redes coloridas se amontoam penduradas nos ferros da embarcação, embalando personagens da vida real. Saindo de Belém, a viagem até o município de Curralinho leva em média nove horas de balanço de rio para quem quer dormir, ou de muito tecnobrega para os que ficam no último andar tomando uma cerveja.

A maioria dos passageiros dorme, já que a travessia continua para os outros municípios, e há quem leve mais de 30 horas para chegar a seu destino. Ao contrário da equipe de reportagem, que estava lá pela primeira vez para acompanhar a exibição do filme "Expedição Viva Marajó" em Curralinho, a travessia faz parte do cotidiano dos moradores do arquipélago do Marajó. Eles enfrentam a imensidão e escuridão do rio Pará e de seus afluentes para ir ao médico, em busca de universidades, de emprego e até de alguns produtos que não chegam às pequenas cidades que compõem a região.

Para a técnica de enfermagem Maly Guimarães, de 56 anos, moradora do município de Breves, são 21 dolorosas horas de viagem. As filhas são casadas e foram morar em Belém para estudar. A qualidade de vida seria melhor se ela também ficasse, mas Marly ganhou um papel importante na saúde de Breves. E não consegue ir embora. -

Já peguei malária oito vezes. Breves é um foco. Mas sei que sou importante lá, temos feito um trabalho de conscientização, o Programa de Saúde da Família levou as mulheres a conhecerem o pré-natal. Ainda nos sobram parasitoses intestinais, vermes e muitas outras doenças. É um trabalho de educação, que luta contra a falta de infraestrutura, de saneamento, etc.

No entanto, Marly viaja sozinha, e não se acostuma ao balanço do barco. A passagem para quem dorme em rede custa R$ 60. Quem quer uma cama paga em torno de R$ 150 para usufruir de um camarote, com quatro camas, em duas beliches. De qualquer jeito, quem decide a tranquilidade da viagem é o rio. E quando chacoalha, não tem camarote que segure.

Não é incomum também ver as pessoas receosas nos momentos da viagem em que o rio afunila, e o barco passa próximo de municípios. Segundo os moradores da região, são comuns os ataques de piratas, que assaltam os passageiros. As empresas donas dos barcos já contam com seguranças para prevenir essa situação.

Mas há o lado bom da viagem, no privilégio de navegar num rio amazônico, em meio à floresta. A dona de casa Dulcelina Batista, que trabalhou mais de 30 anos numa fábrica de castanha, já não lembrava mais da sensação. Depois de 20 anos morando em Belém, era a primeira vez que ela voltaria a Anajás, onde nasceu, para ver os sete irmãos que lá ficaram. Seriam quase trinta horas de viagem:

- Os barcos melhoraram muito. Eu levava mais de três dias quando jovem. E já não lembrava da sensação de me embalar no calor da rede à noite. É gostoso.

Documentário mostra o cotidiano das comunidades do Marajó

Com a tela montada em praça pública, o espetáculo começa com música. Saias vermelhas e azuis com rendas na ponta ocupam o lugar, vestindo as senhoras guardadoras da tradição do carimbó. Elas dançam para dar boas-vindas à produção do filme "Expedição Viva Marajó", que estava na cidade para exibir o documentário, como forma de feedback para a população. O filme é parte do Programa Viva Marajó, do Instituto Peabiru com financiamento do Fundo Vale.

De banho tomado e cabelos penteados, as crianças foram as primeiras a ocupar a arquibancada de cimento colorida da praça de Curralinho. A maioria nunca foi ao cinema, como Janessa dos Santos, de 12 anos:

- Somos nós que vamos passar no filme, me disseram. Quero ver. A ansiedade era compartilhada pelos outros moradores, que lotaram a praça, curiosos, mas sem entender muito bem o que se passava. Muitos riram ao ver búfalos, que não existem em Curralinho, e ao ouvir histórias, como a de Jucineide, que fala sobre o açaí e conta que tem 14 filhos, embora essa situação ainda seja recorrente na região. Ao final, a reação da maioria foi boa, já que nunca tinham visto um registro sobre o Marajó:

- Gostei de ver minha cultura. Mostra que cuidando é que vamos garantir o peixe, a floresta, a vida. Às vezes quero me entristecer com nosso dia a dia, mas tem tanta coisa alegre - disse Maria das Graças, de 65 anos, dançarina do carimbó.

Segundo Simone Melo, que já percorreu 15 municípios coordenando a exibição do filme, um dos objetivos é esse, que a própria população se reconheça:

- A extensão do Marajó é enorme, embora tenham uma cultura que as une, as comunidades não se conhecem. É uma identidade que está se construindo.

O documentário tem direção da paulista Regina Jeha, que não esteve presente na exibição no município. Ao final, a produção declara apoio para a candidatura do arquipélago como Reserva da Biosfera pela Unesco, um dos objetivos que fazem parte do Programa Viva Marajó. Criado por iniciativa da Vale em 2009, o Fundo Vale para o Desenvolvimento Sustentável é o financiador mas, segundo a assessoria do Fundo, o valor investido no projeto específico não é divulgado. O que foi dito é que, em 2011, as verbas em projetos de desenvolvimento sustentável na Amazônia aumentaram 130% , passando dos cerca de R$ 7 milhões registrados em 2010 para R$ 16 milhões. Apesar do nome, o objetivo é que o fundo não receba apenas aportes da Vale, mas de outras empresas, para financiar projetos, o que ainda não ocorre.

Produtores trocam corte de madeira por açaí

Na mesa da família marajoara, em todas as refeições do dia, o açaí está se tornando também um instrumento importante no combate à pobreza e ao desmatamento. Em Curralinho, um grupo de produtores conseguiu montar uma associação e, multiplicou o preço do produto mais de vinte vezes, e já certificou o fruto como orgânico. Cinco anos atrás, uma lata de açaí chegou a custar apenas R$ 1. Hoje, a mesma custa entre R$ 17 e R$ 25, dependendo da demanda. Vale mais a pena produzir açaí do que cortar madeira e, assim, o benefício é dobrado.
Segundo o presidente da Associação de Produtores de Açaí de Curralinho, Miguel Baratinha, para driblar a falta de investimentos públicos, o jeito foi a própria população se organizar. Após montar a associação, os produtores conseguiram dinheiro para comprar um barco e sair oferecendo o produto. Antes, cada um deles ficava isolado e à mercê dos preços dos atravessadores que passavam na porta das casas deles, quase todos ribeirinhos de comunidades isoladas:
- Agora podemos impor nosso preço. Foi a mobilização social que mudou nossa condição. Dependíamos do preço que o pessoal de Macapá dava. Hoje, na alta, cheguei a tirar R$ 4 mil para a família (sete pessoas no total). Aí é só guardar, para viver a baixa.
Hoje eles têm articulação com o governo do estado, e até um barco já passa na porta das casas para pegar as crianças e jovens e levar para as escolas. Também têm acesso a créditos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e alguns ganharam título de concessão da propriedade pela União. Com toda a melhora pelo açaí, os produtores reduziram muito o corte de madeira. De seis serrarias que a comunidade onde ele vive possuía, três já foram fechadas. E o açaí do grupo acaba de ser certificado pelo Instituto Biodinâmico (IBD), por ser orgânico, produzido sem uso de agrotóxicos.

Prostituição infantil é um desafio

Quase como numa brincadeira, crianças e adolescentes remam em suas pequenas canoas, em direção aos grandes barcos que estão de passagem pela Ilha de Marajó. Vão principalmente buscar os cargueiros, que trazem homens viajando há dias, ou até meses, pelos rios do Pará. Estimuladas por irmãos mais velhos ou pelos próprios pais, vão em busca de trocados ou óleo combustível, prontas para oferecer camarão e açaí, e até a si próprias, se assim os tripulantes quiserem. Não é preciso falar nada. A chegada das crianças sozinhas já é a senha que leva a altíssimos níveis de prostituição infantil no arquipélago. A realidade não está nas estatísticas, mas faz parte do relato frequente dos moradores, e foi apontada como preocupante pelo diagnóstico local feito pelo Instituto Peabiru e recém lançado no projeto Viva Marajó.
Algumas dessas famílias vivem abaixo da linha da pobreza. Os moradores fogem do assunto, mas assumem que convivem com o problema, como contou o líder comunitário Marco Baratinha, morador de Curralinho:
- As crianças pequenas nem entendem. Tem pai e irmão que coloca menininhas de calcinha para andar nos barcos. Embarcados há dias, há homens que aceitam. Alguns negam crianças, mas aceitam adolescentes.
E, em alguns casos, o problema começa dentro de casa.
Marco se refere a casos, ainda comuns, de estupros de moças por seus próprios pais e irmãos. Alguns homens consideram que, após a menstruação, a menina se torna mulher. E há pais que iniciam a vida sexual das próprias filhas.
Segundo moradores, esse é um dos motivos que ainda mantém de pé a história do boto rosa que se transforma em homem e engravida as mulheres, como reza a antiga lenda amazônica. Há botos que são, na verdade, os próprios pais, ou homens que abusaram das meninas ainda muito jovens.
Mas o problema também está ganhando visibilidade, e espaço nas discussões locais, segundo o coordenador do projeto Viva Marajó, Carlos Augusto Ramos:
- Assim como os casos de malária em Curralinho, que estão subnotificados, a questão da prostituição ainda não é encarada pelo poder público. É uma subinformação. Faltam dados nas delegacias. As meninas não denunciam. Mas é um fato que permeia o dia a dia deles. Além disso, estamos discutindo ainda formas de combate ao tráfico de pessoas.
No mês passado, houve uma audiência pública em Breves para discutir a pedofilia e o tráfico de pessoas.
Os moradores buscam formas de identificar os casos e facilitar as denúncias. Há jovens que são levados em balsas para outros países, como o Suriname e a Guiana.
Segundo o coordenador de Projetos da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, está na pauta da instituição um projeto de combate à prostituição infantil em transportes fluviais. A ONG já possui atuação importante para reduzir o problema em rodovias brasileiras.
- A necessidade financeira é o principal motivo em 67% dos casos. Também é comum que a família seja agenciadora, e em terceiro lugar a prostituição aparece como uma forma fácil de entrar no mercado. O Norte brasileiro concentra 40% dos casos de prostituição infantil. E falta política pública. Não temos projetos lá, e queremos ajudar organizações locais a estruturarem seus projetos.
Sem muitas altenativas de renda e dificuldades de acesso à educação, há ainda moças que, após crescidas, se lançam à prostituição por conta própria, em busca de uma vida melhor em Belém, ou em Macapá. Muitas começam a trabalhar como empregadas domésticas e sofrem abusos dos patrões. Acabam se tornando prostitutas, como contou C., moradora de Curralinho, que não quis se identificar:
- Tenho uma parte da família, de sete irmãs que se prostituíram. Lembro da primeira que foi, éramos adolescentes ainda e morávamos na mesma casa. Ela ia trabalhar de doméstica em Belém, mas já sabia o que a esperaria. Achava que o jeito era aceitar.
Os pais fingem que não sabem, mas elas mandam dinheiro todo mês. A vida da mulher por aqui é difícil, tem gente que não vê opção e vai. Eu fui a Belém e trabalhei de doméstica, mas não quis isso, e resolvi voltar. Agora, vou tentar estudar.

* A repórter viajou a convite do Fundo Vale e Instituto Peabiru

O Globo, 06/12/2011, Razão Social, p. 10-13

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.