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Área indígena retoma garimpo ilegal

Valor Econômico, Empresas, p. B3
Autor: Marcos de Moura e Souza
10 de Mar de 2014

Área indígena retoma garimpo ilegal
Após 10 anos, índios e garimpeiros voltam a extrair e vender pedras de Roosevelt

Marcos de Moura e Souza
De Espigão D'Oeste, Pimenta Bueno
e aldeia Roosevelt, Rondônia

Numa porção da floresta Amazônica onde pode estar uma importante jazida de diamantes, índios e garimpeiros refizeram uma lucrativa parceria para extrair e vender as pedras de maneira ilegal.
A atividade foi retomada no fim do ano passado na Terra Indígena Roosevelt, uma área que se estende por Rondônia e Mato Grosso. Há dez anos, 29 garimpeiros foram assassinados na região em meio a desentendimentos com os índios por causa do tesouro que aflora nessas terras.
O que sai da região tem um destino conhecido de autoridades: o comércio internacional ilegal de diamantes. As suspeitas são de que as pedras de Roosevelt acabem chegando às mãos de compradores na Bélgica, Emirados Árabes Unidos, EUA, Índia e Israel, centros de lapidação e comércio de diamantes. É uma longa cadeia ilícita, da qual em geral participam doleiros, contrabandistas, empresas de fachada e, por vezes, agentes da lei.
A situação de Roosevelt é delicada para o Brasil. O país é participante do Sistema de Certificação do Processo Kimberley, que regulamenta, com a chancela da ONU, o comércio internacional dos diamantes brutos e exige de seus signatários medidas para garantir que suas pedras sejam extraídas somente de áreas legalizadas. Diamantes brutos só podem sair do país com certificado Kimberley, emitidos pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Se forem de áreas não legalizadas, não são, em tese, certificados.
Autoridades brasileiras veem Roosevelt com dupla preocupação. Primeiro porque mineração em terra indígenas é proibida no país e o caso expõe a dificuldade do Estado de evitar que parte dos diamantes brasileiros continue sendo extraída e comercializados de maneira ilícita. A segunda preocupação é com a segurança.
"O momento é o pior possível. Talvez até pior do que era há dez anos, no auge do garimpo", disse na sede do Ministério Público Federal em Porto Velho o procurador da República em Rondônia, Reginaldo Pereira Trindade.
"O contexto de violência em Roosevelt ainda está presente como naquela época das mortes, mas como a questão parece ter esfriado o governo está muito mais desinteressado". Para ele, o risco é de novos conflitos levarem índios e garimpeiros a se matarem por causa dos diamantes. "Basta que alguém risque um palito de fósforo para que esse barril de pólvora, que está aí latente, exploda."
Um intermediário na venda de diamantes contou à reportagem, sob a condição de não ter seu nome divulgado, que viu em janeiro no garimpo, índios armados e um ambiente hostil com os garimpeiros que trabalham e dormem no garimpo. "O clima estava estranho", definiu ele.
Desde 2004 - quando em abril os 29 corpos foram encontrados -, a Polícia Federal mantém vigilância no entorno de Roosevelt para evitar a entrada de máquinas e garimpeiros e para garantir a paz na terra indígena e nas cidades próximas. Em dez anos, a Operação Roosevelt reduziu, mas nunca barrou de vez a extração ilegal de diamantes na região.
A Terra Indígena Roosevelt é uma das quatro áreas reservadas aos índios cinta-larga entre o sudeste de Rondônia e o noroeste do Mato Grosso. Roosevelt tem 230,8 mil hectares. Todo o território cinta-larga, 2,7 milhões de hectares - o equivalente ao Estado de Sergipe. São entre 2.000 a 2.500 índios. A Operação Roosevelt tem menos de 60 homens e seis bases no entorno da terra.
O Valor esteve na última semana de janeiro em uma das principais aldeias dos cinta-larga: a aldeia Roosevelt. De Cacoal, no sudeste de Rondônia, até lá são quatro horas de viagem. O cacique é Daniel Rondon, quase 50 anos, sisudo e com português carregado de sotaque de sua língua materna, o tupi mondé.
"A cada 15 a 20 dias, cada família [que controla um pedaço de terra nas margens do igarapé Lajes, onde está a clareira do garimpo ] recebe R$ 10 mil, R$ 15 mil. É mais ou menos 20% das vendas", explicou ele na varanda de um casa de alvenaria espaçosa e muito simples a poucos metros das margens do Rio Roosevelt.
De 20% a 25% sobre a venda dos diamantes são o que, em geral, os índios têm recebido por "liberar" a mineração em Roosevelt para garimpeiros, segundo Rondon e outros cinta-larga.
A aldeia Roosevelt parece um pequeno e pobre bairro rural. Não tem ocas, mas 40 casas padronizadas com paredes pintadas de branco e manchadas de terra e outras poucas construções. Tudo com verba do governo federal. Nas cidades próximas à Roosevelt, o relato frequente é que algumas poucas lideranças ficam com o grosso do dinheiro dos diamantes e que o desperdiçam em noitadas, bebida, prostitutas e motos e carros.
Em 2010, a Fundação Nacional do Índio (Funai) firmou uma parceria com os cinta-larga para encerrar a atividade garimpeira. À Funai caberia reforçar as ações de ajuda à população de Roosevelt além de pagar a cada família que atuasse como polícia indígena, para impedir o garimpo. O valor pago a cada indígena pelo Projeto Lajes chegou a R$ 1.500 por mês. Com o acordo, o garimpo foi "oficialmente" fechado pelos índios em 2010. Em 2012, houve um repique e a PF destruiu com explosivos máquinas no garimpo.
"No primeiro momento a gente avançou, mas depois a gente passou a não ter mais estrutura, dinheiro", disse Urariwe Suruí coordenador regional da Funai em Cacoal. Houve também, disse, problemas entre os cinta-larga por conta de quem as lideranças escolhiam ou deixavam de escolher para a função remunerada a cada mês do Projeto Lajes. "[O projeto] acabou em outubro passado. Eles disseram que não queriam mais. E aí o garimpo voltou com tudo", diz o jovem suruí.
Líderes cinta-larga usam um único argumento para justificar a extração ilegal de diamantes: o governo não os ajuda a ter projetos agrícolas rentáveis e sustentáveis e as famílias cinta-larga se envolvem com o garimpo para comprar alimentos, remédios, roupas, carros para transporte de doentes, combustível e também TV com canais por assinatura, celular, moto e tudo o que aprenderam a consumir desde os primeiros contatos com o mundo exterior nos anos 60.
"O que acontece é que tem tanta reunião, reivindicação e o governo demora para atender. Aí os índios falam 'não vamos esperar mais o governo, não'", resume Nacoça Pio Cinta-Larga, de 55 anos, um dos líderes locais, ao falar da reabertura do garimpo.
Os garimpeiros usam resumidoras, um tipo de esteira para bater o cascalho, e bombas de água. Rondon diz que o movimento no garimpo caiu um pouco. "Tinha 30 máquinas e agora, 19."
A reportagem não chegou ao garimpo do Lajes, o principal de Roosevelt, que fica numa clareira que de ponta a ponta, segundo a PF, tem quatro quilômetros. Uma ilha de lama no meio da floresta. Da aldeia até lá são mais quatro horas. Lideranças cinta-larga na aldeia não permitiram a visita da reportagem sob a alegação de que a estrada estava intrasitável.
A corrida aos diamantes de Roosevelt começou a ser notada em 1999. Entre 2003 e 2004, de 4 mil e 5 mil homens trabalharam na clareira, segundo a Polícia Federal. "Naquela época era muita gente. Hoje, se tiver, são 100 e poucas pessoas", diz Marcelo Cinta-Larga, de 33 anos, citando um número sem confirmação de autoridades. Rondon fala em menos de 100.
A Terra Indígena Roosevelt é uma das quatro áreas reservadas aos índios cinta-larga entre o sudeste de Rondônia e o noroeste do Mato Grosso. Atualmente, os garimpeiros usam resumidoras, um tipo de esteira para bater o cascalho, e bombas de água.
Assim como Rondon e Pio, Marcelo diz que a relação com os garimpeiros que estão novamente em suas terras está tranquila. Rondon diz os garimpeiros foram mortos porque estavam ameaçando de morte os índios. Segundo a PF, desde 2007 não há mortes relacionadas aos diamantes. Além dos 29, a polícia computa 20 assassinatos ocorridos antes e depois de 2004.
Ao falar sobre a venda das pedras, Rondon narra assim a rotina do negócio: "Tem um barracão lá no garimpo e os caras que compram vão lá para avaliar e comprar. De 15 em 15 dias eles vêm comprar". E acrescenta: "A gente não sabe quem é o comprador forte." Ele e outros dizem que no passado tinham negócios com compradores de Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo. Usando a palavra em tupi mondé que significa pedra branca e também diamante, Rondon diz que o "ikaxirá" mais caro que viu nos últimos tempos foi um de 8 quilates vendido por R$ 80 mil.
Um conhecedor do mercado de diamantes falou de uma pedra bem mais valiosa. À reportagem, por telefone, ele afirmou que há quatro meses apareceu na mão de um comprador de Juína (MT) uma pedra recém-extraída de Roosevelt de 90 quilates vendida por R$ 450 mil. E que há poucos dias, surgiu na cidade outra, também de Roosevelt, de 30 quilates. Um quilate é o equivalente e 200 miligramas.
"Os diamantes de Roosevelt são totalmente distintos de qualquer diamante do Brasil. São predominantemente pedras brancas, têm várias formas, mas muitas octaédricas [o que permite cortes valorizados na fase de lapidação], são pedras de alto teor de pureza, muito bonitas e grandes. Eu já vi diamantes de lá de 50, 70, 80 quilates", disse, de Brasília, o geólogo do Serviço Geológico do Brasil, Valdir Silveira, que lidera um projeto para mapear áreas diamantíferas, o Projeto Diamante Brasil.
Segundo ele, há indicações seguras de que a terra dos cinta-larga está sobre corpos kimberlíticos com alto potencial diamantífero. Mas por ser terra indígena, nunca nenhuma empresa prospectou nem lavrou a região.
O comércio mundial de diamantes brutos é afunilado em poucas cidades, entre elas Antuérpia, Dubai, Nova York, Mumbai e Tel-Aviv. São centros de comércio e de lapidação de padrão internacional. O preço de um diamante bruto pode ser multiplicado alguma vezes após lapidado. Em tese, esses mercados movimentam apenas diamantes com origem legal. Mas no setor, são ainda frequentes relatos sobre caminhos ilícitos para 'esquentar' pedras de áreas proibidas. Para Valdir Silveira, esse é o caso dos diamantes de Roosevelt.
"O destino é ilegal, não tem como não ser, porque a produção de diamante lá é ilegal", diz. "Com certeza, os diamantes de Roosevelt estão saindo do Brasil de forma clandestina, eles estão indo para a Venezuela ou Guiana ou outro país da região." São rotas conhecidas onde os contrabandistas obteriam certificados Kimberley de forma mais fácil do que no Brasil. Outra opção seria misturar pedras de Roosevelt em lotes de áreas regulares ou recorrer a pessoas que levam para o exterior pedras na roupa ou dentro do corpo.
Em sua sala na sede da Operação Roosevelt, em Pimenta Bueno (RO), o delegado Alexandre de Andrade Silva, chefe da base central da operação, diz que PF faz patrulhas nas estradas que dão acesso à terra indígena, mantém equipes nas seis bases no entorno da terra e eventualmente sobrevoa a região. "O desafio da PF é chegar a quem está comprando, ao grande comprador, ao grande financiador."
Em 2010, a equipe de Silva junto com a PF no Mato Grosso tentaram ir além. "A gente ficou um ano investigando tentando pegar a ponta, tentando alargar a teia para de repente pegar um cara que está lá na Rússia, Bélgica ou em Israel. Mas não se evidenciou", disse o delegado. "A PF continua empenhada em tentar chegar aos compradores finais. Não desistimos, de jeito nenhum."
Em março de 2010, um homem foi detido no Aeroporto Internacional de Confins (MG), com um diamante de 28 quilates que policiais afirmaram ter saído de Roosevelt. A pedra foi avaliada em R$ 200 mil. Em abril do mesmo ano, um lote com 20 pedras, avaliado em R$ 100 mil, também da terra cinta-larga, segundo a PF, foi apanhado com outro homem em Confins. Em 2004 e 2005, a PF já havia desmantelado dois esquemas de venda ilegal das pedras de Roosevelt para o exterior.
O Brasil exportou legalmente em 2013 US$ 6,1 milhões em diamantes brutos, 44,3 mil quilates, segundo dados preliminares do DNPM. É insignificante para o mercado internacional. Mas a produção vem aumentando desde 2009, quando encolheu pela crise financeira internacional. Em 2009, a exportação brasileira foi de US$ 2 milhões, 35,9 mil quilates. Minas e Mato Grosso são alguns exportadores. Em Rondônia, segundo dados da superintendência local, havia em janeiro, 161 pedidos de pesquisa ou lavra de diamantes. Legalmente, não há nenhum quilate sendo extraído no Estado.

Informalidade na região afeta imagem do país no exterior

Por Marcos de Moura e Souza
De Porto Velho, Rondônia

Entre os garimpos de diamante que funcionam no Brasil sem licenças e autorizações, o de Roosevelt é há anos um dos mais sensíveis e complicados para o governo brasileiro. "É sempre um incômodo", diz Samir Nahass, principal representante do Processo Kimberley no Brasil ao ser perguntado o que a retomada do garimpo na terra cinta-larga representa para imagem do Brasil.

"É claro que a situação em Roosevelt nos preocupa, mas não só lá", disse ele, que no Ministério de Minas e Energia ocupa o cargo de assessor sênior da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral. "No Brasil inteiro estamos querendo acabar com esse problema da informalidade, principalmente nos garimpos de ouro e diamante. A preocupação é constante." Um dos projetos do ministério é conceder permissão de lavras para cooperativas de garimpeiros.

No caso de Roosevelt, Reginaldo Trindade, do Ministério Público Federal de Rondônia, entende que o governo precisa de uma vez por todas "executar uma proposta de trabalho que possibilite aos índios deixarem essa vida criminosa". Se o governo, diz ele, passar a garantir um melhor atendimento à saúde, educação, moradia, estradas e, sobretudo, capacitação para que os indígenas tenham uma fonte estável e legal de renda, o garimpo tenderá a minguar. "Se não resolver de uma vez, pelo menos vai deslegitimar o discurso deles de que o Estado não cumpre a sua parte, então precisam garimpar."

Mas solução mesmo, para muitos que acompanham a situação em Roosevelt, é que o Brasil passe a permitir a mineração em terras indígenas. É tema controverso. A Constituição, de 1988, prevê a abertura das terras indígenas no parágrafo 3o do artigo 231. No entanto, exige uma lei que regulamente a atividade.

Mas o assunto vem sendo empurrado de um governo para outro. Desde 1996, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei, de número 1.610/96 que trata do tema. Há quase três anos, o texto está sob a relatoria do deputado federal Edio Lopes (PMDB-RR).

"Estamos propondo que 3%, em valor de mercado, do que for produzido em terras indígenas, seja repassado para os índios." A proposta prevê licitação de áreas indígenas onde o governo já tenha mapeado as riquezas naturais e nas demais áreas, a concessão de direitos minerários para empresas que requererem primeiro. Os requerimentos feitos antes da aprovação do projeto não teriam nenhum valor legal. Segundo Lopes, um levantamento feito no fim do ano passado apontou a existência de 8.900 requerimentos de pesquisa e lavra em terras indígenas no país.

O texto está para ser entregue à comissão especial que cuida do assunto na Câmara e se aprovado voltará para o Senado. Lopes não arrisca uma data para a votação final.

Valor Econômico, 10/03/2014, Empresas, p. B3

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