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Aparados da Serra: danos causados pelo Catarina ainda são visíveis

EcoAgência
Autor: Christian Lavich Goldschmidt
15 de Fev de 2008

Atendendo ao convite da pesquisadora e doutoranda em ecologia vegetal pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Maria de Fátima Maciel dos Santos, estive acompanhando-a em viagem de estudos ao Parque Nacional dos Aparados da Serra (PNAS), em Cambará do Sul, Rio Grande do Sul. A primeira viagem aconteceu entre os dias 29 de novembro e 02 de dezembro de 2007. A segunda viagem foi entre os dias 22 e 25 de janeiro de 2008.

Na primeira oportunidade, juntei-me ao grupo de mestrandos e doutorandos em botânica e genética da UFRGS para acompanhá-los em uma saída de campo cujo objetivo era a visualização e identificação de espécies da flora campestre entre os municípios de São Francisco de Paula e Cambará do Sul, na serra gaúcha. Sob orientação dos professores Luis Rios de Moura Baptista, doutor livre docente em botânica, ecologia vegetal e sistemática vegetal, e Silvia Miotto, professora doutora especialista em leguminosas, nosso micro-ônibus partiu às 07:35 min. do Parque Farroupilha (mais conhecido como Parque da Redenção) em pleno centro de Porto Alegre.

Já na saída, o professor Luís nos chama a atenção para um enorme e florido flanboyant que delimita o espaço dos 37 hectares do Parque e a movimentada Avenida Paulo Gama.

Como meu objetivo fora acompanhar os estudantes a fim de observar e entender um pouco o processo de evolução de algumas espécies, bem como o processo que está levando à extinção de várias outras, já em nossa primeira parada senti dificuldades em compreender muitas coisas dadas as informações e vocabulário específicos ao campo de estudos do grupo.

Essa dificuldade remeteu-me aos erros cometidos, na maioria das vezes, por jornalistas acomodados (quando não mal intencionados) que ao invés de se valerem da opinião e sabedoria dos especialistas, optam pelo caminho da ignorância, quase sempre resultando em textos de qualidade e informação duvidosa.

No meu caso, porém, é preciso registrar a paciência e a boa vontade dos professores em prestigiar minha disposição, fazendo questão de situar-me e orientar-me sempre que necessário.

A saída de campo deste dia deteve-se na observação e estudo das espécies de Leguminosas e Mimosas. Nesta oportunidade ímpar, aprendi com os professores Luís e Silvia, que as leguminosas constituem uma das três maiores famílias de Angiospermas, ou seja, plantas que dão flores e frutos. As leguminosas se caracterizam por seu fruto, que é uma vagem ou legume (um fruto formado por um único carpelo e que se abre, separando-se duas valvas) ou derivado.

As leguminosas fazem parte de diversos ecossistemas em todo o mundo, ocorrendo nos mais variados hábitats. São importantes de diversos modos, como todas as plantas. Uma característica, porém, é de enorme importância: a capacidade de absorver e fixar o nitrogênio da atmosfera. Isto é possível pela simbiose das leguminosas com bactérias (Rhizobium) que vivem em nódulos, nas raízes da maioria destas leguminosas.

Deste modo, enriquecem o solo em compostos de nitrogênio. Numerosas espécies da família são muito importantes como alimentícias, forrageiras, adubação verde, produtoras de madeira e de celulose, tânicas, tintóreas, medicinais, etc. No Rio Grande do Sul são em torno de 300 espécies nativas. Aqui também existem espécies de leguminosas endêmicas, ou seja, somente são encontradas em nosso estado.

Outras espécies se enquadram nas categorias de ameaça da IUCN (International Union for the Conservation of Nature), raras, vulneráveis ou em perigo de extinção. As Mimosas são espécies do gênero Mimosa, o qual possui cerca de 500 espécies. Estima-se em mais ou menos 70 o número de espécies nativas de Mimosa no Rio Grande do Sul.

As espécies de Mimosa são ervas, subarbustos, arbustos ou árvores que ocorrem nos campos e beiras de mata. Os professores me chamam a atenção para o fato de que o nome mimosa é usado popularmente também para espécies de outros gêneros, como Acácia. Para finalizar, acrescentam que a alteração da paisagem com o aumento desordenado das plantações de Pinus e lavouras de hortaliças já representam perda de hábitats para muitas espécies.

Após quase um dia de pesquisa com os estudantes nas margens das estradas dos campos de cima da serra, é chegada a hora da despedida. Maria de Fátima e eu, cada um com pelo menos 25 kg de mochila nas costas, iniciamos nossa jornada em direção ao Parque Nacional dos Aparados da Serra. Depois de algumas tentativas à beira da RS 020 conseguimos uma carona com um caminhoneiro a caminho de Curitiba. O motorista não nos deixaria no local desejado, mas pelo menos nos tiraria do mormaço do asfalto.

Ficamos então abrigados por pouco mais de uma hora no Restaurante Tainhas, de onde tínhamos esperança em conseguir nova carona que nos possibilitasse chegar à Cambará do Sul, o que, por fim, não conseguimos. Por sugestão do dono do restaurante, pegamos um ônibus da linha São Francisco de Paula via Tainhas para Cambará do Sul.

A esta altura, nosso objetivo já não era mais chegar à Cambará, e sim, chegar o quanto antes ao Parque, enquanto ainda fosse dia, o que nos fez tomar a decisão de descermos na entrada da Fazenda Zé Luís, no KM 143 da RS 020, na localidade de Azulega; nome que remete a cor da pelagem cinza-azulada de uma raça de cavalos espanhóis que eram criados nas fazendas do entorno. De acordo com alguns moradores, essa pequena comunidade se chamava Três Lagoas, passando a se chamar Azulega há mais ou menos uns 30 anos atrás.

O percurso da parada até a entrada do Parque é de seis quilômetros, e da entrada do Parque até a hospedaria do IBAMA, onde ficamos hospedados, são mais dois quilômetros. A caminhada não seria tão cansativa, não fosse o peso das mochilas com roupas, mantimentos e material de estudos. Neste caso, as pedras e irregularidades da estrada de chão batido dificultaram ainda mais o caminho.

O cansaço, no entanto, é compensado pela beleza única da paisagem desta região, que infelizmente também começa a sofrer com a introdução de lavouras de Pinus sp. nas fazendas circunvizinhas ao Parque, como já ocorre em maior escala no nosso Pampa. Após a longa caminhada, chegamos à guarita do Rio Camisas, onde fomos recebidos por Mauro Fernandes Macedo.

Nascido e criado em terras que hoje pertencem ao Parque, esse jovem de 29 anos é apenas um dos exemplos entre os que tiveram suas terras desapropriadas com a criação do PNAS, em 1953. Dos 72 hectares pertencentes à sua família até o início dos anos 90, restam ainda 24 hectares a serem indenizados. Mauro trabalha há sete anos no Parque, iniciou em 27 de julho de 2000. Nos primeiros três anos fez parte do programa de contrato temporário do governo federal, trabalhando no Prev Fogo, grupo de Prevenção e de Combate a Incêndios Florestais.

Em 02 de setembro de 2003 entrou para uma empresa de vigilância privada, passando então a prestar serviços como vigilante, onde sua jornada de trabalho é de 24 horas, folgando outras 48. Com essa mudança, suas condições de trabalho melhoraram, tendo significativo aumento salarial. Apesar de às vezes sentir-se solitário na imensidão dos campos, nunca passou por situações de perigo.

A parada na guarita nos serviu não somente para um pequeno e agradável bate papo com o vigia, além de retirarmos a chave da hospedaria que nos abrigará durante os próximos dias, conseguimos fazer um lanche para recarregar as energias. Esse lanche, é bom ressaltar, já estava preparado na mochila de minha acompanhante, e sem ele não teríamos força para continuar nossa jornada. Salve Fátima!

Aos leitores, é preciso esclarecer que a esta altura já caminhávamos à noite, guiados somente pela luz do luar e embalados pelos sons da Natureza e pela suave brisa do vento. Não fosse esse ambiente encantador e poético e a ajuda dos sanduíches de Fátima, talvez não tivéssemos suportado a tão exaustiva caminhada. Mas, depois de três horas, chegamos à hospedaria que nos serviria de base para os próximos dias.

Na trilha do leão-baio

Para dar continuidade aos registros dessa minha aventura, preciso antes falar um pouco de Maria de Fátima Maciel dos Santos. Minha incursão ao PNAS não se resume a um passeio turístico. Nem tão pouco foi algo de minha iniciativa. Sabedora de minha preocupação com as questões ambientais e de minha militância em defesa da ecologia, a pesquisadora encorajou-me a aceitar seu convite para acompanhá-la durante o período em que estaria mapeando áreas do Parque a fim de realizar trabalhos de monitoramento para pesquisas que fornecerão dados para conclusão de sua tese de doutorado.

Para que possam entender melhor, Fátima pesquisa a ecologia da floresta com araucária e o uso tradicional da mesma pela comunidade local. Hoje, aos quarenta anos, ela conta que sua história com o Parque é de longa data. Começou como campista em 1985 (campista é o termo que designa a pessoa que acampa, também chamada de mochileira), principalmente na Páscoa, passando mais tarde a acompanhar a Comissão de Defesa dos Aparados da Serra, grupo que não existe mais e que se reunia em torno da AGAPAN (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural).

A partir daí não se desligou mais do Parque, passando a visitá-lo frequentemente com o já falecido professor Bruno Irgang e com os colegas de graduação em biologia da UFRGS, curso concluído em 1995 com licenciatura e bacharelado. Ao entrar no mestrado em 1998, o tema de sua pesquisa foi ecologia de carnívoros; ou seja, entender as interações de animais como o leão-baio (Puma concolor) e o lobo-guará (Chrysocyon brachiurus) com o meio ambiente para elaborar estratégias de conservação para os mesmos e seus habitats. Primeiro pensou em trabalhar somente com o leão-baio, pois sabia que estava ameaçado e que ainda ocorria no Parque, sofrendo, assim como sofre até hoje, com a caça, o abate e a destruição do seu habitat: os campos de cima da serra e a floresta com araucária.

Com o objetivo de verificar o que estava acontecendo com o animal criou o projeto Na Trilha do Leão Baio. Nessa época, morou por um ano e meio no Parque, período em que conviveu de forma anímica com o local e que lhe possibilitou trabalhar com todos os carnívoros, mapeando a distribuição de diversos animais em diferentes formas de vegetação da área, como por exemplo: zorrilhos e furões adoram viver no campo, onde encontram pequenos roedores, sua caça predileta. Quatis e mão-pelada preferem a mata, onde se alimentam de frutas, ovos de aves e pequenos animais.

Outro ponto importante de sua pesquisa foram as entrevistas realizadas com moradores locais, vizinhos e proprietários do parque, que possibilitaram o diagnóstico da relação destes com os animais silvestres. Embora tenha constatado que as pessoas do lugar admirem a liberdade e a beleza dos animais, elas entram em conflito com os mesmos quando estes atacam suas criações, partindo para atitudes drásticas, abatendo espécies raras como o gato-do-mato e o próprio puma.

Sem relógios ou telefones celulares funcionando, ficamos incomunicáveis e sem noção do tempo no interior do Parque nas primeiras horas do dia. Sem nos importar com o cansaço da viagem e das caminhadas do dia anterior, dormimos de tal forma que só fomos acordados na manhã do dia 30 de novembro com o alegre canto dos pássaros.

Aliás, ao contrário do que pensávamos, a noite bem dormida serviu como um bálsamo, apaziguando as dores nos pés e no corpo, principalmente na região lombar, causada pelo excesso de peso das mochilas. Assim, os primeiros momentos da manhã, com o sol ainda despontando no horizonte, foram desfrutados harmoniosamente, como manda nossa tradição, na companhia de um amargo e quente chimarrão, elemento indispensável nas andanças de um gaúcho.

A temperatura, aqui, cai junto com o pôr do sol, e demora a subir no dia seguinte, o que me obrigava a estar sempre com algum agasalho. Não que não faça calor, mas ele demora a chegar, vem lá pelas dez da manhã. Imagine quão duro deve ser o inverno por estas paragens!

O Parque

O Parque Nacional dos Aparados da Serra tem 10.250 hectares, e seu vizinho, o Parque Nacinal da Serra Geral, 17.300 hectares. Em nosso primeiro dia, depois de sorvermos o chimarrão e de nos alimentarmos com um caprichado café da manhã preparado a quatro mãos, saímos com o intuito de localizar as melhores áreas para o desenvolvimento do trabalho da pesquisadora. Nossa intenção era ficarmos o dia todo fora.

Então, algumas precauções foram tomadas, como o preparo de alguns mantimentos a serem levados. Apesar de o período ser curto, numa viagem como esta tudo precisa ser pensado para garantir a segurança e o mínimo de conforto possível. Há que se considerar as dificuldades encontradas no local a ser visitado. Com isso, em nosso razoável estoque, demos preferência a alimentos orgânicos e frutas secas e cristalizadas, comprados ainda em Porto Alegre, no velho Mercado Público, no centro da cidade.

Com nosso kit composto por bússola, cadernos, lápis e caneta para anotações, alimentos, água e máquina fotográfica, partimos, a princípio, para uma caminhada sem rumo, que nos conduziu até o principal ponto turístico do Parque, o Cânion do Itaimbezinho, que tem 5.800 metros de extensão e uma profundidade máxima de 720 metros. Maria de Fátima explica que a paisagem atual da região com cânions, que são vales profundos e encaixados, foi resultado das ações vulcânicas ocorridas acerca de 225 milhões de anos, quando várias erupções vulcânicas chacoalharam este pedaço de terra, levando a terremotos e processos de ruptura do solo, incluindo o aparecimento do Oceano Atlântico.

Este período geológico denomina-se Permiano, quando os atuais continentes ainda estavam unidos e formavam um supercontinente denominado PANGEA, que mais tarde viria a se subdividir em dois grandes blocos denominados EURÁSIA e GONDWANA. Formaram-se então paredões íngremes, aparados pelo magma que saía e resfriava rapidamente, abrindo fissuras na rocha. Hoje, o relevo levemente ondulado das coxilhas é cortado abruptamente por extensos e profundos cânions. Ainda hoje as águas estão trabalhando, abrindo fendas e escavando-os.

O Cânion do Itaimbezinho inicia-se estreito e profundo, com 80 metros de largura e 300 metros de altura, e vai se alargando e aprofundando ao longo de sua extensão, até chegar aos números descritos acima. Depois da contemplação desta paisagem, seguimos por uma trilha que nos levou até a mata da jaguatirica.

Já no interior da mata, ainda é visível o dano causado pelo ciclone Catarina, que atingiu parte do Rio Grande do Sul em 2004. A quantidade de árvores caídas e as clareiras abertas impressionam Maria de Fátima, mas não é a interferência de fenômenos da natureza que mais assustam a pesquisadora.

Uma de suas maiores preocupações é com os elementos estranhos que estão interferindo e comprometendo a biodiversidade local: as comunidades de javalis, animais exóticos que competem ou assustam a fauna silvestre, bem como a grande quantidade de gado que anda solta pelos campos e matas.

Conforme explica Adão Luiz da Costa, Chefe Substituto do Parque, existem famílias residentes no Parque e famílias não residentes que ocupam ou arrendam suas áreas para a pecuária. Isso se dá porque dos 10.250 hectares, 35% ainda faltam ser indenizados, o que dá direito aos proprietários de usufruírem suas terras. O que ocorre, porém, é que essas áreas não são cercadas, ou por determinação do próprio IBAMA, que não vê com bons olhos terras pertencentes ao Parque sendo cercadas, ou por escolha dos próprios proprietários, que vêem suas atividades beneficiadas com o uso indiscriminado de grandes áreas do Parque.

Enquanto isso, sem o controle das manadas, sem um levantamento com o número exato das cabeças de gado que passeiam livremente pelo Parque, a riqueza da mata vai sendo sufocada pelo pisoteio constante destes gigantes, pondo em risco o habitat da fauna e flora silvestre. Isso acontece pelas poucas restrições impostas aos fazendeiros em exercer determinadas atividades. Uma pergunta pela qual não obtive resposta é se o proprietário, nestas circunstâncias, valendo-se de terras já pertencentes a uma Unidade de Conservação, mesmo não tendo sido ainda indenizado pelas mesmas, tem o direito de arrendá-las?

As buscas por indícios da fauna silvestre no interior da mata da jaguatirica, cujos resultados veremos mais adiante, terminaram ao atravessarmos a floresta de uma ponta a outra, morro acima, já próximo ao meio dia, quando fomos brindados com a linda paisagem dos campos, cortada por pequenos capões de mata no horizonte, onde também despontava, no alto de um distante morro, uma das três torres de controle do Prev Fogo, que monitoram o Parque nesta época do ano.

Foi com o desejo de aproveitar ao máximo o que o dia poderia nos oferecer que nos colocamos a caminho, sempre em linha reta, querendo chegar o quanto antes àquela torre que parecia estar logo ali. Parecia, até nos darmos conta que demoraríamos mais do que o previsto, tanto pela ilusão de ótica causada pela paisagem que nos indicava um horizonte mais próximo que o real, quanto pelos desvios que fomos obrigados a fazer para ultrapassarmos algumas barreiras impostas pela natureza e, quem diria, pelo homem.

Primeiro foram os pequenos matacões e banhados que tiveram que ser desviados, depois, as caixas de abelhas que indicavam a apicultura, e com ela a presença próxima do ser humano. A presença das abelhas não nos assustou, e o desvio foi mais em respeito ao seu espaço. O contrário do que aconteceu ao percebermos o porte de um belo cavalo vindo em disparada em nossa direção, nos deixando paralisados até o momento em que o bonito, assim, de uma hora para outra, do nada, resolveu parar o galope e ali ficou a nos observar, deixando o caminho livre para nossa passagem.

De qualquer forma, sua presença também era o indício de mais gente naquele lugar. Ao chegarmos fatigados e sedentos à torre nos deparamos com a ausência do brigadista antiincêndio. No entanto, dali avistamos um pequeno galpão às margens da mata e junto a uma pequena lavoura, onde trabalhavam de enxadas em punho, um casal, difícil de ser identificado a essa distância. Estavam bem explicadas as caixas de abelhas espalhadas pelo campo e o cavalo encontrado no caminho.

Percebendo a movimentação dos camponeses em direção ao galpão, nossa única saída era buscar abrigo e água fresca com os desconhecidos. Com desconfiança, fomos recebidos pelo chefe da casa, que num sinal de alerta do que significaria qualquer avanço de nossa parte, solicitou à esposa que acalmasse o cão feroz que latia bravamente atado junto à camionete, na garagem anexa a um puxado junto ao galpão, peças facilmente identificadas com a nossa proximidade. Feitas as devidas e breves apresentações, e após a conquista de sua confiança, seu Urquiza convidou-nos a entrar para um descanso, que acabou não sendo tão breve, como demonstram trechos de nossa conversa, que iniciou num copo d água e terminou após um modesto, porém apetitoso almoço.

Urquiza Tadeu de Oliveira é nascido e criado no Parque, onde está desde o ano de 1957. Ali contraiu matrimônio com Maria Goretti de Jesus Oliveira e teve três filhos: Rodrigo, com 27 anos, Micheli, 21 anos e o caçula Ronivan, que aos 12 anos de idade tem como uma de suas habilidades comandar a egüinha zeina nas lides campeiras.

Os 60 hectares de terra da família fazem parte dos 35% pertencentes ao Parque e que ainda não foram indenizados pelo governo federal. Segundo conta, seus avós José Fagundes de Macedo e Ana Maria de Macedo tinham a propriedade desde 1909, ficando a mesma como herança para seus pais, Djalma Machado de Oliveira e Bibiana Machado de Oliveira, que ali criaram seu Urquiza e cinco irmãos.

Destes, nenhum se interessou pela terra e pelo gado, trabalho que ficou com ele e que sempre lhe rendeu o sustento da casa. Hoje, a diversidade de atividades e cultivos lhe garantem tranqüilidade. Na pequena lavoura plantam batatas, morangas e hortigranjeiros. Sobre o gado, diz possuir 20 cabeças. Mas o que realmente lhes proporciona a tranqüilidade citada são as 150 caixas de abelhas africanizadas que rendem, cada uma, 36 quilos de mel por ano, que são exportados para o Canadá e Alemanha. Tudo isso não significa que tenham algum luxo, tudo é muito simples, tanto aqui no Parque quanto na casa que mantém em Cambará do Sul.

Ou seja, a família divide seu tempo entre as terras e a cidade, onde os filhos podem estudar. Assim, passam parte da semana lá e parte da semana cá. Às vezes, vão e voltam no mesmo dia. Quando pergunto sobre sua possível saída do Parque, de uma hora para outra, com a liberação da indenização que lhes cabe, prefere acreditar que não acontecerá num futuro tão próximo. Até lá, vai tocando seu trabalho e acreditando na relação respeitosa, cordial e amigável que mantém com os funcionários do IBAMA, lembrando que ajudou a construir a casa sede do órgão no interior do Parque, em 1972.

Findada a prosa e restabelecidos do cansaço, Maria de Fátima sugere irmos adiante. Enquanto eu pensava que trilharíamos o caminho da volta, Fátima explica que seu objetivo agora é encontrar a casa dos irmãos Breno e Raul Kehl, onde trabalhava Sílvio, com quem teve contato quando morava no Parque e realizava pesquisas para o mestrado.

Não que nos encontrássemos com o mesmo em seguida. Logo vim a saber que Sílvio deixou o parque em 2003, quando os irmãos Kehl fizeram parte da última leva de proprietários indenizados. Deles e de sua família só restou a casa e o galpão, construídos em 1916, e que ainda virei a conhecer. Agora, seguimos não mais em linha reta, nem pelas verdes pastagens do campo, mas sim por uma muito estreita estrada de terra que corta a paisagem e que serve de caminho para a Patrulha Ambiental do IBAMA que por vezes a percorre na expectativa de detectar algum incidente, ou para simplesmente marcar sua presença no território.

A distância percorrida sem localizarmos a tal casa gera preocupação. Sem muita noção do tempo, orientados pelo sol, lembramos que teremos que fazer todo o caminho da volta, num retorno, sobre o qual preferimos não pensar muito. A vontade de conhecer tudo quanto for possível em poucos dias me faz puxar a frente, antes que Fátima faça qualquer proposta de meia volta volver. Assim, a paisagem dos campos fica para trás e seguimos pela estrada, agora dentro de um bosque, onde predominam exemplares de araucárias.

A visualização do telhado da casa, refletido pelo sol, por entre copas de frondosas árvores, logo adiante, para nosso alívio, é possibilitada pela sinuosidade da trilha. Nossa aproximação foi acompanhada pelos olhos atentos de três urubus, um deles postado no cume central do telhado, que contribuíram para o clima sombrio e assustador da chegada, quando fomos tomados por um misto de sensações e emoções.

Eu, por tentar entender um pouco da história deste local completamente abandonado e de sua gente que daqui teve que partir. Essa enorme casa de madeira, com partes do telhado e das paredes caindo, demonstra como a ação do tempo pode ser rápida e cruel. Assim como deve ter sido cruel para essa família ter que deixar esse local depois de tantas gerações. Para Maria de Fátima, os Parques Nacionais têm uma história própria, anterior à sua criação, tem uma memória que merecia ser preservada.

Para a pesquisadora, estruturas como esta deveriam ser mantidas e melhoradas, possibilitando uma integração com a comunidade do entorno e servindo de base para estudantes e pesquisadores. Para mim, situações como esta demonstram também o descaso por parte do governo federal, com a memória histórica, ambiental e cultural de nosso país.

Sem muito que fazer, só a lamentar pela situação de abandono, pegamos nosso rumo de volta. Durante toda nossa caminhada, as atenções se voltavam para a paisagem, ora observando e prestando atenção no entorno, cuidando até mesmo os passos dados, ora buscando novos elementos no horizonte, sempre na expectativa de enxergar algo que nos fizesse ganhar o dia. Não que não estivéssemos contentes com a riqueza da paisagem disponível e até então desfrutada.

Se a viagem terminasse ali, já teria valido a pena. Mas, de ouvidos atentos, comentários só eram tecidos quando da necessidade de comunicar algum vestígio identificado. Tudo isso para não correr o risco de afugentar algo até então desapercebido. Foi nesta atenção que ouvimos o ronco de um carro, passando em seguida a avista-lo no horizonte, vindo em nossa direção. Nosso desejo a esta altura, cientes do trajeto que ainda teríamos que fazer para chegarmos a hospedaria, era conseguir uma carona. Infelizmente, o carro vinha em direção oposta.

Para nossa sorte, se tratava do Chefe Substituto do Parque, Adão Luiz da Costa, figura já conhecida de Fátima, acompanhado de um grupo de fiscais. Vão verificar o conserto de um cercado em terras mais distantes, sem muita demora. Caso desistamos de um retorno a passos largos para fugir do anoitecer e chegar à hospedaria ainda com a luz do dia, o combinado é que os aguardemos no pé da torre do Morro Agudo, aquela de onde avistamos a propriedade do seu Urquiza, e que a partir de agora passa a ter um nome.

Talvez tivéssemos optado em seguir nosso caminho sem o conforto de uma Mitsubishi, não fosse o fato de identificarmos um brigadista no topo da torre. Mas, como deixar passar a oportunidade de ver o Parque sob outra perspectiva? Isolado lá no alto por uma estrutura metálica e em vidro, o brigadista não ouvia nosso chamado, que depois de algumas tentativas se transformou em berros que ecoavam pelo campo.

A solução encontrada para despertá-lo foi um tanto quanto inusitada, mas de caráter original. Certamente o estridente som provocado entre o atrito de uma barra de ferro coletada no chão e a estrutura metálica da torre indicaria que algo estranho a seu cotidiano estava acontecendo. Enquanto Fátima martelava a estrutura eu me posicionei de tal forma que o vivente, ao abrir uma das janelas pudesse ter-me ao alcance de seus olhos, o que não tardou a acontecer.

Também não demorou muito para Jonas Ferreira descer de seu posto. O elevador mecânico, com um sistema um tanto quanto rudimentar para a época em que nos encontramos, exige uma força descomunal daqueles que se propõem a enfrentá-lo. Um único pedal dá os comandos de freio e partida. Quando o pedal é acionado, é preciso usar da força braçal puxando o elevador para cima pelas barras de ferro da torre.

O pedal solto paralisa os movimentos, permanecendo a engenhoca no local. Os mesmos movimentos devem ser feitos na volta; porém, sem levar em consideração o ditado de que na descida todo santo ajuda. A força empregada é a mesma. Como a estrutura da torre é estreita, estreito é o elevador que fica bem no vão central, permitindo o transporte de uma única pessoa por vez, salvo algumas raras exceções, como a de sujeitos magricelas como eu, que para tal façanha obteve o apoio moral e braçal do Jonas, enquanto minha companheira já me aguardava lá no topo.

A adrenalina aumenta nos primeiros metros acima da segura superfície terrestre, quando fortes rajadas de vento sopram pegando-nos de surpresa. No alto, percebe-se que a cabine é estreita, não acomodando confortavelmente mais que duas pessoas. O tempo que levei para subir foi o suficiente para Fátima apreciar a infinitude dos campos, matas e colinas que compõem esse cenário paradisíaco.

Foi ali nas alturas, no isolamento completo do resto do mundo, tendo como pano de fundo um distante pôr do sol, que conversei com Jonas, não sem antes, cavalheirescamente, ele ter auxiliado Maria de Fátima em seu retorno. Esse jovem de 22 anos, natural de Cambará do Sul, passou a trabalhar na prevenção e combate a incêndios florestais em agosto de 2007, após fazer um curso de 40 horas com instrutores do IBAMA, em Praia Grande, sul de Santa Catarina.

Seus plantões no Parque são de 48 horas, e quando chega na torre por volta das 9h30min da manhã já sabe que não tem horário certo para sair dali. É preciso esperar a umidade cair, e esta, nem sempre chega com o anoitecer. Normalmente ele fica até por volta das 21h30min. Porém, ressalta que em seu curto período de trabalho já esteve de plantão até a uma da madrugada.

Em época de queimadas, entre agosto e setembro, período de pouca umidade e neblina, com o tempo seco predominando, os brigadistas podem até pernoitar na torre, devendo estar sempre atentos ao imprevisto, com atenção redobrada. Jonas lembra que todas as precauções tomadas ajudam a evitar e combater os incêndios de causas naturais, prováveis nesta época do ano, mas não inibem a ação de criminosos, como aconteceu entre os dias 09 e 10 de agosto de 2007, quando parte do Parque sofreu com um incêndio criminoso de grandes proporções, destruindo a vegetação e matando os animais.

O crime está sendo investigado pela Polícia Federal de Caxias do Sul - RS e os resultados alcançados até o momento permanecem em sigilo para não atrapalhar a conclusão das investigações. Segundo o Chefe Substituto do PNAS, Adão Luiz da Costa, a relação com antigos proprietários de áreas da região do Morro Agudo é a mais complicada, pois esses não estão satisfeitos com as indenizações pagas pelo IBAMA e com o fato de terem que deixar suas terras.

Outro problema enfrentado atualmente é a relação pouco amistosa com alguns fazendeiros vizinhos ao Parque. Mesmo proibidos de exercer certas atividades para não comprometer a biodiversidade do local, como o plantio de árvores exóticas, em especial o Pinus sp., os proprietários passam por cima das leis, e desafiando as autoridades recorrem à monocultura destas espécies para aumentar os seus ganhos.

Com isso, numa tentativa de conter o avanço desta e de outras atividades ilícitas, o IBAMA passou a autuar de forma mais enérgica àqueles que insistem em permanecer no caminho da ilegalidade. O resultado não poderia ser outro: como recorrer à justiça para anular as multas nem sempre é uma decisão que lhes favorece, a vingança se volta contra a Natureza, através de incêndios criminosos como o de agosto de 2007.

Para os criminosos, segundo Jonas, não importa a quantidade de fauna e flora que se perdem em crimes como esse; para eles, o que vale é a mobilização feita pelo IBAMA para conter o fogo. É poder ver o desespero e rir dos funcionários da instituição correndo de um lado para o outro na tentativa de conter o incêndio.

Depois de anotar atentamente a boa prosa que tive com o brigadista, optamos por retornar à hospedaria caminhando, aproveitando assim os últimos raios de sol que iluminavam as colinas. Acreditando que não chegaríamos ao destino sem antes encontrar a noite pelo caminho, Jonas fez-nos a gentileza de localizar via rádio a posição exata do carro da Patrulha Ambiental do IBAMA.

Por sorte estava próximo. Então, não demorou muito e estávamos confortavelmente retornando com a carona antes prometida. É nesse primeiro momento que aproveito para estabelecer uma troca de idéias com Adão. Eu só não contava com os solavancos da confortável Mitsubishi que me impossibilitaram de prosseguir com as anotações, importantes para traçar um perfil mais apurado da atual situação dos Aparados da Serra.

No entanto, o fato de não poder contar com as anotações não significou uma perda substancial de informações. Nestes momentos, é preciso ficar atento e se valer da memória, separando sempre aquilo que vale a pena armazenar daquilo que pode ser deletado, e entre os problemas destacados por Adão e que constantemente são combatidos, está a caça ilegal aos animais silvestres.

O problema maior tem sido na área de baixo”, em Santa Catarina, onde o IBAMA tem feito pressões de rotina com o auxílio da PATRAM SC (Patrulha Ambiental de Santa Catarina). Sobre os resultados, ele afirma que é difícil pegar os criminosos, mas acrescenta que já houve apreensões de animais silvestres em cativeiro, e que os maiores alvos dos caçadores são pequenos mamíferos como a cutia, além de pássaros.

Todos animais em extinção. Maria de Fátima explica que os turistas costumam reclamar da falta de animais no Parque, pela não visualização dos mesmos, e acrescenta que os turistas não têm idéia de que as populações de animais no Rio Grande do Sul não são grandes, e que as pessoas não tem noção da rarefação.

Essa ponderação me fez lembrar do naturalista Augusto César Cunha Carneiro, um dos pioneiros da ecologia no Rio Grande do Sul, e talvez um dos mais antigos no Brasil, que em várias oportunidades me relatou suas andanças pelos mais longínquos rincões gaúchos na companhia do saudoso ambientalista José Lutzenberger.

Carneiro me disse que se a população de animais já não é grande, qualquer ação que signifique a retirada destes de seus habitats contribui substancialmente para seu rápido desaparecimento. E é justamente isso que observa sempre que retorna à lugares já visitados em oportunidades anteriores.

Sem deixar de lado os sérios problemas causados ao Parque pela perrmanência de moradores em seu interior e pelas atividades conduzidas pelos mesmos, principalmente pela pecuária, é importante registrar o tratamento cordial dispensado por estes aos forasteiros. Mas, essa cordialidade pode estar com os dias contados.

Em nossa segunda visita aos Aparados da Serra, em janeiro de 2008, o Diretor do Parque, Deonir Galvani Zimermann, afirmou que o IBAMA já liberou as verbas para a indenização dos 35% de terras que ainda são utilizadas pelos seus donos ou arrendatários. Segundo Deonir, a estimativa é de que em dois anos todos os proprietários sejam indenizados, acabando assim com toda e qualquer atividade, inclusive a da pecuária.

Lamentavelmente, nesta mesma ocasião descobrimos que a casa pertencente à família Kehl acabara de ser derrubada pelo IBAMA. Com isso, foi-se também ao chão nossa expectativa de vê-la transformada num centro de hospedagem para pesquisadores e estudantes, bem como num centro de educação ambiental para a comunidade do entorno.

Os animais são pouco vistos

Descrever o passo a passo de nossa estada no PNAS não é meu objetivo, desejo apenas relatar os acontecimentos mais importantes, registrando parte da atual e real situação do mesmo. Na primeira visita, entre 29 de novembro e 02 de dezembro de 2007, caminhamos 33 quilômetros, quando várias áreas foram percorridas, entre matas e campos, terras já pertencentes ao IBAMA e propriedades ainda sendo manejadas (exploradas) pelos seus donos ou arrendatários.

De forma não tão intensa, devido à má condição do tempo, outros lugares foram visitados em janeiro de 2008. Nas duas ocasiões, foi triste a constatação de que até mesmo os moradores do Parque cada vez menos têm tido a sorte de avistar os animais silvestres. Neste sentido, também são poucos os relatos dos funcionários do IBAMA. Não estivesse acompanhado de uma especialista, exímia conhecedora do Parque, que me ensinou a ver e a perceber tudo o que compõe aquele ecossistema, talvez tivesse saído bastante frustrado, já que não vimos muito, além de vestígios.

No entanto, aprendi que os vestígios indicam que as florestas e os campos não estão vazios, que os animais ainda estão ali, por mais raros que sejam. Afinal, ruim seria se nem mesmo tivéssemos os vestígios para observar, analisar e registrar. Talvez a própria floresta não mais existisse. Nos ecossistemas, a permanência e a continuidade da diversidade vegetal ou animal se garante na sua interação contínua. Sem uma, não existe a outra. A floresta não se mantém na ausência de qualquer um destes elementos, que se amparam mutuamente há milhões de anos.

Enfim, durante o período em que estivemos no PNAS, registramos alguns vestígios e poucos animais, como demonstram as anotações que seguem: pegadas de mão-pelada, pegadas de jaguatirica, pegadas de cutia, fezes de leão-baio, pegadas e visualização de graxaim-do-mato, pegadas de veado-campeiro, fezes e pegadas de lontra, cheiro de zorrilho, vocalização de gavião-pato, vocalização e visualização da gralha azul (poucas), visualização de dois papagaios-charões e uma seriema em fazenda vizinha.

Durante nossa segunda estada no Parque tivemos duas surpresas; uma agradável, quando visualizamos pegadas de uma fêmea de leão-baio, acompanhada de pegadas de um filhote.

Para ilustrar este belo felino, para quem não o conhece, utilizo-me da descrição encontrada em A Fisionomia do Rio Grande do Sul”, editada em 1942, de autoria do naturalista e professor, Pe. Balduíno Rambo, quando o compara ao jaguar, ou onça-pintada: De tamanho menor é o gato sul-americano denominado puma, suçuarana ou leão baio. Sua pelagem cinzento-parda, unicolor, adapta-se perfeitamente à cor das árvores, em cuja copa dá caça aos macacos e coatis. Incapaz de abater o gado maior, pode fazer estragos entre porcos e lanígeros. Na borda da serra, ocorre em regiões de mata ainda intata, como acontece nos aparados do leste. Nos matos do Alto Uruguai, gosta de se aproximar, de noite, dos acampamentos dos agrimensores e madeireiros, miando à maneira de gato, mas tornando-se perigoso só quando ferido.” A surpresa desagradável ficou por conta de uma jaguatirica encontrada morta há dez dias na estrada que dá acesso ao Parque, há poucos metros da Guarita do Rio Camisas.

A identificação do animal só foi possível graças a uma foto tirada em um aparelho celular por um brigadista antiincêndio, que passava pelo local. Na esperança de encontrarmos a carcaça do animal, caminhamos três quilômetros até o local indicado. Infelizmente nada foi encontrado, o que, de certa forma já prevíamos, visto que o animal morto serve de banquete para outras espécies carnívoras que habitam a região.

Na descrição do Pe. Balduíno Rambo, O terceiro gato selvagem rio-grandense é a jaguatirica, de pelo malhado como o jaguar, porém muito menor. É um belo animal, como que um tigre em miniatura, que passa a vida caçando aves no mato. Raras vezes bate nas galinhas. Quando tem cria, torna-se feroz, havendo casos em que agride o homem, saltando-lhe às costas e sulcando-lhe as carnes com as garras e os dentes”.

Os habitantes locais: a falta de diálogo com a natureza

A visita ao PNAS me serviu para várias constatações e conclusões. A primeira delas é que cada um de nós pode ter uma interpretação diferente do significado da palavra preservação.

Conversar com os moradores e funcionários, observar e participar de suas rotinas foi imprescindível para traçar um perfil dos mesmos sem julgá-los levando em consideração aquilo que para nós é certo e/ou errado. Alguns deles não conseguem estabelecer um diálogo com os demais elementos que fazem parte deste ecossistema. O sentimento de pertencimento é diferente daquele que para nós seria o ideal, mas nem por isso podemos condená-los. A sensação que nos passam, é como se fossem peixes fora dágua.

Tomemos por exemplo a família do Sr. Elói Paulo Carvalho de Lima, que generosamente nos recebeu em duas oportunidades para almoço e em outra para um café da tarde. Seu Elói tem 54 anos e está no Parque desde 1986, onde ainda tem 28 hectares de terra não indenizados, utilizados na criação de 90 cabeças de gado, entre adultos e bezerros, que também circulam em áreas ainda pertencentes à Unidade de Conservação.

As terras são herança de família, como em quase todos os casos, e a posse das mesmas é de 1909. Seu Elói é concursado pela prefeitura de Cambará do Sul e cedido pela mesma ao Parque, onde trabalha por uma semana e folga outra, quando se dedica à criação do gado junto com a esposa, Dona Vera Ester Carvalho de Lima. Trabalho que lhes rende leite, queijo e carne, vendidos na região. O casal tem três filhos. A mais velha, Eloísa Carvalho de Lima Santos, de 24 anos, é casada e já não vive com os pais. São os mais novos, porém, que despertaram minha curiosidade.

Gabriel Carvalho de Lima, de 14 anos, passa meio dia em Cambará, onde estuda. O tempo restante é utilizado para ajudar os pais nas lides campeiras. Seu trabalho se resume no auxílio à ordenha e na busca pelo gado, quando monta no lombo de um cavalo e contribui para embelezar as paisagens do campo, em cena igual às retratadas pelo arquiteto e artista plástico José Lutzenberger (pai do ecologista de mesmo nome), na série Gaúchos”, que apresenta o cotidiano, os costumes e as tradições dos nossos estancieiros.

Mas, para minha surpresa, é a habilidade de Gabriel com o papel e o lápis que me impressionam. Sua aptidão para o desenho comoveria qualquer engenheiro. Não há carro, moto, caminhão ou ônibus que fujam de seus traços. Não precisa de muito tempo para captar cada detalhe, chegando quase sempre à perfeição, como se fossem fotografias os seus desenhos. Minha tristeza ficou por conta de uma solicitação não atendida. Fiquei surpreso ao ver negado o meu pedido para que desenhasse algum bicho do Parque. Gabriel não é muito chegado a bichos e plantas. Não tem muita afinidade e interesse pelos mesmos.

Apesar de ser nascido e criado em um dos lugares mais belos do Rio Grande do Sul, morando há mais ou menos uns 300 metros do cânion Itaimbezinho, ele não sabe desenhar plantas e bichos. Mesmo assim, torço para que continue desenvolvendo sua aptidão e para que um dia se torne um grande artista. Sua irmã, Aline Carvalho de Lima, de 18 anos, desejava ser marinheira. Hoje, após ter feito um curso de massoterapia em Caxias do Sul, prepara-se para casar e deixar a casa dos pais. Para ela, ficar nesse lugar, não tem futuro.

Distanciamento x proximidade

Observamos que existe um distanciamento destas pessoas com o meio em que vivem. O mundo externo, na maioria das vezes, é mais atraente do que o lugar de sua origem. Não houve momento em que sentíssemos a curiosidade ou o desejo por parte de algum morador em estudar ou desenvolver atividades de pesquisa e preservação do Parque.

Lamentavelmente, por uma questão cultural, para estas pessoas, a única maneira de se relacionar com esse ambiente é a extrativista, passada de geração para geração. É a única forma que aprenderam. Só por isso deixam de ser pecados” os erros que cometem com suas interferências e manejos não sustentáveis neste local.

Percebe-se também, em pequenos detalhes, a falta de sensibilidade de algumas pessoas para com o processo de recuperação e de evolução da Natureza. Nesse sentido, cito uma funcionária do Parque, que ao observar as vassouras” crescendo no campo, nos arredores do cânion, nos chama a atenção para o fato de a vegetação estar interferindo na visualização do peral”, acrescentando que prefere o cânion fortaleza, no Parque Nacional da Serra Geral, por este ser mais limpo” no seu entorno. A limpeza” à que se refere nossa amiga, é a ausência de vegetação. Neste caso, o que prevalece é a ingenuidade, e não a maldade. A falta de conhecimentos gera esse tipo de pensamento.

Didaticamente, Maria de Fátima explica a função que as diferentes plantas desempenham no solo, sua importância para o enriquecimento e fertilidade do mesmo, e assim convence a menina a observar de forma atenta o ambiente, buscando sempre enxergar além do que os olhos vêem. Acredito que é assim que se mudam os paradigmas. Somente através da educação e da sensibilização conseguiremos mudar a postura das pessoas. Torna-las sensível é o primeiro passo para que sejam defensoras e aliadas da natureza.

Funcionários de Parques, de Unidades de Conservação, devem estar imbuídos de um espírito de pertencimento e de unidade com estes locais. Não devem ser meros burocratas a serviço do estado. Os burocratas, na maioria das vezes, prestam um desserviço à comunidade. Por sorte, estamos nos encaminhando para que as mudanças almejadas aconteçam. No que diz respeito ao Parque Nacional dos Aparados da Serra, a informação de que os 35% de terras que ainda são utilizadas pelos seus donos ou arrendatários serão indenizadas nos próximos dois anos, sinaliza uma solução para grande parte dos problemas lá encontrados.

Há que se destacar a disponibilidade e boa vontade da direção do Parque em estabelecer parcerias, oportunizando a realização de trabalhos tão importantes como o de Maria de Fátima e de outros pesquisadores. A presença destes também pode ser boa na medida em que os mesmos têm a oportunidade de compartilhar seus conhecimentos com funcionários, visitantes e com a comunidade.

Desta forma, quando todos se sentirem integrados ao ambiente, naturalmente desejarão preservá-lo.

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