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Antes, recuperar o rio

OESP, Notas e Informações, p. A3
19 de Out de 2004

Antes, recuperar o rio

Não há como não concordar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando, ao lembrar o terrível drama da seca no Nordeste, afirma: "Não sei como alguém pode ser contra levar um caneco de água para quem anda seis léguas com um pote na cabeça, depois que a vaca já bebeu a água." Ninguém que esteja minimamente preocupado com a aflitiva situação em que vivem milhares de brasileiros no semi-árido nordestino se oporá a um programa de ajuda a essa população. O que se discute é que tipo de programa, sustentável ao longo do tempo tanto do ponto de vista econômico como ambiental, o Brasil deverá adotar. Uma idéia que se discute há quase dois séculos, a transposição de águas do Rio São Francisco para irrigar a região semi-árida, voltou a ser considerada a melhor solução. O governo Fernando Henrique chegou a incluir a obra no plano "Brasil em Ação", mas ela não saiu do papel. Agora, o governo Lula a considera prioritária e já previu, na proposta de Orçamento para 2005, recursos para iniciá-la. Na semana passada, o Comitê de Gestão da Bacia Hidrográfica do São Francisco iniciou consultas públicas sobre o projeto.
Conhecido como o rio da integração nacional, o São Francisco tornou-se "o rio da desunião nacional", como mostrou reportagem publicada domingo pelo Estado. E a causa da divisão é justamente o projeto de desvio de suas águas para áreas do sertão nordestino afetadas pela seca. Embora sejam respeitáveis os argumentos do governo, especialmente os de natureza humanitária, são muitos os que se opõem ao plano, e seus argumentos são tecnicamente fortes.
A construção de dois canais poderá resultar na transposição de um volume de 26 mil litros a 127 mil litros de água por segundo do São Francisco. O estudo de impacto ambiental que baliza o projeto relaciona 44 conseqüências dessa obra. Algumas são inquestionavelmente positivas, como a geração de empregos, o abastecimento da população que vive no campo e a redução do êxodo rural. Mas são apenas 12 os efeitos benéficos, dos 44 listados. Entre as conseqüências negativas, estão a perda de terras férteis, a redução da capacidade de geração de energia elétrica e a ameaça à fauna terrestre e o risco de redução da biodiversidade aquática.
Além disso, nem tudo é previsível. Pequenas mudanças feitas pelo homem no regime de um rio podem ter efeitos desastrosos, como mostra o caso do Valo Grande, em Iguape. Inicialmente um pequeno canal de 18 quilômetros que ligava o Rio Ribeira ao Mar Pequeno, o Valo tornou-se, por causa do processo de erosão, um importante braço do rio. Assim, alterou a salinidade do Mar Pequeno, com grande impacto sobre a vida marinha.
Para beneficiar uma parte da população do Nordeste - que, repetimos, precisa ser amparada -, o plano do governo coloca em risco o avanço que, a muito custo, se alcançou em outra parte da região. No Vale do São Francisco instalou-se uma agricultura competitiva, que melhorou as condições locais de vida. Na situação em que se encontra o rio, a redução de sua vazão pode afetar seriamente a produção da região. Valerá a pena fazer a obra nessas condições?
A poluição, o assoreamento, a construção de usinas hidrelétricas e o uso de suas águas para irrigação, entre outros fatores, alteraram a vazão do rio e provocaram mudanças profundas na vida aquática. Por isso, antes d~ desviar as águas do rio, é precisa' recuperá-lo.

OESP, 19/10/2004, Notas e Informações, p. A3

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