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Ameaça invisível

Isto É, Ciência, Tecnologia & Meio Ambiente, p.92-96
08 de Set de 2004

Ameaça invisível
Lixo tóxico importado para enriquecer fertilizantes pode contaminar o solo, a água e toda a lavoura nacional

Darlene menconi - Santos (SP)
Colaboraram: Cláudia Pinho e Fernando Kadaoka

O maior porto abaixo da linha do Equador parece uma cidade. Centenas de caminhões se enfileiram num congestionamento infernal uma multidão de carregadores transita entre silos e contêineres espalhados por 12 quilômetros de cais, de onde parte quase um terço das exportações brasileiras. Dentro dos galpões onde ficam as mercadorias apreendidas pela alfândega de Santos, em São Paulo, a luz quase não vinga. O que se vê é poeira acumulada sobre centenas de caixas vindas de todos os cantos do mundo. São tênis Reebok piratas, camisetas e meias Nike falsificadas, computadores da Tailândia, tevês portáteis da China, aparelhos de som e tevês de plasma.
Empilhadas num canto, 22 sacas repletas do que aparenta ser entulho de construção também aguardam um alvará. A carga embarcada por uma empresa química francesa com sede em Paris partiu do porto de Algeciras, na Espanha, e atracou no de Santos em outubro do ano passado. Nos documentos oficiais, dizia-se que o carregamento era de pó de zinco. Junto do manganês, do ferro e do cobre, esse minério é misturado ao adubo para suprir as deficiências de nutrientes do solo e prepará-lo para a agricultura.
A Receita Federal suspeitou das empresas envolvidas na importação. Apreendeu as sacas, avisou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que enviou uma amostra a um laboratório de análises químicas. O resultado foi chocante. Em vez do minério, o que se detectou foi um amontoado de poluentes tóxicos em alta concentração, entre eles chumbo, cádmio e arsênico, os chamados metais pesados, muitos deles relacionados ao aparecimento de doenças como o câncer.
Lavoura tóxica - Resultantes do processo de industrialização, essas substâncias existem na natureza, porém em baixas concentrações. "O chumbo é encontrado no solo em 40 partes por milhão, e, nessa carga, está acima de 100 mil partes por milhão", conta o químico Elio Lopes dos Santos, engenheiro industrial e mestre em poluição atmosférica. "Esse é o pior caso de contaminação que já vi em 32 anos como especialista. É uma poluição sem fronteiras lançada pelo País inteiro", diz Santos, que trabalhou 25 anos como técnico da agência ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) na Baixada Santista. O alerta faz sentido, pois sabe-se que nossos portos são verdadeiras peneiras, e boa parte de carga semelhante deve estar circulando por todo o País.
O técnico aposentado fez uma análise dos nutrientes agrícolas contaminados e entregou ao Ministério da Saúde. Seu parecer é de arrepiar. Em 57 páginas, Santos explica que esses micronutrientes agrícolas são geralmente empregados para suprir as deficiências do solo. No caso brasileiro, no entanto, o que se faz é usar lixo de indústrias nacionais e de empresas dos países mais ricos do planeta, que incluem na sucata todo tipo de resíduo. Na lista estão companhias da Espanha, Holanda, Suíça, França e dos Estados Unidos.
O problema mais grave na carga apreendida pela alfândega de Santos é que esses poluentes se acumulam no solo e nos cursos d'água por vários séculos, sem se degradar. Seus efeitos são igualmente nocivos à saúde e ao meio ambiente. Ou seja, as plantas, as hortaliças e mesmo os animais que tiverem contato com esse solo ou essa água contaminada podem intoxicar os seres humanos, o último elo na cadeia alimentar.
Até a década de 1970, o material usado como aditivo pela indústria de fertilizantes era formulado a partir de minérios existentes na natureza. Para diminuir os custos de aquisição de matéria-prima, as empresas de adubo passaram a usar resíduos de indústrias, nos quais estão presentes o zinco, o manganês e outros minerais necessários para um solo de qualidade. Como tratar esses rejeitos contaminados custa caro, muitas companhias incluíram nessa mistura uma montanha de poluentes. "Junto desse material nobre para a lavoura vem a escória das indústrias, que não serve para a planta e pode ser muito nociva ao organismo humano", explica Marco Pérez, cooordenador da área técnica da saúde do trabalhador no Ministério da Saúde.
Questão de custo - Assim que essas toxinas chegam à lavoura, ocorre uma intoxicação em etapas. "No primeiro instante, as pessoas expostas ao veneno são os trabalhadores das indústrias de fertilizantes, depois o trabalhador rural e aí a população dos arredores. Só então vem o risco de contaminação de quem se alimenta dos produtos da colheita", diz Pérez. Desde que se apreenderam os sacos de poluentes químicos no porto de Santos, o governo notificou a confederação dos trabalhadores agrícolas sobre os riscos a que estão sujeitos os agricultores que tiram o seu sustento do campo.
Gerado como resíduo tóxico nos países industrializados, esse lixo químico chega aqui duplamente ilegal. Por se tratar de produto perigoso, a escória deveria ser submetida a um processo rígido de tratamento e condicionamento, o que sai caro. O custo da disposição de uma tonelada de resíduos industriais costuma variar entre US$ 100 e US$ 2 mil nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Ocde), que reúne as nações mais ricas. Desde meados da década de 1980, estima-se que cinco milhões de toneladas de resíduos tóxicos foram exportados para as nações do antigo Leste Europeu e para os países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil.
Para evitar o comércio ilegal desses resíduos perigosos, em 1988 o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) promoveu uma conferência diplomática na Suíça para estabelecer mecanismos de controle dos rejeitos tóxicos. A chamada Convenção de Basiléia entrou em vigor em 1992 e, oito anos depois, contava 136 países membros - o Brasil inclusive. Além da fiscalização, o tratado cria formas, regras e procedimentos para regulamentar o transporte das cargas tóxicas. Seria uma forma de solucionar um problema ambiental mundial de maneira coletiva.
Só que a realidade é diferente. Cálculos do Pnuma Brasil avaliam que cerca de 400 milhões de toneladas de resíduos perigosos são produzidos no mundo todos os anos. Em torno de 10% desse total cruza fronteiras internacionais. O transporte de ácidos corrosivos, de produtos orgânicos sintetizados em laboratório e metais pesados como o chumbo, o cádmio e o mercúrio representam uma ameaça múltipla por poluir as águas subterrâneas, o solo e o ar. Com o endurecimento da legislação ambiental nos países industrializados, a partir da década de 1980, houve um dramático aumento no custo da disposição final de resíduos industriais. Foi o bastante para fazer brotar uma verdadeira máfia do lixo com ramificação internacional.
Denúncia - A carga tóxica apreendida no porto de Santos foi apenas a ponta do iceberg de uma autêntica mina de ouro. Em vez de tratar os dejetos produzidos em suas fábricas, as empresas européias - aliás impedidas de exportar resíduos perigosos por serem signatárias da Convenção de Basiléia - ensacam seu lixo químico e despacham para o quintal das nações mais pobres. "É uma contaminação invisível. Quem planta, quem colhe e quem come os alimentos produzidos na nossa lavoura não tem idéia de que pode estar comprando elemento tóxico", diz Ingrid Oberg, chefe do Ibama em Santos. "Será que não estamos tornando inviável o nosso solo para a agricultura", questiona Ingrid.
No início de agosto, o Ministério Público Federal disparou um alarme. Numa notificação à coordenação da administração aduaneira, os procuradores da República sugeriam mais rigor na fiscalização de cargas de minérios nos portos e aeroportos nacionais. O resultado foi imediato. Santos parou de receber cargas tóxicas. Em compensação, há notícias de que portos como o de Paranaguá serviram de porta de entrada para a carga destinada à indústria de adubo.
Pelo andar da carruagem, tudo indica que o assunto está longe do fim. A história é testemunha: a primeira denúncia de importação ilegal de lixo químico foi feita em 1992 pela ONG Greenpeace. Os ambientalistas protestaram contra a importação de poluentes da Inglaterra. Na ocasião, diz Daury de Paula Júnior, promotor de Justiça do meio ambiente de Santos, tentou-se enviar a carga de volta, mas parte teve de ser incinerada aqui no Brasil.
"O maior entrave é que faltam estudos científicos sobre o efeito desses poluentes. Sem estudo técnico, não se muda absolutamente nada. Sem legislação específica, também não se muda nada. O resultado é que pouco se fez nesses anos todos", diz Paula Júnior. Quando o assunto é poluição e contaminações de água e do solo, o Brasil está longe de ser bom exemplo. Há casos clássicos e vergonhosos de impunidade e descaso que não se resolveram até hoje.
Alertado da amplitude do problema dos fertilizantes contaminados, o Ministério do Meio Ambiente tenta se mexer. "Os efeitos desses produtos perigosos para o meio ambiente são graves porque podem afetar toda a cadeia alimentar, dependendo da concentração e do tipo de poluente", explica Geraldo Siqueira, chefe de gabinete da Secretaria de Qualidade Ambiental. O que o governo federal pretende é criar uma força-tarefa de vários ministérios para, mais uma vez, discutir a questão. A Cetesb se desvia da encrenca. Diz que as competências nesse caso são do Ibama e do Ministério da Agricultura. E reitera a intenção de usar resíduos industriais para a produção de fertilizantes.
Outros crimes - Uma das formas de minimizar o problema seria rotular os produtos químicos. Assim como um iogurte vendido no mercado, o agricultor teria certeza do que adiciona na lavoura. Caso contrário, em vez de aumentar sua produção, o que ele faz é dar um tiro no pé. Com um detalhe: os efeitos não aparecem no curto prazo. Demoram entre 20 e 30 anos para surgir. E, aí, pode ser tarde demais.
Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre), o despejo irregular de resíduos sólidos e as áreas contaminadas por produtos tóxicos são os problemas ambientais que mais ameaçam a saúde pública. Todos os dias são coletadas 228 mil toneladas de resíduos no País. Só que dois terços dessa montanha vão para lixões a céu aberto e aterros sem controle. Por isso, estima-se que sejam pelo menos oito mil os casos de contaminação no País. Só em São Paulo são mais de 700 locais comprovados. Outro vilão urbano são os postos de gasolina. Boa parte dos cerca dos sete mil postos paulistas, por exemplo, já teve algum tipo de vazamento em seus tanques. O perigo das contaminações é silencioso. Na maioria das vezes, os acidentes, as explosões e os vazamentos pegam os moradores de surpresa.

Esqueletos do passado
Os casos mais emblemáticos de contaminação da água e do solo se arrastam por anos e nem sempre se resolvem

Cataguases (Minas Gerais)
Em março de 2003, um milhão de metros cúbicos de soda cáustica e produtos químicos vazou do reservatório da fábrica de pasta de papel mineira Cataguazes. A mancha se espalhou por três rios e deixou mais de meio milhão de pessoas sem água
Cidade dos Meninos (Rio de Janeiro)
Exemplo de descaso e lentidão, há 60 anos uma fábrica de inseticidas do Ministério da Saúde lançou 400 toneladas do veneno pó-de-broca em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A unidade foi desativada em 1957 e no local funcionou um abrigo para crianças. As famílias que moravam ao redor da fábrica só foram removidas em 2001
Condomínio Barão de Mauá (São Paulo)
A Cofap jogou seus resíduos industriais num aterro clandestino entre 1960 e 1980. Na década seguinte, a construtora SQG ergueu um condomínio onde vivem quatro mil pessoas. A contaminação do subsolo por resíduos cancerígenos e gases inflamáveis veio à tona no final de 1990, quando uma caixa-d'água explodiu, matando uma pessoa
Paulínia (São Paulo)
Em 1977, ao vender sua fábrica de defensivos agrícolas no interior paulista, a empresa anglo-holandesa Shell descobriu que substâncias tóxicas como resíduos de pesticidas contaminaram o solo e o lençol freático. A barreira para frear a contaminação e a estação para tratamento da água subterrânea não saíram do papel
Santo Antônio de Posse (São Paulo)
Durante 13 anos, o aterro industrial Mantovani recebeu 300 mil toneladas de resíduos tóxicos de 60 empresas da área química e petrolífera. Fechado em 1987, o aterro contaminou o solo e o lençol freático com substâncias cancerígenas. As empresas ainda discutem de quem é a culpa
São Mateus do Sul (Paraná)
Uma falha nos sensores da refinaria de óleo de xisto da Petrobras em Araucária provocou vazamento de quatro milhões de litros de óleo, comprometendo 50 quilômetros do rio Iguaçu, o maior do Paraná. Em 2002, houve acordo para a remediação das áreas contaminadas, mas até agora pouco foi feito

O veneno que vem do céu

Responsável por quase metade do superávit da balança comercial brasileira, o fabuloso desempenho do agronegócio esconde uma dura realidade. Enquanto grandes produtores usam máquinas de quase R$ 1 milhão para o plantio, a pulverização e a colheita, aos pequenos produtores resta o esforço físico para operar a enxada e a bomba de agrotóxico levada nas costas. São justamente esses pequenos e médios agricultores as principais vítimas da exposição aos efeitos nocivos dos agrotóxicos. Segundo estudo do médico Angelo Trapé, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pode chegar a 1,5 milhão o total de brasileiros expostos aos defensivos agrícolas.
A intoxicação por inseticida, pesticida e fungicida provoca alterações no organismo e manifestação de doenças hepáticas, gastrointestinais, alterações neurológicas e, em casos extremos, até a morte. Trapé coordena o Programa de Vigilância da Saúde para Populações Expostas a Agrotóxicos. Toda vez que chega um caso de intoxicação no Hospital das Clínicas da universidade, sua equipe e a Secretaria de Saúde local iniciam a busca por casos semelhantes. Nos últimos três anos, eles examinaram 2.500 agricultores de 12 municípios do interior paulista. Do total, 7,5% tinha sintomas de intoxicação. "Se 7,5% dos agricultores da relativamente rica região de Campinas sofrem de contaminação, é pertinente pensar que no País essa proporção seja parecida", diz Trapé. Calculando-se esse porcentual sobre os 20 milhões de agricultores do País, chega-se a 1,5 milhão de vítimas. Detalhe: só no primeiro semestre deste ano, a produção nacional de agrotóxicos aumentou 11,6%.
O trabalho da Unicamp avaliou ainda a intoxicação crônica, decorrente de décadas de exposição a produtos químicos. A maioria dos atendidos são fruticultores entre 20 e 40 anos. Parte deles teve contato com inseticidas ao redor dos dez anos. Entre pequenos produtores, o uso de proteção individual, como luvas, aventais e máscaras é pouco difundido. Um problema extra é que a formulação dos agrotóxicos é segredo industrial resguardado por patente dos produtores. Sem saber quais substâncias compõem os agrotóxicos, fica mais difícil o tratamento.
Fernando Kadaoka

Isto É, 08/09/2004, Ciência, Tecnologia & Meio Ambiente, p.92-96

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