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A Amazônia vista do chão

OESP, Caderno 2, p. D1
24 de Nov de 2003

A Amazônia vista do chão
Há 30 anos fotografando a riqueza e tragédia da região amazônica, Pedro Martinelli inaugura selo editorial com livro dedicado a índias e caboclas

Maria Hirszman

Há 30 anos, quando ia de avião para Manaus, o então fotógrafo jornalístico Pedro Martinelli adquiriu o hábito de cronometrar quanto tempo se passava entre o último resquício de casa e roça e os sinais de proximidade da capital amazônica. O percurso de 1h40 naquela época reduziu-se quase pela metade hoje. "Perdemos uma hora, de Boeing, a 9001an/h, em linha reta", alerta ele, que há décadas se dedica a registrar de perto as belezas e tragédias da região que vem sendo destruída pelo descaso e ambição do homem, substituindo o olhar frio dos satélites e as análises feitas em escritórios confortáveis por longas caminhadas mato adentro, na tentativa de mostrar de perto como vive o homem do mato, o índio e o caboclo.
"O olhar sobre a Amazônia não deve se resumir apenas à beleza natural dos bichos e da floresta. A foto para mim é suporte para atacar essa desgraça que acompanho há décadas", diz Martinelli tentando explicar porque retorna constantemente e obsessivamente ao mesmo tema, mesmo que por enfoques e ângulos distintos. O mais novo resultado desse processo é o livro Mulheres da Amazônia, que o fotógrafo lança a esta noite no Museu da Casa Brasileira.
A obra, que também marca o nascimento de um novo selo editorial, o Jaraqui - que criou para conseguir lançar seus trabalhos num ritmo próprio, sem ter de buscar novos parceiros a cada título e a um custo um pouco mais acessível (é importante mencionar que para isso ele também fechou um contrato de exclusividade com a Fnac) - tem a mulher como tema Mas não de maneira sexista ou paternalista. É a partir delas que Martinelli enfoca questões que julga essenciais para a compreensão desse universo que nos é tão distante, mesmo sendo um dos pilares fundamentais de nossa cultura. "São nossa essência de brasileiros, de pé no chão", diz, explicando que mostrar os costumes, arquitetura, moda e beleza foi seu jeito de ser mais didático.
Majoritariamente em preto e branco, as fotos de Mulheres da Amazônia são grandes contrastes de luz e sombra, imagens um tanto atemporais e silenciosas do dia-a-dia de figuras como Claudia, índia nascida em Tucumã-Rupitá (na beira do Alto Rio Içava, no extremo noroeste, quase na fronteira com a Colômbia) e que foi retratada inicialmente por Martinelli em 99 em sua exaustiva labuta. Seu dia-a-dia é descrito em texto assinado por Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental (reproduzido parcialmente ao lado) e retratado com uma poesia que contrasta com a urgência presente no discurso de denúncia do fotógrafo.
É ao mesmo tempo terrível e bela a imagem da mulher que amamenta enquanto anda por horas no mato, retornando de uni dia duro na roça Há beleza em gestos simples de mulheres como ela, num penteado ou uma forma de preguear a roupa na cintura "Há mulheres lindas em qualquer ambiente", diz. "Fiz moda 10 anos. É algo tão previsível que não tem a menor graça. O interessante é ver como essas mulheres conseguem ser mais criativas, alinhadas e glamourosas sem ter revista para copiar", alfineta
"Lento escoar de um Brasil escondido". É assim que Dorrit Harazim define o objeto de estudo, de luta do fotógrafo no texto de introdução da obra Esse Brasil escondido reserva boas e más surpresas. O que nos falta é olhar para ele mais de perto. 0 desconhecimento do problema é, segundo Martinelli, igual ou pior do que no passado. Segundo ele, quando vemos um índio de havaianas e shorts fazemos cara de nojo, viramos de costas. "Queremos o clichê exótico", acusa, lembrando que enquanto engolimos a balela do crescimento sustentado (é impossível recuperar a mata em 30 anos, como prometem seus defensores) continuamos a ensinar a nossos filhos que é crime comer tartarugas. Nos recusamos a ver tanto o que há de autêntico e belo nessas culturas como a evolução real dessas sociedades e continuamos a olhar essas sociedades de cima, por meio do satélite e do avião.
Sua pesquisa sobre as mulheres registra por exemplo a presença crescente das mulheres na força de trabalho local. "Os patrões começam a perceber que elas são mais precisas, mais produtivas, quebram menos os equipamentos e nunca faltam às segundas-feiras." As operadoras de guindaste (está na mão de uma delas o maior e mais sofisticado guindaste de Tucurui), soldadoras e dentistas convivem no livro com personagens que passam ávida se dedicando à cultura da mandioca São elas que podem, segundo Martinelli, sugerir soluções viáveis para o problema urgente da destruição da Amazônia.
"O livro mostra que essas pessoas têm saída para as nossas questões; têm condições mais do que ninguém de desenvolver projetos de preservação que devem ser adotados imediatamente, se não quisermos ter ilhas de mata virgem cercadas de desertos de pasto e soja, como já ocorre no Parque Nacional do Xingu", denuncia.
Martinelli também vem desenvolvendo uma interessante pesquisa sobre a Amazônia real (cujos resultados podem ser vistos parcialmente em seu site wwrv.pedromartinelli.com. br), na qual evidencia impasses, ironias e tragédias dessa relação conflituosa, das motosserras, da aculturação, da pesca em larga escala, etc... "São necessárias centenas de publicações para tentar fazer o brasileiro entender melhor a Amazônia", constara, ele, que também defende a necessidade de criar uma Universidade da Mata, para estudar in loco essas questões aparentemente insolúveis e por isso fascinantes.
Mulheres da Amazônia. De Pedro Martinelli. Reúne 300 imagens. Editora Jaraqui, 176 páginas, R$ 80,00. Lançamento hoje, às 19h30. Museu da Casa Brasileira. Av. Brig. Faria Lima, 2.705, tel. 3032-3727

TRECHO
Naquele dia, Claudia fez o que lhe cabia fazer. arrancar raízes de mandioca-brava (káini) e transformá-las em comida, aos costumes. Jornada duríssima. Levantou de madrugada, ainda escuro, preparou mingau, serviu aos filhos e ao marido, apanhou terçado e aturá (tsheeto) e seguiu para a roça (kenike). Foi acompanhada pela mãe e levou consigo duas filhas, Adriana, de seis, e Silvana, recém-nascida. Igor, de quatro, ficou com o pai. Remou duas horas rio acima, entrou no Igarapé Pamaali, deixou canoa no porto, subiu barranco até chegar na roça de terra firme. Arrancar as raízes foi tarefa especialmente pesada porque se tratava de tuna heénami, roça velha, já encapoeirando.
Houve tempo, no começo do mundo, quando kaali andava na terra, que as mulheres não sofriam no trabalho da roça e processamento da mandioca Bastava marcar terreno e surgia unia roça. Bastava fazer o atura e deixá-lo na roça, a caminho do igarapé para se banhar, que ele ressurgia na comunidade, lotado de mandiocas já descascadas! As mulheres só faziam imaginar e tudo acontecia nos conformes, até mesmo beiju pronto para comer. Hoje os mais velhos ainda lembram das frases certas, orações evocativas para esses verdadeiros milagres. Mas a curiosidade dos humanos - que tentavam desvendar o que se passava nas roças do kaali - estragou tudo e, aos poucos, foram sendo castigados, perdendo privilégios, condenados a trabalhar duro.

OESP, 24/11/2003, Caderno 2, p. D1

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