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Amazônia pega fogo. E não é com queimadas

OESP, Espaço Aberto, p.A2
Autor: NOVAES, Washington
01 de Abr de 2005

Amazônia pega fogo. E não é com queimadas

Washington Novaes

Está aprovada a realização, na Câmara dos Deputados, de duas audiências públicas para discutir, na Comissão da Amazônia, o projeto de lei enviado pelo Executivo que permite a concessão a empresas privadas, por até 60 anos, de 13 milhões de hectares de florestas públicas (130 mil km², área equivalente a quase seis vezes o Estado de Sergipe). Pretende o governo que seja votado em 45 dias. É pouco para projeto tão polêmico.
Na Amazônia, 20% das terras são privadas; cerca de 33% correspondem a áreas indígenas e unidades de conservação; as terras não tituladas - e, portanto, públicas - ficam entre 40% e 47% do total. E o projeto prevê três formas de gestão de florestas públicas: unidades de conservação com produção florestal sustentável; áreas para uso comunitário, como assentamentos, reservas extrativistas, áreas quilombolas; e concessões para exploração florestal, por licitação pública e mediante pagamento. Esta última forma é o centro da polêmica.
Segundo o diretor do Programa Nacional de Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Tasso Azevedo (Ecoterra, 18/3), "é a única solução". E tem apoio público da Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas e de parte das chamadas ONGs ambientalistas. Mas outra parte destas e numerosos cientistas têm sido contundentes nas críticas. A eles se juntam agora segmentos militares: o presidente do Clube Militar, general Luiz Gonzaga S. Lessa, tem dito aos jornais que o projeto "pode afetar a soberania nacional" e favorecerá a expansão na Amazônia da atividade de madeireiras asiáticas, que tanta polêmica já provocaram.
Entre os cientistas, algumas das críticas mais pesadas partiram do professor Aziz Ab'Saber, um dos que mais conhecem a Amazônia. Para ele, trata-se de um "erro histórico" conceder terras públicas para exploração por 60 anos. Não só o Executivo não teria formas de controlar um manejo adequado (se for possível), como seria ilusório acreditar que após seis décadas as terras voltassem para o domínio público.
Também Maria Tereza Jorge Pádua, que ocupou postos importantes na gestão ambiental no País, não poupa críticas. Lembra ela inclusive que já existem 19 milhões de hectares de florestas nacionais "que nunca puderam ser objeto de concessão por falta de regularização fundiária e de planos de manejo". Por que agora seria diferente? (O Eco, 20/3.)
Os defensores do projeto argumentam que a divisão de cada floresta concedida em 30 blocos, com a permissão de retirar "apenas 5 a 6 árvores por hectare" em um ano e só voltar a ele 30 anos depois, assegura a conservação da biodiversidade. Mas do outro lado também há argumentos poderosos.
Primeiro, o de que para explorar um bloco é preciso abrir estradas na mata; segundo, que cada árvore derrubada, por melhor que seja o manejo, sempre arrasta outras na queda; terceiro, que cada projeto exigirá outras áreas "limpas", para administração, oficinas, garagens, residências - e mais desmatamento. Além disso, esses projetos são dispensados de manter 80% da área intocada, como reserva legal (exigência legal na Amazônia). Por quê?
Cientistas como Rogério Griebel, do Instituto de Pesquisas da Amazônia, e o almirante Ibsen Gusmão Câmara têm observado ainda que, mesmo extraindo apenas "meia dúzia de árvores por bloco", como se diz, se implanta uma "evolução às avessas", já que permanecem os espécimes mais fracos - a partir dos quais continua o processo. Além disso, não se saberá o que acontece com a biodiversidade em geral, nem mesmo nos projetos de manejo certificado já em operação.
A discussão sobre a Amazônia está ficando ainda mais acesa. Surgem denúncias de que o solo amazônico está sendo objeto de pirataria. Amostras de locais identificados por satélites, ricas em nutrientes e sais minerais, estariam sendo levadas para os Estados Unidos e a Europa e testadas para aumentar ali a fertilidade dos solos - segundo o pesquisador Frederico Arruda, da Universidade Federal do Amazonas.
Não chega a ser denúncia isolada: quando se discutia a implantação do Sivam, houve quem questionasse a transferência para a empresa fabricante dos equipamentos, nos Estados Unidos, de todas as informações recolhidas pelo sistema, entre elas as de qualidade dos solos, recursos hídricos, biodiversidade, presença de minérios, etc.
As polêmicas não terminam aí. Em maio voltará a ser discutida uma convenção mundial de florestas, à qual o Brasil se tem oposto, por entender que limites para o uso de recursos naturais implicam restrições à soberania.
Não se conhecem ainda os números do desmatamento na região referentes a agosto de 2003-agosto de 2004. A "estimativa" do Ministério do Meio Ambiente é de números aproximados aos do período anterior, em torno de 24 mil km². Há quem diga que serão superiores. E, de qualquer forma, como lembram cientistas, os dados de satélites não captam o chamado "desmatamento seletivo", em que não há derrubada de todo o bloco de floresta, nem queimada. E mudanças no uso do solo, desmatamento e queimadas contribuem com 75% das emissões brasileiras de gases que intensificam o efeito estufa. São muitos ângulos.
E o problema central é que o Brasil não tem estratégia definida para a Amazônia. É mais uma fronteira para extração de madeira e produção de soja e carne exportáveis, com altos custos ambientais e sociais, ou é um espaço estratégico, o "laboratório em pé da floresta", da biodiversidade - nossa melhor possibilidade de amanhã -, como tem dito a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência?

Washington Novaes é jornalista.

OESP, 01/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

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