VOLTAR

Amazônia nada intocada

O Globo, Sociedade, p. 24
07 de Fev de 2017

Amazônia nada intocada

Sérgio Matsuura

RIO - Devido ao intenso desmatamento da Floresta Amazônica, geoglifos que passaram séculos escondidos pela vegetação estão sendo descobertos numa região do Acre. Os primeiros foram identificados no fim da década de 1970 e, desde então, mais de 450 já foram localizados. A presença dessas grandes estruturas geométricas construídas por antigas populações desafia a ideia de que a Amazônia é um ecossistema intocado. Um novo estudo, publicado ontem no periódico "Proceedings of the National Academy of Sciences" (PNAS), mostra que os povos que habitavam a área já realizavam o manejo florestal há pelo menos 2 mil anos.
- O que nós mostramos com essa pesquisa é como era a vegetação antes, durante e após a construção dos geoglifos - diz Jennifer Watling, pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo, que estudou a região durante doutorado pela Universidade de Exeter, no Reino Unido. - Nessa região, que algumas pessoas pensavam ser intocada, existia uma grande população e o ambiente era bastante alterado. Eles faziam queimadas e plantavam espécies úteis, como as palmeiras.
Os geoglifos encontrados no Acre são imensas marcações geométricas, cada uma medindo até 350 metros de diâmetro, que se estendem por uma área de 13 mil quilômetros quadrados. As teorias mais aceitas indicam que esses locais eram utilizados ocasionalmente para a celebração de rituais, não ocupados de forma permanente por assentamentos ou aldeias, já que foram encontrados poucos artefatos. Escavações mostram que eles foram construídos e utilizados entre 2 mil e 650 anos atrás, sendo que alguns podem ter sido criados há 3,5 mil anos. Mas ainda há muito a ser descoberto sobre as origens dessas estruturas, como quais foram os povos que as construíram e por que são tão numerosas.
Florestas de bambu
A pesquisa liderada por Jennifer analisou amostras de solo colhidas até 1,5 metro de profundidade, dentro e nas proximidades de dois destes geoglifos. Dessa forma, foi possível identificar quais espécies de plantas existiam em diferentes períodos históricos ao longo dos últimos 6 mil anos. A presença de carvão indica o uso do fogo para o manejo da vegetação.
- Nós imediatamente quisemos saber se a região já estava desmatada quando os geoglifos foram criados, e qual a extensão do impacto dessas pessoas na paisagem para a construção dessas estruturas de terra - conta a pesquisadora.
De acordo com as análises, esses locais eram cobertos por florestas de bambu, que foram profundamente alteradas pelos povos que habitaram a região nos últimos 4 mil anos. Para a construção dos geoglifos, clareiras temporárias foram criadas.
- Apesar do grande número e da densidade dos geoglifos na região, nós podemos afirmar que as florestas do Acre nunca foram desmatadas de forma tão extensiva, ou por tanto tempo, como nos anos recentes - explica Jennifer. - Nossa evidência de que a Floresta Amazônica foi manejada por povos indígenas muito antes do contato europeu não deve ser citada como justificativa para o uso destrutivo e não sustentável praticado hoje. Na verdade, deve servir para destacar a engenhosidade de regimes de subsistência anteriores que não levavam à degradação florestal, além da importância do conhecimento indígena para a descoberta de alternativas mais sustentáveis para o uso da terra.
Segundo a pesquisadora, os povos do passado faziam o manejo da vegetação com técnicas conhecidas hoje como sistemas agroflorestais. Em vez do desmatamento, com o plantio de uma única espécie em grande escala, eles criavam mosaicos com diferentes tipos de plantas úteis, em combinação com a floresta original. Algo como um "supermercado pré-histórico".
- Eles tinham campos de milho e abóbora dentro da floresta, além de palmeiras e outras plantas úteis - diz Jennifer. - Quando essas áreas foram abandonadas, estas espécies se tornaram menos abundantes nas paisagens, mas mesmo as florestas de hoje têm traços de manejo prévio, com castanheiras, cedro e outras espécies úteis.
E foi esse tipo de manejo que permitiu a subsistência de grandes populações na região. Até o início do século, cientistas argumentavam que o Sudoeste da Amazônia não poderia sustentar povos numerosos pela inexistência de solos adequados para a agricultura e de fontes abundantes de proteína. Com o sistema agroflorestal, os indígenas usavam os restos da própria vegetação para a fertilização.
A espécie explorada com maior prevalência durante o período dos construtores dos geoglifos era a palmeira. De acordo com o estudo, o resultado era esperado, já que a planta é uma das mais importantes da Amazônia. Por quilo, os frutos da palmeira fornecem mais proteínas e carboidratos que o milho, além de ser fonte de combustível, remédios e materiais de construção. Evidências diretas do consumo desse fruto foram encontradas em resíduos na cerâmica de um dos sítios arqueológicos estudados pela equipe.
- Alguns arqueólogos acreditam que, para sustentar muitas pessoas, os povos do passado estavam desmatando por todos os lados. Não, eles usavam técnicas de manejo que não a queimada - conclui a pesquisadora. - O Acre teve uma floresta fechada na maior parte da História. As amostras indicam que apenas nas últimas décadas ela foi

O Globo, 07/02/2017, Sociedade, p. 24

http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/estruturas-no-acre-mostram-q…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.