VOLTAR

Almeida: declarações de comandante são "vergonhas"

Terra Magazine
Autor: Claudio Leal
15 de Mai de 2008

O ex-presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio) e ex-membro do Fórum Permanente de Assuntos Indígenas da ONU Eduardo Almeida desconstrói um lugar comum: se ceder a pressões de fazendeiros e congressistas de Roraima, na demarcação de terras indígenas, o governo terá um lucro político "insignificante". De acordo com Almeida, trata-se do "lobby" de uma minoria que garante, no melhor dos cálculos, oito votos no Congresso Nacional. "Mas não sei se eles contam com os oito", ironiza.

Jornalista e fundador da SBI (Sociedade Brasileira de Indigenistas), Eduardo Almeida aponta o senador Romero Jucá (PMDB-RR) como um dos agentes de sua queda da Funai, em 2003, dentro da panela de fritura do ex-chefe da Casa Civil José Dirceu. Ficou apenas seis meses no cargo. Apesar de reconhecer avanços do presidente Lula, faz um diagnóstico desalentador:

- Os dois últimos governos, do Fernando Henrique e do Lula, cometeram todos os erros possíveis e imagináveis. Eles foram de uma inabilidade, de um anti-maquiavelismo total - diz em entrevista a Terra Magazine.

Ex-militante do PT, não exime o governo petista:

- Senti retrocesso.

Para o ex-presidente, não houve avanços na transversalidade de políticas indigenistas e de direitos humanos. Nas entrelinhas: há descompasso entre as ações ministeriais.

- A gente não pode dizer que em termos de direitos humanos, política ambiental, tenha havido o avanço mínimo que se esperava - afirma.

Sua "fritura" na Funai, entre fevereiro e agosto de 2003, relatada nesta entrevista, indica o choque de interesses na demarcação de terras indígenas. Atribuiu-se sua saída a pressões de mineradoras interessadas em explorar o solo de reservas. Somaram-se a interferências políticas que o levaram a ser exonerado pelo então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.

- O Zé Dirceu era o grande comandante da ópera, né? E ele já andava de braço dado com todo mundo, conversando com (o ex-senador) Antonio Carlos Magalhães. Blairo Maggi (governador do Mato Grosso) falava alguma coisa, e ele dava ouvido. Romero Jucá...

À época, enfrentava os conflitos em torno da homologação da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima. Para Almeida, as opiniões do comandante militar da Amazônia, Augusto Heleno, são "vergonhosas". O general declarou que a política indigenista do governo era "lamentável" e "caótica", acrescentando que a demarcação da reserva ameaçava a "soberania" nacional.

- Acho profundamente lamentável que um chefe militar diga isso (...) Se fosse um soldado... Mas um comandante dizer um negócio desse? Ele está em dessintonia completa com o mundo moderno... Não sabe o que é direito à diversidade, à democracia pluriétnica, não acompanha como as coisas ocorrem pelo mundo afora - critica.

Almeida avalia ainda saída de Marina Silva do ministério do Meio Ambiente. Ela teria engolido mais "sapos" do que o suportável. O ex-dirigente sustenta que a BR-163 (rodovia Cuiabá-Santarém) foi um dos pontos da fritura de Marina.

- Ela engoliu sapo pro bem e pro mal. Para o bem porque eu acho que, num governo, a gente tem que engolir sapo mesmo. Há composição, etc. e tal. Não há como você deixar de engolir uns sapinhos. Agora, ela passou do limite.

Leia a íntegra da entrevista.

Terra Magazine - Quais são os interesses envolvidos na demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol?
Eduardo Almeida - A Raposa/Serra do Sol é uma terra indígena como 600 outras no Brasil. A maior parte delas já está em fase definitiva, demarcada e homologada. Por razões da circunstância política de Roraima, a Raposa está com esse rolo. Na minha opinião, os dois últimos governos, do Fernando Henrique e do Lula, cometeram todos os erros possíveis e imagináveis. Eles foram de uma inabilidade, de um anti-maquiavelismo total.

Por quê?
Ora, porque o lobby dos políticos e empresários de Roraima - parte dos empresários e parte dos políticos -, os que têm demonstrado força e poder, é um lobby de uma minoria insignificante. Em termos de peso político, de representatividade demográfica, regional, o que seja. Se você contar o número de votos que eles têm no Congresso Nacional, é mínimo: oito votos. Mesmo assim, não sei se eles contam com os oito. Os arrogantes argumentos deles sensibilizam setores das Forças Armadas - estranhamente, no meu modo de ver, porque se você vai lá para aquela região do Alto Rio Negro, chamada de Cabeça de Cachorro - fronteira com a Colômbia, onde estão as Farc -, as Forças Armadas não fazem nenhuma grande gritaria como fazem em Roraima.

O comandante da Amazônia, Augusto Heleno, disse que a "soberania nacional" está em jogo nessa questão da reserva. Qual sua opinião?
Acho profundamente lamentável que um chefe militar brasileiro diga isso. Como cidadão e brasileiro, me sinto envergonhado. Falta consciência, falta formação à nossa sociedade. Se fosse um soldado... Mas um comandante dizer um negócio desse? Ele está em dessintonia completa com o mundo moderno, com a contemporaneidade. Ele não sabe o que é direito à diversidade, o que é democracia pluriétnica, não acompanha como as coisas ocorrem pelo mundo afora. Pra dizer esse negócio, construir e elaborar em cima disso... Os políticos e empresários de Roraima dizem: "Ah, essas demarcações estão engessando o Estado". Eu me dei ao trabalho de fazer umas contas bem simples.

Quais contas?

Peguei os números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e vi que eles falam: "ah, 50% do Estado de Roraima está demarcado". Na verdade, a conta correta é cerca de 43%. Na terra Yanomami, a maior parte não tem potencial pra agricultura. É uma terra acidentada. As outras são áreas de preservação permanente do Ibama. Dá 43%.

Pois bem. Vamos supor que fosse 50%. Cinqüenta porcento do Estado de Roraima "restariam" ao Estado. Essa área é maior do que um milhão e quinhentos mil hectares de terra. Quase toda ela no eixo Manaus-Boa Vista, do eixo central pro sul do Estado, onde a agropecuária de Roraima mais se desenvolve. A população rural de Roraima toda - inclusive contando com os indígenas, 90% deles são população rural -, na época em que fiz as contas, há dois anos atrás, não passavam de 80 mil pessoas. Ou seja, se tem pelo menos 30 mil indígenas nessa região, a população não-indígena seria de umas 50 mil pessoas. Fiz a soma da área total de outros Estados brasileiros - uma série deles do Nordeste - e constatei que eles têm área inferior a um milhão e quinhentos mil hectares. Mas não se fala em engessamento.

Qual é o problema de Roraima?

Não tem esse negócio de engessar o desenvolvimento do Estado. Se fosse precisar do Estado, nenhum investidor de Sergipe ia se desenvolver.

Isso tem raízes históricas. De onde nasce essa idéia de que os índios são um entrave ao desenvolvimento?
Isso vem de 500 anos de colonização. Uma questão de mentalidade, de ideologia. Meu ponto de vista, cada vez me atenho mais a essa tese, é de que o Brasil não pode ter um regime democrático sem que o Estado seja democrático. Não basta que os governos e as instituições pretendam ser democráticas, seguir o Estado de Direito. Por exemplo, quando o Estado não se assume multiétnico. Está uma maré horrível do judiciário brasileiro. As últimas manifestações do Supremo sobre a questão da Raposa foram também muito temerárias.

O senhor foi presidente da Funai no governo Lula. Sentiu avanços na política indigenista?
Não, eu senti retrocesso. Curiosamente, houve agora esse episódio da ministra Marina Silva. Da maioria dos comentários na televisão, somente um cientista político de São Paulo lembrou um fato. No início do governo Lula, em 2003, 2004, a ministra Marina Silva falava em transversalidade da política ambiental como política de Estado. Em meados de 2004, coitadinha, ela foi diminuindo, diminuindo, diminuindo...

Na Funai, o senhor também defendia a transversalidade.
Exatamente! Entrei no governo acreditando nisso. Eu e muitas pessoas. "Não, nesse governo, as questões de política pública de direitos humanos terão transversalidade. Que não seja só da Funai, mas de todos os ministérios, que se pautarão por princípios que estão no programa de governo". Olha, infelizmente não é nada disso. Acho que Lula avançou muito no País, com certeza absoluta, em muitas coisas. Mas a gente não pode dizer que em termos de direitos humanos, política ambiental, tenha havido o avanço mínimo que se esperava. É muito frustrante.

O senhor saiu da Funai...
Em 2003. Nos primeiros seis meses do governo Lula.

O que motivou sua saída?
Foi um processo de fritura. Na época, o chefe da Casa Civil era Zé Dirceu. O Zé Dirceu era o grande comandante da ópera, né? E ele já andava de braço dado com todo mundo, conversando com Antonio Carlos Magalhães. O governador Blairo Maggi (Mato Grosso) falava alguma coisa, e ele dava ouvido. Romero Jucá (PMDB-RR), que era líder de Fernando Henrique, tornou-se logo líder de Lula... E assim vai... Aquele governador do Mato Grosso do Sul, Zeca do PT, era um cara que eu até defendia: "Gente, vocês o criticam, mas ele tem minoria na Assembléia...". Foi um dos primeiros governadores do PT no Brasil.

O senhor ainda é do PT?
Não. Não aguentei, não. Eu saí em 2005.

Então, houve pressões de governadores, senadores...
Havia um processo de fritura orquestrada. No caso específico da Funai, houve essa aliança com setores que têm origem na ultradireita - da qual Romero Jucá é um bom e legítimo representante. Esse pessoal botou na mesa de negociação com Dirceu a questão da Funai, a questão da política indigenista, entendeu? E Dirceu aceitou (risos). Acho que foi a pior negociação que eu já vi alguém fazer. Me lembro até que procurei José Genoino, que era presidente do PT, procurei a própria Marina Silva... Conversei, articulei. Procurei fazer política também. "Gente, não tô acreditando nesse negócio...". Mas todo mundo, na época, encolhia as pernas, metia o rabo entre as pernas diante de Zé Dirceu.

Mesmo a Marina Silva?
Mesmo a Marina. Minha avaliação da Marina: ela engoliu sapo pro bem e pro mal. Para o bem porque eu acho que, num governo, a gente tem que engolir sapo mesmo. Há composição, etc. e tal. Não há como você deixar de engolir uns sapinhos. Agora, ela passou do limite. Ela acabou topando... Vejo as pessoas lembrando da hidrelétrica do Madeira, mas isso aí nem é o ponto mais importante. O ponto mais importante no caso da Marina, que afeta muito a questão indígena, é a Cuiabá-Santarém, a BR-163. Uma estrada que já existe há muito tempo, uma estrada Norte-Sul. A Transamazônica não deu certo, era o plano dos militares, mas a Cuiabá-Porto Velho-Rio Branco deu certo, detonou com Rondônia e Mato Grosso, e a Cuiabá-Santarém também deu certo... Mas ela é uma estrada que, pelo regime de chuva da Amazônia, só pegava seis, sete meses.

O senhor trabalha com a questão indígena desde o final dos anos 70...
Primeiro como jornalista, depois como ativista de organização não-governamental. Entrei para a Funai em 1979.

O Ministério da Defesa propôs a regulação das ONGs na Amazônia, para ter controle. Elas são um problema na Amazônia?
Há ONGs e ONGs. As ONGs mais perigosas do Brasil, das que eu tenho conhecimento, são aquelas ligadas a políticos de direita, políticos clientelistas. Essas são as mais perigosas, porque não têm princípio nenhum. Elas servem a uma causa espúria, pessoal e particular. Podem fazer qualquer negócio. Ninguém fala nessas ONGs. Essas pululam por aí... Quanto às internacionais, há ONGs boas e ruins. Algumas das ações mais interessantes que acontecem, na Amazônia ou na Mata Atlântica, aliando conservação a desenvolvimento social, são patrocinadas por ONGs internacionais sérias e pela cooperação com governos de outros países. Da Alemanha, do Reino Unido, da Noruega... Trabalhos notáveis. De janeiro de 2005 a dezembro de 2007, fui membro do Fórum Permanente de Assuntos Indígenas da ONU (Organização das Nações Unidas). Um órgão relativamente novo da ONU, de 2002. Tive esse privilégio de ter sido eleito pelo Conselho Econômico e Social da ONU. Nesses três anos passados lá, pude ter mais convívio com as questões dos povos indígenas no mundo.

Qual é a percepção internacional da política indigenista brasileira?
A percepção, nos últimos anos, era de perplexidade. Porque a imagem do Brasil, no exterior, é muito interessante. O povo brasileiro emana uma simpatia gratuita nas pessoas. No fórum da ONU, quando chegavam os relatos das organizações indígenas brasileiras, da Anistia Internacional, o pessoal ficava perplexo, querendo até duvidar. A eleição do Lula deu cores mais fortes a essa simpatia em relação ao Brasil. E quando as pessoas viam o caso da irmã Dorothy (Stang), assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul, essa questão de Raposa/Serra do Sol e tantas outras, desmoralizava muito.

Em outros países sul-americanos, há a emergência política das populações indígenas. Ser índio no Brasil é pior?
Essa pergunta de vez em quando aparece, mas acho difícil dizer. Vamos tentar comparar o Brasil com situações análogas. Se você comparar com os países andinos, Peru, Bolívia, é complicado. Uma realidade indígena bastante diferente, embora o Peru e Bolívia tenham a Amazônia também. Mas se comparar o Brasil com o Panamá ou a Venezuela... O peso demográfico das populações indígenas é muito pequeno. No Panamá, os povos indígenas têm autonomia, têm senadores, representação no judiciário. Uma coisa muito mais avançada. E isso não está ameaçando a soberania nacional do Panamá (risos). O Panamá é uma das economias que mais se desenvolvem na América Latina.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.