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As aldeias de fome cercadas de riqueza

O Globo, O Pais, p.3-4
06 de Mar de 2005

As aldeias de fome cercadas de riqueza
Esquecidos no mato
Morte de crianças índias por desnutrição expõe tragédia de tribos com terra, mas miseráveis

Aindiazinha caiová Geria, de 1 ano e 8 meses e apenas cinco quilos, é uma sobrevivente de uma tragédia que já matou 13 crianças índias em reservas de Mato Grosso do Sul e não deve ser erradicada tão cedo: a desnutrição crônica. Vítima da fome, da miséria e do descaso das autoridades, ela chegou há um mês no Centro de Recuperação de Desnutridos da Missão Caiová. Não conseguia engolir qualquer alimento. Virou o símbolo da luta de outras centenas de crianças que ainda correm risco de vida e sobrevivem numa espécie de Somália brasileira encravada numa das regiões mais ricas do país.
A 15 quilômetros de Dourados, pólo do agronegócio, os guaranis-caiovás das reservas Jaguapiru e Bororó vivem numa pobreza sem fim e imploram a atenção do governo para deter a rotina de enterrar seus descendentes.
As mortes puseram Dourados no noticiário nacional e internacional. A repercussão negativa mobilizou três esferas de governo, uma força-tarefa foi criada, reuniões e levantamentos estão sendo feitos, 11 ações emergenciais foram anunciadas, uma tonelada de alimentos arrecadados para o programa Fome Zero chegou à cidade, mas as crianças continuam morrendo.
A última foi Janison Valdez, de três meses, enterrado anteontem na aldeia Bororó. O atestado de óbito diz que a causa da morte foi parada cardiorrespiratória, septicemia, gastroenterite e desnutrição. As aldeias viraram favelas e os índios adultos que escaparam do alcoolismo e da inércia vendem mandioca na cidade ou fazem bico como bóias-frias nas fazendas de soja e pecuária e nas usinas de açúcar e álcool da região. São 11.500 indígenas numa reserva de 3.500 hectares de terras valiosas, cobiçadas por agricultores e hoje tomadas pelo capim.
"Em vez de sensibilizar a população, as mortes causaram constrangimento. Mostraram a indiferença da cidade com a situação. Os governantes só deram atenção porque a repercussão está forte", diz a diretora do Centro Caiuá, Marília Troquez, onde estão internados 33 índios de 6 meses a 2 anos com desnutrição grave.
A irmã do cacique da aldeia Bororó, Luciano Arévalo, a índia Mauria Arévalo, vive com seis filhos e o marido num barraco. Na panela, papa de arroz, o único alimento dos filhos de 2 a 10 anos durante todo o dia. As seis crianças dormem num pedaço de espuma imunda com os pais e a cadela Nega. Na semana passada Mauria perdeu a caçula, Kelly, com desnutrição aguda e diarréia provocadas pela falta de alimentação adequada, sujeira e falta de água tratada.
Flor de quiabo no caixão
O corpinho foi enterrado no quintal. Ao pé da cruz de bambu, enfeitada com uma flor de quiabo, a mãe pôs um saco plástico com a mamadeira e os vidros de remédios dados a Kelly.
"O povo da cidade não ajuda. Meu marido faz servicinhos aqui e ali. A cesta que o governo dá não dura dez dias. As crianças reclamam de fome, a barriga dói", diz Mauria.
A Assembléia Legislativa vai criar uma CPI para apurar a negligência das autoridades e a aplicação das verbas federais e estaduais para conter o avanço da mortalidade por desnutrição entre os índios. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no estado encaminhou um relatório ao Conselho Nacional da Ordem, que esta semana se reúne em Brasília para estudar uma ação contra o governo por violação dos direitos humanos.
"A Funai e a Funasa não fazem nada. Os números reais foram escondidos e mais crianças morrerão enquanto alguém não for responsabilizado. A sociedade não despertou para essa infração absurda dos direitos humanos", diz o vice-presidente da OAB-MS, Oton Nasser Mello.
Na cidade que tem as reservas como bairros, pouca gente se sensibilizou com o drama vivido pelos índios. O sentimento geral é de hostilidade aos índios, considerados preguiçosos e os culpados pelo que está acontecendo.
"Eles ganharam as terras mas não trabalham, vivem bêbados. Não querem que o branco se intrometa no território deles, mas na hora que a coisa aperta querem socorro?", diz Domingos Bispo, dono de uma joalheria.

Era uma doença de feitiçaria, o remédio não adiantava
"Meu filho foi internado com assadura e voltou para casa morto. Ele saiu daqui mamando direitinho. No Hospital da Mulher eles judiaram muito dele, eles tratam muito mal quando as crianças são da aldeia. As enfermeiras cortaram ele todo. Fizeram um corte no pescocinho dele para enfiar soro, cortaram atrás das costas, botaram uma agulha grossa, ele não agüentou. Eu tentei tirar para curar lá no hospital da missão e não deixaram. Queria trazer para tratar em casa, era uma doença de feitiçaria, que o diabo mandou, e o remédio do hospital não adiantava nada. Não deixaram eu tirar ele de lá e à meia-noite de ontem (de quinta-feira) me avisaram que tinha parado o fôlego dele, que tinha morrido. Depois que o carro da funerária trouxe o corpo para casa, o povo da Funasa veio aqui e mandou eu dizer que meu filho morreu por culpa do povo do Hospital da Mulher, que não foi de desnutrição.", Nivaldo Valdes Duarte pai de Janison, de 3 meses, morto na madrugada da última quinta-feira. É guarani-caiová, da aldeia Bororó.

Minha filha era alegrinha, não era para ter morrido
"O que matou minha filha foi a miséria e a pobreza. Ela nasceu de parto normal, com mais de três quilos. Mamava muito, era alegrinha, não era para ter morrido. Quando completou 5 meses, começou a ter diarréia. Eu a levava no postinho todo dia, eles davam soro, pesavam, mas não adiantava. Ela ficou magrinha. Levei para o Hospital da Mulher. Ficou internada sete dias, mas mandaram para o hospital da missão (Centro de Recuperação de Desnutridos). Quando ela melhorou e passou a mamar bem, voltamos para casa, mas ela piorou. Eu dava remédio, caldo de mandioca, ela só piorava. Voltou para o Hospital da Mulher. Eu pedi para deixar ela lá, porque em casa não tem cama, não tem nada. Ficou lá com o pai porque eu precisava cuidar dos outros meninos. Logo o pessoal da Funasa foi me avisar que ela tinha morrido. Disseram que eu não cuidava direito. Dei o leite do peito, dei caldo de mandioca e de feijão, mas não adiantou.", Mauria Arévalo mãe de Kelly Arévalo, de 8 meses, morta semana passada.

Depois da tragédia, correria para dar comida e médico
Autoridades tentam implementar estrutura de saneamento; só 31 famílias recebem bolsa do governo
Nas estradas barrentas das aldeias Jaguapiru e Bororó, um intenso tráfego de caminhonetes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e da prefeitura de Dourados pôde ser visto nas últimas semanas. Os veículos levam cestas de alimentos, agentes de saúde e técnicos que tentam implementar uma estrutura mínima de saneamento na comunidade indígena. O ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, prometeu visitar o lugar, mas não apareceu. A promessa de estender o programa Bolsa Família para os índios ainda engatinha.
Até agora 515 famílias se inscreveram, mas só 31 recebem o benefício. Algumas famílias recebem R$15 por filho matriculado e as cerca de duas mil cestas básicas do programa de segurança alimentar (Fome Zero) estão sendo distribuídas para as que têm crianças de até 6 anos em risco nutricional ou desnutrição severa.
Ações emergenciais foram anunciadas
Na última quinta-feira, representantes do Ministério de Desenvolvimento Social, da prefeitura, da Funai e do governo estadual se reuniram para anunciar 11 ações emergenciais para atacar a desnutrição e a falta de alimentos. Além da distribuição de cestas básicas, equipes médicas, agentes de saúde, nutricionistas e a frota de veículos foram reforçados.
O diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, Alexandre Padilha, diz que não cabe ao órgão acabar com a desnutrição, mas sim assistir os desnutridos.
"Não é papel da Funasa resolver o problema da pobreza e da falta de alimentos. Nosso papel é manter e garantir a assistência em saúde. E em Dourados não morreu criança por desnutrição. Elas estavam desnutridas também, mas foram internadas por outras doenças", disse Padilha, sugerindo que outros órgãos devem resolver o problema estrutural da terra indígena, investir em políticas assistenciais e de produção de alimentos, o que ele diz que vem sendo feito.
"O pessoal se sensibiliza com a tsunami e não enxerga os problemas internos. Lula pratica o assistencialismo internacional, como no Haiti, e não enxerga isto aqui", reclama o médico Paulo César Yui, que assiste índias gestantes no hospital da Missão Caiová. (Maria Lima)

Esquecidos no mato: Aldeia sofre com a falta de recursos para plantar
O capim tomou conta de tudo e nossas crianças morrem de fome, diz cacique
Líder da Bororó diz que ajuda de governos não resolve problema principal
Cacique há 12 anos da aldeia Bororó, onde ocorreram sete mortes nos últimos dois meses, o "capitão" Luciano Arévalo diz que, depois da notícia das mortes, tanto o governador Zeca do PT quanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estão procurando levar mais assistência à reserva. Mas diz que o problema maior é a falta de recursos para plantar e produzir os alimentos de que precisam. Isso ele diz que não foi resolvido. Segundo o cacique, ninguém tem dinheiro para comprar sementes ou tratores para preparar a terra:
— Terras nós temos, cada um planta ali umas ramas de mandioca, abóbora, mas estamos esquecidos. Antes ainda podíamos arrendar a terra e pegar uns trocadinhos. Agora é proibido. O capim tomou conta e nossas crianças morrem de fome.
Ele disse que pediu à Funai que alugasse dois tratores para o plantio de soja e outros produtos agrícolas, mas só existe um trator, que está quebrado, na oficina. O óleo diesel foi fornecido, mas estão à espera do maquinário. Na reserva, cerca de mil velhos aposentados recebem um salário-mínimo da Previdência, mas muitos têm os cartões retidos pelos comerciantes na cidade, inclusive para quitar débitos contraídos com bebidas.
Consumo de álcool e maconha preocupa
Além da pobreza provocada pela falta de alimentos para comer e vender, o cacique diz que há outros problemas graves, como o alto índice de alcoolismo entre os índios jovens e adultos. Os traficantes se aproveitam da ausência de forças policiais na reserva para vender maconha e aliciar jovens para o tráfico.
— Antigamente o índio só bebia no fim de semana, agora bebe a semana inteira e não trabalha mais. A Polícia Federal tinha que entrar e tirar o traficante e o vendedor de pinga — pede o cacique. (Maria Lima)

Corpo a Corpo
Fábio Mura
A situação é explosiva
O antropólogo Fábio Mura trabalha com os índios guaranis-caiovás e nhandevas de Mato Grosso do Sul desde 1991. Para ele, a morte de crianças indígenas por desnutrição é parte de um grande problema: A situação na reserva de Dourados é gravíssima. Falta comida para todos”, diz ele em entrevista ao GLOBO.
O que está acontecendo com as crianças na reserva de Dourados?
Fábio Mura:Para entender, é preciso ter uma perspectiva histórica. A colonização branca começou com o fim da Guerra do Paraguai, quando o governo concedeu uma área de 4,5 milhões de hectares para uma empresa explorar erva-mate. Ainda assim, os índios continuavam embrenhados na mata. Entre 1915 e 1928, o Serviço de Proteção ao Índio (órgão anterior à Funai) criou oito reservas pequenas. Na década de 60, porém, por causa da criação de gado, as florestas começaram a ser desmatadas e, com isso, os índios que viviam nas matas foram descobertos, caçados e transferidos para essas reservas.
Mas, mesmo nas reservas, a situação é complicada...
Mura: No processo de transferência, não foram usados critérios étnicos de homogeneidade, misturando povos e famílias inimigos. O SPI ainda criou a figura do capitão, um intermediário na relação dos índios com o Estado. Este líder acaba sendo alguém da família mais poderosa ou mais numerosa. É natural que ele defenda o interesse de suas famílias e deixe o resto à míngua.
Em que isso estaria influenciando na mortandade de crianças indígenas?
Mura: A reserva de Dourados tem duas aldeias: Bororó e Jaguapiru. Na primeira, o capitão é um nhandeva. Mas, na segunda, é um terena, um inimigo histórico dos guaranis. Os terenas criaram uma elite, cedem terras para plantio de soja e têm pequenos comércios. Lá, falta comida para todos os guaranis.
O governo anunciou a distribuição de cestas básicas e acompanhamento médico para as crianças. Isso resolve o problema?
Mura: Claro que não. Na reserva, há dez mil índios vivendo em 3.540 hectares, com um crescimento demográfico de 400 pessoas por ano. E as terras da região já foram destruídas pela soja e pelo gado. Seriam necessários cerca de 500 mil hectares para que eles pudessem manter seu modo de cultivar a terra e ter uma qualidade de vida melhor. As autoridades precisam se sentar com os líderes indígenas e com as entidades que trabalham com os guaranis para buscar uma solução comum. Caso contrário, a situação na região permanecerá explosiva.

O Globo, 06/03/2005, p. 3-4

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