VOLTAR

As águas da discórdia

JB, País, p. A3
31 de Jan de 2005

As águas da discórdia
Transposição do Rio São Francisco corre o risco de não levar uma gota a quem tem sede e servir apenas aos coronéis do Nordeste

Daniela Dariano

Anunciada como promessa de matar a sede do nordestino do semi-árido, a transposição do Rio São Francisco corre o risco de servir apenas aos interesses de coronéis e políticos que sobrevivem com a chamada ''indústria da seca''. Quem alerta é o geólogo da USP com especialização em gestão de recursos hídricos Aldo Rebouças. ''Cearense de nascimento, pernambucano de coração e paulista de adoção'', o especialista prevê, com base em análises do projeto federal, que nem uma gota da água do rio levada ao Nordeste chegará à população que tem sede. Além do risco de salinizar terrenos, inviabilizando a agropecuária, a transposição do São Francisco teria como objetivo a irrigação de cultivo de grãos, flores e camarões para exportação.
- O objetivo primário é irrigação para exportação. Não atenderia ao pobre, ao miserável, ao pequeno agricultor. Visa a interesses particulares, de exportação - denuncia.
Uma das evidências de que o projeto não serviria para matar a sede da população seria uma estimativa exagerada de consumo de água na região. O objetivo seria usá-la na construção de barragens para a agroindústria.
- Não estão prevendo, nos custos da obra, levar a água para essa população. Só prevêem canais ao longo dos rios ou construídos artificialmente para as grandes propriedades de flores, camarão e grãos. Nenhum para consumo interno - denuncia.
Para o especialista, o projeto é cheio de falhas, alimentadas por irresponsabilidade sócio-ambiental.
- A população fica chupando o dedo e vai continuar fazendo a ligação entre pobreza e falta de água. Mas não existe nenhuma vinculação entre essas duas coisas. Políticos que vivem da indústria da seca gostam de ligar uma coisa a outra porque é favorável a eles. Eles têm uma barragem e sempre embutem comissões por fora que financiam campanhas e eleições.
Rebouças aponta, entre outros problemas do projeto, o custo sete vezes maior para usar as águas do São Francisco no Nordeste ao invés de às suas margens, a salinização do solo e o aumento da pobreza em conseqüência da diminuição da oferta de água:
- A população (nos estados beneficiados) é contra. Só os coronéis são favoráveis, alguns políticos locais e colegas que estão em Brasília. Segundo alguns analistas, seria pior que a Transamazônica.
Para o especialista, a alternativa viável para o Nordeste envolve ''ensinar a população a usar a água e ressuscitar o catavento, substituído com alto custo por moto-bombas na década de 60. Segundo ele, há mais gente desperdiçando do que sabendo usar a água nos estados nordestinos. Ele aconselha a troca do cultivo de grãos por frutas, como o melão, que dá maior rentabilidade, e o incentivo do governo à racionalização: 40 m² de área seriam suficientes para coletar água no período chuvoso para abastecer seis pessoas por ano em período não chuvoso.
- Nada é feito. Investe-se muito em obras de engenharia e nada na conservação da água. Em julho estive em Recife, fui à fazenda de um amigo, onde as vacas estavam morrendo por falta de água. Uma semana depois, voltei e elas estavam morrendo afogadas pelas enchentes. Não há obra nem estímulo para conservação da água. O governo deveria mostrar como deve ser feito.
Soma-se às críticas do especialista a previsão do Ministério Público estadual e do governo de Minas Gerais de que a implantação do projeto comprometerá a disponibilidade de água alocável da bacia. Ou seja, o volume concedido para a transposição chegaria ao máximo, impedindo o desenvolvimento das áreas pelas quais o rio passa hoje.
O promotor de Justiça mineiro Luciano Badini, um dos signatários de ação civil pública que tentou impedir a realização de audiência pública sobre o tema e conseqüente início das obras, afirma haver ações no mesmo sentido na Bahia, em Sergipe e Alagoas. Minas reclama um estudo ambiental mais detalhado, já que o realizado pelo governo estaria incompleto e não contemplaria os impactos efetivos ou potenciais em Minas, responsável por 73,5% da vazão total do São Francisco. Segundo Badini, 67% originários de rios estaduais, apesar de o São Francisco ser federal.
Com a captação prevista no projeto do governo federal - inicialmente de 26 m³, podendo chegar a 127 m³/s, mas com média de 65 m³/s - haveria necessidade da construção de barragens nos rios estaduais de Minas. Esse impacto ambiental, lembra Badini, não está no estudo. Além disso, diz, haveria redução de água para as hidrelétricas. Na de Minas, Três Marias, o impacto não foi medido.
Ainda segundo o promotor, o rio tem volume outorgável total de 360 m³/s. Só que 330 m³/s já estão outorgados, restando 30 m³/s. Dessa forma, o volume a ser transposto ultrapassaria a quantidade passível de uso. Além disso, alega Badini, os estados por onde o rio passa também sofrem dificuldades (Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas).
- Alagoas, que tem o Índice de Desenvolvimento Humano mais baixo do país, vai ser privado das águas do São Francisco. Inviabilizou o desenvolvimento econômico. Não tem mais água para novos empreendimentos - conclui.

Falta dinheiro para cumprir os objetivos

Karla Correia

Uma das principais preocupações do governo sobre o projeto da transposição do São Francisco passa à margem da querela sobre a suficiência ou não da água do rio para irrigar as terras do Nordeste Setentrional. Se há fluxo insuficiente para o projeto, é de caixa, não de água. A verba para tocar a obra está garantida no Orçamento de 2005, cerca de R$ 1,07 bilhão. Há também a previsão de R$ 100 milhões para a revitalização, que deverá se estender por 20 anos. Mas para construir os açudes e canais adutores que levarão a água da transposição a quem realmente precisa, o governo vai ter que passar o chapéu.
O problema mais grave está em dois dos quatro estados que receberão água com a conclusão da obra, que beneficiará cerca de 15 milhões de habitantes. Enquanto Rio Grande do Norte tem uma capacidade adequada de armazenagem de água e uma boa rede de adutoras e o Ceará conta com quase um século de investimento na construção de açudes e canais, Pernambuco e Paraíba não têm uma rede eficaz de canais que sirvam para conduzir a água da transposição para quem tem necessidade.
Na avaliação do ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Jerson Kelman, ou se investe, ao mesmo tempo, na obra de integração de bacias, compreendendo a construção dos dois canais munidos de estações de bombeamento e mini-hidrelétricas, e na abertura de adutoras que capilarizem a distribuição da água, ou uma das estrelas do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva vai apenas perpetuar uma lógica perversa à qual o povo nordestino está acostumado: o dinheiro investido para suprir o Nordeste de água beneficiará poucos privilegiados, em detrimento de muitos em grave situação.
- No caso de insuficiência de recursos, recomendaria a prioridade à abertura de uma rede extensa de adutoras, para possibilitar que os benefícios esperados sejam imediatos à conclusão da obra - comenta Kelman.
O coordenador geral do projeto e chefe de gabinete do Ministério da Integração Nacional, Pedro Brito, admite que o governo não tem em caixa dinheiro suficiente para as duas obras. O governo dos estados beneficiados e o setor privado serão chamados a comparecer com recursos para a abertura de canais.
- A abertura de adutoras e construção de açudes poderá ser possibilitada por Parcerias Público-Privadas (PPP) ou pela captação de recursos junto a organismos internacionais, a exemplo do que já acontece com o Proágua - acredita Brito.
O programa citado pelo coordenador do projeto de transposição é voltado para o aproveitamento de recursos hídricos na região do semi-árido e recebe 71% de seus recursos do Banco Mundial e do Japan Bank for International Cooperation (JBIC).
- A ampliação da malha de adutoras é indispensável para que a transposição sirva a seus objetivos. Tanto que o governo pretende, sim, tocar as obras simultaneamente - diz Brito.
Segundo ele, o tempo de conclusão da obra de integração de bacias, dois anos a partir do fim das licitações, será suficiente para captar recursos para adutoras e eventuais açudes na região. Garantida a verba para as obras, surge um novo problema financeiro: o custo de manutenção do complexo, que vai incidir sobre os governos dos estados beneficiários.
O projeto de transposição se traduz na construção de dois canais próximos à Barragem de Sobradinho para conduzir água ao Nordeste Setentrional. O ramal norte terá 402km de extensão e levará a água do Velho Chico para a Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. O canal leste terá 220km e abastecerá Pernambuco e parte da Paraíba.
Para a região abastecida pelo ramal leste, o custo da água será de R$ 0,11 a R$ 0,12 por m³. Representa um custo adicional de R$ 80 milhões/ano para as regiões beneficiadas, só com a manutenção. Apesar de mais extenso, o canal norte demandará quase a metade do desembolso anual, pois precisará de menos estações bombeadoras por conta do menor desnível de terreno do curso, e contará com duas pequenas hidrelétricas em suas áreas de queda.
Na avaliação do governo, a chegada da água do Velho Chico anulará, na prática, o custo da perda de quase 80% da água armazenada nessas regiões, provocada por fatores como evaporação e vazão de excedente para o mar.
- Com isso, as contas ficam equilibradas - defende Pedro Brito.
Argumentos da disputa pelo rio
A favor
-Projeto servirá para matar a sede da população carente, em áreas do sertão nordestino - Obras levarão ao Nordeste a possibilidade de promover o desenvolvimento de áreas mais pobres, com cultivo de camarão em cativeiro, flores, grãos - Obras para conduzir a água ao interior nordestino serão simultâneas à obra principal de transposição do rio
Contra
- Projeto não estaria prevendo adutoras e barragens para levar água a quem sente sede, mas sim às grandes propriedades para cultivo de grãos, flores e camarão para exportação - Estagnação dos estados por onde o rio passa, porque a água passível de concessão se esgotaria, inviabilizando novos empreendimento
- Salinização de terrenos, pela evaporação da água do rio e depósito de sal no solo, inviabilizando agropecuária

JB, 31/01/2005, País, p. A3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.