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Agroenergia: o compromisso da FAO

CB, Opinião, p. 15
Autor: SILVA, José Graziano da
06 de Ago de 2007

Agroenergia: o compromisso da FAO

José Graziano da Silva
Representante da FAO para América Latina e Caribe

Para o bem e para o mal, a história do desenvolvimento nunca é monocromática. Suas circunstâncias não se completam num vazio de conteúdo político ou de mobilização social, mas num relevo marmorizado por contradições cujo desfecho depende de correlação de interesses para consumar a supremacia de uma tendência que, mesmo assim, nunca será exclusiva, ainda que dominante.

Essa equação se recoloca cada vez que a humanidade chega às bordas de nova fronteira econômica ou tecnológica. Foi assim nos primórdios da industrialização, no século 19. É assim com a agroenergia no século 21. É preciso desassombro e realismo histórico para distinguir os fatores que podem materializar as promessas inerentes a esses processos das dinâmicas que ameaçam distorcer todo um elenco de possibilidades..

Para não desperdiçar as chances da história nem se perder na massa de forças que ela aciona quando se movimenta, é preciso equilíbrio e coragem. Esse é o esforço de eqüidistância que o escritório regional da FAO para América Latina e Caribe se impôs diante do horizonte aberto pela transição da matriz energética.

Estamos diante de conta de chegar e algumas coordenadas se impõem. A principal delas é a corrida para evitar que a temperatura média da Terra suba acima de 2o C neste século. O consenso científico indica que, para isso, é preciso reduzir em mais da metade as emissões atuais de dióxido de carbono.

A agroenergia é uma das alternativas para ajudar a atingir a meta. Hoje, os biocombustíveis líquidos demandam 14 milhões de hectares no mundo. Oferecem em troca 1% do abastecimento mundial de energia para transportes, participação que poderá alcançar 7% até 2030.

A cautela recomendável diante dessas mudanças de escala não significa ratificar uma percepção comum, mas falsa, de que o canibalismo entre agroenergia e lavouras de alimentos é inevitável. Segundo o Comitê Mundial de Segurança Alimentar da FAO, a produção mundial de cereais é suficiente para assegurar 2.810kg calorias/dia a cada habitante do planeta, quase um terço superior ao mínimo necessário de 2.200kg cal/dia. Na América Latina e Caribe a disponibilidade de alimentos é ainda maior, 2.880kg cal/dia.

Portanto, a fome tem cada vez menos a ver com a produção de alimentos e cada vez mais com as dificuldades de acesso. Nossa doença é social, e é isso que explica que 52,4 milhões de pessoas passem fome na região e outras 209 milhões (40% do total) lutem pela sobrevivência com menos de dois dólares por dia.

O cenário de exclusão contrasta com a disponibilidade de alimentos e de recursos para erradicar a fome e a pobreza. Estatísticas da FAO demonstram que há terras aráveis suficientes na América Latina e Caribe para a agricultura avançar dos atuais 150 milhões de hectares para 224 milhões, sem derrubar suas florestas. No Brasil, 80 milhões de hectares aráveis não são usados.

Essa inaceitável contradição entre oferta e acesso levou o escritório regional da FAO a abraçar a Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome, que busca erradicar a fome até 2025. Plantar combustíveis, como diz o presidente Lula, pode acelerar o processo. Partilhamos o entusiasmo sem ignorar os desafios que ele traz.

Também é importante mencionar a delicada questão do uso do milho para fins energéticos. Em 2006, os preços do produto atingiram cotações recordes. Como lembrou em julho o secretário-geral da OEA, produzir etanol a partir da cana-de-açúcar é mais barato que fazê-lo a partir do milho e não ameaça a produção de alimentos.

Trata-se de possibilidade histórica. Não uma certeza arrogante. Para que ela se materialize, a FAO considera indispensável um conjunto de providências que pretendemos difundir junto aos governos, como salvaguardas indissociáveis dos programas de agroenergia. Elas incluem impedir que a agroenergia desloque lavouras destinadas à alimentação humana; garantir o respeito aos direitos trabalhistas no campo; promover a participação dos pequenos produtores nessa nova fronteira; e trocar experiências em todo o continente.

Voltamos às possibilidades da história. Uma transição de ciclo de desenvolvimento, antes de ser equação técnica, é palheta de escolhas de diferentes tonalidades políticas. Requer, portanto, ações públicas para materializar as promessas e minimizar os riscos. Uma boa forma de balizar a nova paisagem é cercá-la de diretrizes e compromissos que permitam de fato plantar combustíveis para colher justiça social. Esse é o compromisso da FAO.

CB, 06/08/2007, Opinião, p. 15

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