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Agora é antes

CB, Caderno C, p.13
30 de Jan de 2005

Agora é antes

Mostra que o CCBB inaugura na terça-feira reúne 260 peças criadas por povos que habitaram as terras brasileiras há mais de 50 mil anos

A pré-história brasileira tem esquinas que escondem detalhes quase ignorados da trajetória dos povos que por aqui passaram antes mesmo que índios se digladiassem com portugueses. A cultura dessa gente deixou rastros preciosos de uma história tão distante que parece pertencer a outras terras. É um tempo que o próprio Brasil desconhece. Essa foi a senha para os curadores Marcello Dantas e Niède Guidon idealizarem a exposição Antes - Histórias da pré-história, que passou pelo Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro e desembarca em Brasília.
A partir de terça-feira, o público poderá conhecer particularidades de povos que habitaram a região há mais de 50 mil anos. A exposição reúne 260 peças de 13 instituições brasileiras e duas estrangeiras. São museus de arqueologia, etnologia e antropologia espalhados por todo o país e que dão conta da diversidade que marca a pré-história brasileira. As duas instituições estrangeiras - Museu de Pré-história de Berlim e Museu de Ciências Naturais de Valência - foram procuradas porque Marcello queria peças de outros lugares do mundo. A idéia é permitir ao público conhecer um pouco da produção do planeta durante o período tratado na exposição.
"Temos uma produção artística impressionante, comparável à de outros países", explica o curador. "O importante dessa exposição é mostrar ao povo brasileiro que ele tem um passado do qual deve se orgulhar. Havia aqui povos independentes que criavam sua arte com a mesma tecnologia que outros", completa Niède. No acervo exposto estão representadas todas as sociedades pré-históricas cujos vestígios foram descobertos no Brasil.
No CCBB brasiliense, a exposição ficou dividida em três salas e um espaço improvisado com uma tenda. Na galeria principal estão os zoólitos, as cerâmicas marajoaras, as urnas funerárias, os objetos coletados em museus estrangeiros e as peças em pedra que atestam a sofisticação plástica do homem pré-histórico.
A segunda galeria ficou para a réplica da pedra lavrada do Ingá, na Paraíba - uma série de símbolos gravados em pedra cuja data e significado nunca foram decifrados -, gravuras em pedra e a projeção de vídeo com imagens das pinturas rupestres dos sítios arqueológicos do parque da Serra da Capivara (Piauí). "Esse vídeo virou a menina dos olhos da exposição", revela Marcello.
Outra sala, improvisada ao lado da Livraria da Travessa, recebeu a megafauna.
Lá estão esqueletos e fósseis dos animais que habitavam a terra no período retratado pela exposição. A tenda, erguida no espaço externo do CCBB, é ocupada pela preguiça gigante, prima das preguiças que conhecemos hoje e datada de 10 mil anos. Ao redor do enorme esqueleto, um conjunto de tanques de areia para que as crianças possam escavar e brincar de arqueólogos.

Antes - Histórias da Pré-História
De 1o de fevereiro a 10 de abril. Terça a domingo, das 10h às 21h, nas galerias do Centro Cultural Banco do Brasil (Setor de Clubes Sul, trecho 2, 310-7087).

Continuação da capa
Reserva Natural protegida pelo Ibama, o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, cuidado pela antropóloga Niède Guidon, guarda verdadeiros tesouros em mais de 800 sítios arqueológicos e a maior concentração de pinturas rupestres por metro quadrado do planeta

Pesquisa avançada
Nahima Maciel

Há mais de dez anos, a antropóloga Niède Guidon fez o que os amigos consideraram a grande loucura de sua vida.
Deixou Paris e as aulas na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, uma das instituições mais renomadas da área, e desembarcou em São Raimundo Nonato, no Piauí, para cuidar dos sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara. Reserva natural protegida pelo Ibama, o parque guardava um tesouro na época pouco conhecido.
Niède tinha domínio da região: desde 1973 ela desenvolvia pesquisas no local a convite do governo brasileiro. Em 1986, a arqueóloga notou que seria preciso uma pessoa jurídica para proteger o parque e tratou de criar a Fundação do Homem Americano (Fundham).
"Somos parceiros do Ibama e fazemos o manejo do parque", explica. Além de preservar as peças encontradas em escavações, a instituição é sede de um museu de ciências naturais e coordena as pesquisas na área.
Graças a Niède, a região de São Raimundo Nonato é a mais protegida do país no quesito arqueologia. Distribuídos pelos 134 mil hectares de parque estão mais de 800 sítios arqueológicos.
Por lá foram encontrados os esqueletos mais antigos de que se tem notícia em terras brasileiras, restos de povos que viveram há 13 mil anos, e objetos em pedra que comprovam a presença humana há 100 mil anos..
Também no parque está a maior concentração de pinturas rupestres por metro quadrado do planeta. O que se vê pintado nas pedras e paredes de cavernas são desenhos extremamente elaborados, representações de figuras humanas e situações como festas e rituais. Os povos autóctones daquelas terras são exceções: enquanto a maior parte das pinturas rupestres descobertas pelo mundo trata apenas de animais, na Serra da Capivara aparecem seres humanos.
Desde que adotou o parque, Niède acorda às 5h e trabalha até as 20h, numa incessante busca pelos vestígios de civilização. "Outro dia começamos a escavar um sítio em que encontramos 25 esqueletos", conta a arqueóloga, uma paulista de origem francesa que já foi mais entusiasmada. Hoje, aos 72 anos, Niède começa a demonstrar certo desânimo. Sua iniciativa fez a pesquisa brasileira em arqueologia dar saltos admiráveis. Já não se pode falar o mesmo da atenção governamental para a área.
Na quinta-feira, a arqueóloga aproveitou o final da montagem da exposição no CCBB para uma visita à Polícia Federal. Ia pedir reforço para conter uma manifestação organizada pelo MST em região do parque onde já se instalaram alguns invasores. "É uma ameaça de ver todo o trabalho que fizemos destruído", lamenta a arqueóloga. Ela não se refere unicamente aos sítios arqueológicos.
A preocupação maior é que as invasões prejudiquem o turismo, atividade que ajuda a manter verbas para conservação e pesquisa. Divulgar os acervos arqueológicos brasileiros e atrair visitantes para os diversos museus foram as motivações que levaram Niède a participar da curadoria de Antes: histórias da pré-história.
"Nossas esculturas em pedras e cerâmicas são equivalentes às obras que você encontra no México e Peru. Lá, isso é divulgado e turistas vão a esses países só para ver esse patrimônio", compara. "No Brasil, não se divulga isso."

Abaixo, alguns destaques da exposição no CCBB
A cerâmica amazônica A ocupação da Amazônia por povos pré-históricos é praticamente desconhecida, mas as cerâmicas encontradas na região ajudam os pesquisadores a lançar alguns feixes de luz sobre o vazio histórico. Os diferentes estilos, divididos em tradições e fases, ajudaram a afirmar que as culturas dos povos amazônicos se difundiram por toda a região. Grande parte dessa cerâmica, produzida essencialmente por mulheres, era destinada a cerimônias e rituais funerários. É comum encontrar urnas nos mais variados estilos. Na exposição há peças com policromias, algumas polimorfas, outras com apliques em formato de seres humanos e bichos. A variedade de formas e padrões decorativos é marcante e pesquisas, já comprovaram que o início da cerâmica no Brasil é independente do surgimento dessa técnica no resto do continente sul-americano.

Enterramentos
O cuidado com os restos mortais é constante nas culturas pré-históricas. Freqüentemente, os mortos eram enterrados com armas, objetos de estimação e panelas de cerâmica com comida. Arqueólogos acreditam que essa prática é resultado de uma crença na vida após a morte. Entre os enterramentos reproduzidos na exposição há um em particular cujo estado de conservação é surpreendente. Encontrada sob um abrigo com pinturas rupestres, uma urna traz restos de esqueleto de uma criança cujo cabelo colado à pele da cabeça e unhas foram preservados. A datação é do ano de 1500, mas a exposição tem esqueletos mais antigos, como o crânio de 11 mil anos encontrado no Piauí.

Pinturas rupestres
Foi descobrindo plantas e minerais dos quais era possível extrair tinta que os povos pré-históricos começaram a deixar marcas em formações rochosas. Os arqueólogos supõem que tal prática era resultado da tentativa de registrar a memória de uma comunidade. A palavra não era capaz de transmitir o conhecimento através das gerações e a pintura rupestre funcionava como espécie de livro histórico. Pesquisadores dividem as pinturas encontradas no Nordeste em três grandes grupos. O primeiro deles - conhecido como Nordeste - tem forte característica narrativa e técnica bastante elaborada. Já a tradição Agreste tem figuras maiores, enquanto um terceiro grupo é formado por inscrições geométricas, sem significado claro. Preservar as pinturas fazia parte das preocupações do homem pré-histórico, o que explica que essas marcas sejam sempre encontradas a uma altura que pudesse dificultar qualquer intervenção.

Zoólitos
Essas esculturas em pedra ou osso eram típicas das culturas sambaquis. Conhecidos como povos caçadores e coletores, os sambaquis habitavam a região do litoral sul e tinham como característica construir montes que podiam chegar a 30 metros de altura e serviam de moradia ou cemitério. Os zoólitos, com datações que chegam a 2,5 mil anos, eram usados em cerimônias e a grande quantidade dessas pequenas esculturas encontradas junto às formações sambaquis indica uma intensa prática ritualística. É raro encontrar entre os zoólitos representações humanas - formas de animais são mais comuns -, mas a exposição traz uma peça em que a representação de um rosto é evidente

CB, 30/01/2005, Caderno C , p. 13

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