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Agonia do gelo no topo do mundo

O Globo, Ciência, p. 32
02 de Mar de 2012

Agonia do gelo no topo do mundo
Mudança do clima pode tornar cume do Everest impossível de alcançar

Ana Lucia Azevedo
ala@oglobo.com.br

Chegar ao topo do mundo se tornou mais difícil e letal. O Everest, a mais alta montanha da Terra, mudou, alerta o homem que o escalou mais vezes, o nepalês Apa Sherpa.
Neve e gelo estão em retração na montanha. Parece uma boa notícia, já que haveria menos fendas escondidas sob a neve, e menos obstáculos. Na verdade, é o contrário.
Imensas rochas amalgamadas por gelo secular estão soltas e avalanches se multiplicaram. Também é imensamente mais difícil vencer em grande altitude encostas íngremes de rocha nua e escorregadia. Dentro de poucos anos, o Everest pode se tornar impossível de escalar. O chamado terceiro polo do mundo, o lugar mais próximo do céu que o ser humano é capaz de chegar com as próprias pernas, pode se fechar à Humanidade e se tornar o maior símbolo das mudanças climáticas globais.
Aos 51 anos, Apa Sherpa detém o recorde de ter chegado ao cume do Everest 21 vezes, um feito sobre-humano, que ele agora espera superar na mais ousada caminhada já realizada, a travessia dos Himalaias, entre passagens glaciais traiçoeiras, fendas geladas, altitudes quase sempre superiores a 6 mil metros e terrenos acidentados. A travessia de 1.700 quilômetros faz parte de uma campanha chamar a atenção sobre as mudanças climáticas.
Nos últimos anos, montanhistas têm alertado para mudanças não apenas no Everest quanto em boa parte dos Himalaias. Os sherpas, povo nepalês de origem étnica tibetana, têm elevado o tom do alarme. Com o organismo excepcionalmente bem adaptado à grande altitude, eles são os senhores dos Himalaias, a quem a maioria dos escaladores recorre como guia ou carregadores na altitude.
Os sherpas dependem do montanhismo para viver. E o que eles veem nos cumes, cientistas traduzem em dados: nos últimos 30 anos as geleiras do Nepal encolheram 21%. As medições são do Centro Internacional para o Desenvolvimento das Montanhas (Icimod, na sigla em inglês), sediado na capital nepalesa, Katmandu. A perda de gelo se acelerou a partir de 2002 e foi particularmente intensa até 2005.
Cerca de 1,3 bilhão de pessoas dependem diretamente da água das geleiras dos Himalaias para sobreviver. Rios como o Indo nascem da água que a cada verão desce das montanhas. Inicialmente, o degelo acelerado aumenta a oferta de água. Mas quando a geleira definha ou se esgota, a água acaba. Vem das geleiras dos Himalaias a água para a agricultura e a energia de uma das regiões mais povoadas do mundo.
Uma série de estudos recentes como o Icimod tem mostrado que o degelo é real. O fenômeno é visível. Onde havia o branco do gelo e da neve agora há o cinza das rochas nuas.
- Em 1989, quando escalei o Everest pela primeira vez, havia muita neve e gelo, mas agora há principalmente rocha nua. Como resultado, ocorrem mais deslizamentos de rochas, muito perigosos para escaladores - disse Apa Sherpa à agência de notícias AFO. - Não sei o que o futuro nos reserva. Mas pela minha experiência pessoal posso dizer que o Everest pode se tornar impossível de escalar em alguns anos. As coisas mudaram muito.
Ele tem visto de perto o impacto das mudanças climáticas durante sua caminhada de 120 dias, batizada de Climate Smart Celebrity Trek, prevista para terminar em 13 de maio.
Apa percorre o Grande Caminho do Himalaia, aberto ano passado pelo Nepal, na companhia de outro soberbo escalador, Dawa Steven Sherpa. Essa é a primeira expedição oficial a cruzar a rota, por muitos anos fechada devido a conflitos internos e disputas territoriais.

Uma nova medição para a montanha
China e Nepal têm alturas diferentes para o Everest; satélite vai tirar dúvida

Para os tibetanos, ela é Chomolungma, a deusa mãe da Terra. No Nepal, reverenciam-na como Shagamarta. Os chineses a conhecem como Qomolangma. Ainda assim, a montanha mais alta do mundo é mais conhecida no Ocidente por Everest, homenagem da Royal Society a Sir George Everest, que comandou o grande projeto de medição dos Himalaias no século XIX, e acabou se tornando um indigesto símbolo do imperialismo britânico. Mas a rainha das montanhas não suscita polêmica apenas no nome. Sua altura é motivo de disputa.
Esta semana o Nepal pediu ajuda internacional para fazer uma medição definitiva da montanha, uma tarefa que beira o impossível. Situada na secularmente problemática fronteira entre Nepal e o Tibete ocupado pela China, o Everest tem oficialmente 8.848 metros, segundo uma medição de1954, aceita pelo Nepal e na maior parte do mundo. Uma medição patrocinada pela National Geographic em1999 chegou a 8.850 metros, mas essa medida não foi oficializada. E, para complicar, a China diz que o Everest é menor, tem 8.844 metros, de acordo com dados de uma medição realizada em 2005.
-Temos que acabar com essa confusão. Com a ajuda de satélites, poderemos tirar a dúvida, mas levará pelo menos dois anos - disse o porta-voz do Ministério da Reforma Agrária do Nepal, Gopal Giri.
Mesmo com o uso de GPS não é nada fácil medir qualquer coisa nos Himalaias. Primeiro, é preciso estabelecer pontos de referência na montanha, o que a altitude, o constante deslizamento de rochas, gelo e neve dificultam muito. Além da dificuldade humana de instalar tais pontos, a natureza não ajuda em nada. Os Himalaias estão "vivos". A região tem intensa atividade sísmica e as montanhas continuam a crescer. Fora isso, o frio intenso (falamos de temperaturas facilmente abaixo dos 20 graus Celsius negativos) destrói equipamentos eletrônicos e prejudica a acurácia de medições. Os equipamentos precisam suportar sem problemas temperaturas de 50 graus Celsius negativos por muitos meses seguidos.
Também será preciso estabelecer uma metodologia internacionalmente aceita e entrar em acordo sobre a estimativa da cobertura de neve e gelo.

O Globo, 02/03/2012, Ciência, p. 32

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