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Acordo climático precisará de torniquete

Valor Econômico, Especial, p. A11
Autor: KAISER, Martin; CHIARETTI, Daniela
29 de Out de 2015

Acordo climático precisará de torniquete

Por Daniela Chiaretti

O acordo climático internacional a ser fechado em Paris em dezembro, durante a conferência da ONU, precisa ter uma meta de longo prazo de descarbonização da economia e um mecanismo que ajuste os compromissos dos países a cada cinco anos, a partir de 2020, para garantir ações mais fortes de redução de gases-estufa e mais recursos financeiros. Essa é a visão do engenheiro florestal Martin Kaiser, o alemão que coordena o Greenpeace Internacional quando o assunto é política climática.
"Uma meta sem plano é só um desejo", disse Kaiser em Bonn, na semana passada, durante a última rodada de negociação antes de Paris. O texto sobre a mesa tem agora 55 páginas e está cheio de trechos em que não há acordo entre os negociadores de mais de 190 países.
Um dos temas mais controversos é o da diferenciação das responsabilidades entre os países, quem paga a maior parte da conta e corta mais gases-estufa. Kaiser, um expert em florestas que se especializou no Canadá e foi do Forest Stewardship Council (FSC), é cuidadoso. Reconhece que os países mais pobres e vulneráveis precisam de apoio, mas diz que Paris terá que equacionar "a nova realidade geopolítica do mundo exterior no sistema atual das Nações Unidas".
Kaiser, que está no Greenpeace desde 1998, diz o que o acordo deve ter um texto claro para compensar as perdas e danos de quem não consegue mais se adaptar aos impactos climáticos e defende o fim dos combustíveis fósseis em 2050 e o uso de 100% de energias renováveis. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Qual é a diferença entre agora e a conferência de Copenhague, em 2009, quando se fracassou em fechar um acordo climático?
Martin Kaiser: A grande diferença é a transformação do setor energético, um contexto completamente diferente de antes de Copenhague. Vemos hoje a efervescência das energias renováveis nos Estados Unidos, na China, na América Latina. Tornaram-se uma alternativa econômica viável às usinas de carvão, nucleares e ao petróleo. E o reconhecimento da necessidade de se reduzir a emissão de gases-estufa, principalmente entre os países mais emissores, virou muito mais aparente em função do impacto da mudança do clima em vários locais - as grandes cidades chinesas sofrem com a poluição do ar, o mesmo na Índia, a seca de São Paulo. Mudança do clima não é mais uma teoria, está acontecendo agora e as pessoas se dão conta de que é preciso um esforço global para reduzir emissões.

Valor: O sr. acredita em um acordo em Paris?
Kaiser: Os sinais que estamos vendo dos chefes de Estado dos EUA, China, Brasil, Índia são claros e bastante consistentes. Se os grandes emissores sentem a necessidade de termos um acordo, estamos em um lugar totalmente diferente do que estávamos há seis anos. Mas não só isso. O que vemos, quase todas as semanas, são grandes corporações se comprometendo com metas de ter 100% de energia renovável e cidadãos querendo fazer o mesmo. O CEO da Enel, fornecedora de energia na Itália [Francesco Starace] acaba de dizer que sua empresa irá sair do carvão e investirá em energias renováveis porque esta é a tecnologia do futuro. Mudança do clima não é mais assunto científico, é um tópico econômico.

Valor: O que o acordo deveria conter, na sua visão?
Kaiser: Se quisermos dar alguma chance à adaptação ao aquecimento global vamos ter que derrubar o uso de combustíveis fósseis em 2050 e ter fornecimento 100% de renováveis. Esse é um elemento central que o acordo precisa ter: dar à economia uma direção de longo prazo. Sabendo que as contribuições nacionais divulgadas estão longe de ser suficientes para manter o aquecimento no limite de 1,5o C, temos que garantir que o acordo de Paris consiga, desde o início, assegurar mais ambição.

Valor: Como?
Kaiser: A cada cinco anos todo país seria obrigado a fortalecer suas ações climáticas para ajudar no esforço global. Esse mecanismo de ambição tem que começar logo depois de 2020 e acontecer novamente a cada cinco anos. Sem isso e uma direção clara de longo prazo, vai ser muito difícil explicar o que esse acordo internacional significa.

Valor: Esse mecanismo-torniquete está no texto de negociação?
Kaiser: Sim, há boas opções no texto, o que não quer dizer que estão asseguradas, mas estão no jogo. A meta de longo prazo, que está na declaração do G-7 [o grupo dos países mais ricos do mundo e a China] de junho, na declaração da presidente Dilma e da premiê Angela Merkel e também na da semana do clima de Nova York, delineando a descarbonização da economia global com a ajuda das renováveis, começou a ganhar o apoio de chefes de Estado. Isso aumenta as chances de ser adotada em Paris.

Valor: Finanças costumam ser um impasse. Como resolver?
Kaiser: Esse é um dos contenciosos a ser equacionados em Paris. Está claro que os países ricos têm que cumprir sua promessa de prover US$ 100 bilhões ao ano, em 2020 [feita em Copenhague, em 2009, e ainda não cumprida]. Isso tem que acontecer para que Paris tenha sucesso. Também é preciso que existam ciclos no novo acordo em que necessidades adicionais possam ser supridas, depois de 2020. O mais importante nesse contexto é que cada país observe seus investimentos domésticos e suas políticas para conseguir conduzir os trilhões que se destinam à infraestrutura e fornecimento energético do "marrom" para o "verde" Ou seja, sair de petróleo, carvão e gás e migrar para as renováveis.

Valor: Paris pode sinalizar com um preço para o carbono?
Kaiser: Acho que essa demanda vem da indústria do petróleo, que está colocando uma cortina de fumaça e fingindo fazer algo. Nunca se terá um preço para o carbono em um processo de negociação como esse. O que queremos ver na indústria do petróleo são mudanças em seu modelo de negócios, que coloque um fim à exploração e se volte às energias renováveis.

Valor: Por que o mecanismo conhecido como "perdas e danos" é importante?
Kaiser: Outro furacão bateu na costa do México, é praticamente um por ano, agora. Há poucos dias vimos um novo tufão nas Filipinas. As consequências do aquecimento já atingem fortemente os mais pobres, que perdem casas e pertences. A questão é como se conseguir um acordo que garanta ou lide com a compensação das perdas devidas pela mudança do clima.

Valor: Deve ser um artigo independente daquele que trata da adaptação aos impactos?
Kaiser: Sim, perdas e danos precisam ter um capítulo próprio. O texto do acordo não pode simplesmente reconhecer que há um debate sobre perdas e danos. Tem que avançar.

Valor: O acordo tem que ser legalmente vinculante? Se sim, como passar pelo Congresso dos EUA?
Kaiser: É desafiador buscar um acordo "legally binding". Mas, sem isso, será difícil ter impactos transformadores. É mais uma questão de ver quais elementos do acordo serão legalmente vinculantes, qual é o vetor de transformação. E dado o fato de que as INDCs dos países [os compromissos anunciados] são hoje basicamente maçãs e laranjas [as metas não são facilmente comparáveis] e não muito consistentes, o ponto-chave é como estarão no acordo. Por exemplo, o mecanismo de ambição, que faz com que as metas sejam revisadas a cada cinco anos a começar em 2020, fortalece as políticas climáticas nacionais e é algo que deve ser uma obrigação para todos.

Valor: O mecanismo de revisão vale não só para as metas de corte, mas também para adaptação e financiamento?
Kaiser: Sim, para tudo.

Valor: Como estão as regras de transparência de dados e recursos?
Kaiser: Há boas opções no texto para garantir a transparência, como a que diz que a contagem de CO2 deve ser a mesma em todos os países e não diferente. Isso é um tema importante, mas controverso, vamos ver como vai ficar.

Valor: E a equidade do acordo?
Kaiser: Tem que estar em todos os tópicos cruciais do acordo. Em mitigação, acho que estamos em uma época em que todos os grandes emissores têm que agir ou não iremos conseguir manter o aquecimento em 1,5o C, 2o C. O apoio a países mais pobres e vulneráveis depende da capacidade de cada um de ajudar. O anúncio da China em Nova York, de colocar US$ 3,1 bilhões para países pobres e pequenos foi um grande sinal de solidariedade além dos blocos de negociação no contexto da ONU.

Valor: Sobre diferenciação das responsabilidades entre os países, como o sr. acha que deveria constar do acordo?
Kaiser: Países vulneráveis, pequenas ilhas e países de baixa renda evidentemente precisam de apoio para mitigação, adaptação e perdas e danos. Há também países que precisam de ajuda na transição de suas economias para uma mais limpa e isso tem que estar no acordo. O que é difícil de equacionar é a nova realidade geopolítica do mundo exterior no sistema atual das Nações Unidas. Como contornar esse obstáculo é um tema muito desafiador para Paris.

Valor: Em função do princípio das "Responsabilidades Comuns, porém Diferenciadas" da Convenção do Clima?
Kaiser: Sim, que definiu blocos de países. Do jeito que isso foi determinado, não é algo que se aplica mais à realidade da mudança do clima.

Valor: E os combustíveis fósseis?
Kaiser: O acordo de Paris tem que ser o começo do fim dos fósseis. Vendo os movimentos atuais de desinvestimentos em petróleo e carvão e a necessidade de mudar o modelo econômico, estou bastante otimista com o acordo. Mas é preciso estar alerta porque os países produtores de petróleo farão o possível para minar um resultado ambicioso.

Valor Econômico, 29/10/2015, Especial, p. A11

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