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Acesso a água esbarra em vontade política

FSP, Brasil, p. A13-A14
10 de Nov de 2006

Acesso a água esbarra em vontade política
Relatório da ONU afirma que má gestão é o outro obstáculo para enfrentar escassez do líquido em países em desenvolvimento
Documento sustenta que os pobres são forçados a pagar preço mais alto pela água por serem obrigados a lidar com prestadores de serviço

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
DA SUCURSAL DO RIO

A maior barreira para resolver o problema de acesso a água e saneamento em países em desenvolvimento é a falta de vontade política aliada à má gestão. É o que sustenta o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, apresentado pelas Nações Unidas sob o título "Além da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água".
Segundo especialistas, o mundo já dispõe de tecnologia, meios financeiros e capacidade para acabar com o déficit, que não é pequeno. Segundo o relatório, em pleno século 21, um em cada cinco habitantes de países em desenvolvimento não tem acesso a água potável. Isso representa cerca de 1,1 bilhão de pessoas. Quase a metade da população desses países -2,6 bilhões- não dispõe de saneamento básico.
O reflexo é que 1,8 milhão de crianças morrem de diarréia por ano -segundo lugar nas causas de mortalidade infantil, atrás de Aids e conflitos. Além disso, doenças parasitárias atrasam a aprendizagem de 150 milhões de crianças, população superior à do Japão.
A falta de vontade estaria ligada ao fato de os mais afetados serem pobres. Mais de 660 milhões de pessoas sem saneamento vivem com até US$ 2 (ou R$ 4,40) ao dia. "Tal como a fome, é uma urgência silenciosa suportada por pessoas carentes e tolerada por aqueles que dispõem de recursos, tecnologia e poder político para acabar com ela", diz o texto.
Diante desse quadro, o relatório aponta a necessidade "urgente" de um Plano de Ação Global, sob liderança do G8 -grupo dos sete países mais ricos e a Rússia.
O documento exemplifica que seriam necessários mais US$ 10 bilhões anuais (R$ 22 bilhões) para que os países cumpram até 2015 os Objetivos do Milênio ligados à área.
Mantida a tendência atual, 55 países não cumprirão até 2015 a meta de reduzir pela metade a proporção da população sem água, e 74 não atingirão para saneamento. A carência desse serviço também é um dos fatores que ajudam a explicar estatísticas de falta às aulas. Isso porque o aluno fica constantemente doente ou utiliza seu tempo em busca de água.
Segundo o documento, pessoas carentes são forçadas a pagar um preço mais alto pela água potável, por terem de lidar com um leque de prestadores de serviço para obter o produto. Resultado: em Nairóbi, capital do Quênia, moradores de bairros pobres chegam a pagar até dez vezes mais pelo litro de água do que os com nível de renda maior. Cerca de um terço da população da cidade depende de vendedores ambulantes.
O relatório diz que o antigo debate entre o controle público e privado do setor de abastecimento de água e coleta de esgoto tem "desviado a atenção do desempenho inadequado dos fornecedores" na resolução do déficit global. Cita a necessidade de uma "nova abordagem" do problema, que coloque as pessoas carentes no centro do debate e busque soluções. (LUCIANA CONSTANTINO E ANTÔNIO GOIS)

Clima: Falta de acesso à água deve prejudicar agricultura

Mudanças climáticas ameaçam intensificar as dificuldades de acesso à água. A combinação das alterações do clima com competição por recursos hídricos pode levar a uma crise "potencialmente catastrófica" e será enfrentada, sobretudo, por agricultores pobres. É o que diz o Relatório de Desenvolvimento Humano. Segundo o relatório, em algumas regiões, a variação de padrões pluviométricos reduzirá o rendimento de colheita em 25% ou mais. O texto propõe mudanças no gerenciamento do setor, novas tecnologias e garantia dos direitos de pessoas carentes no campo.

Brasil tem bastante água, mas pouco esgoto
Enquanto 90% da população tem acesso à água, esgotamento sanitário só atende 75%; déficit se concentra nas áreas pobres
Governo federal admite deficiência, mas afirma que, entre 2003 e 2006, destinou investimentos de R$ 12,9 bi para setor de saneamento

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
DA SUCURSAL DO RIO

O Brasil tem indicadores semelhantes ao de países com alto desenvolvimento humano no ranking que mostra a taxa da população com acesso à água potável -fica próximo da Coréia do Sul. No entanto, na coleta de esgoto, o país volta para patamares de desenvolvimento médio, atrás do Paraguai.
É o que aponta o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Neste ano, o tema é "Além da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água". Os dados são referentes a 2004.
Enquanto 90% da população brasileira tem acesso à água, no acesso ao esgotamento adequado a taxa de atendimento é de 75%. Ambos evoluíram de 1990 a 2004, mas em ritmos diferentes: a cobertura cresceu, respectivamente, 8,4% e 5,6%.
Mesmo com o alto índice de atendimento da população com água potável, próximo de cumprir a Meta do Milênio (dentro dos Objetivos do Milênio), o Brasil aparece em 74o no ranking de 159 países porque outros têm desempenho melhor.
Em relação ao saneamento, o país está em 67o lugar entre 149 nações analisadas. O relatório aponta, porém, que parte significativa do déficit brasileiro nesse setor se refere à falta de atendimento aos mais pobres.

Contraste
"No Brasil, os 20% mais ricos desfrutam de níveis de acesso a água e saneamento comparáveis ao de países ricos. Enquanto isso, os 20% mais pobres têm cobertura tanto de água como de esgoto inferior à do Vietnã", afirma o estudo do Pnud.
O secretário de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, Abelardo de Oliveira Filho, reconhece que diferenças sociais e regionais são o desafio, mas diz que o governo tem adotado mecanismos para tentar reduzi-las. Afirma que o governo federal gasta hoje 0,3% do PIB com saneamento ao ano. De 2003 a 2006, segundo ele, foram disponibilizados R$ 12,9 bilhões para o setor.
Na última terça, o Conselho Curador do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) aprovou R$ 3 bilhões destinados ao saneamento em 2007.
O relatório também diz que o fato de o Brasil estar no topo da lista das maiores reservas hídricas (dispõe de 12% da água doce do planeta) não significa que tenha conseguido superar o desabastecimento: cita o "polígono da seca", região semi-árida de 940 mil km2 que abrange nove Estados do Nordeste e enfrenta um problema crônico de falta de água.
Por outro lado, o país está entre os mais citados no documento -ao lado de China e Etiópia-, ganhando espaço para um texto do presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva. "Realço a necessidade de pôr a água e o saneamento no centro da agenda de desenvolvimento global, dentro de um plano de ação para ir ao encontro do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio. Essa medida levaria a uma mobilização de recursos e a que as pessoas se centrem no desafio que todos nós temos de enfrentar", afirma Lula.
Nos casos de boas iniciativas para tentar atender os mais pobres com água potável e saneamento aparecem Porto Alegre e Brasília. Na capital gaúcha, o serviço de abastecimento (que atende 99,5% da população) é considerado "excelente" e uma "prova" de que uma empresa pública pode fornecer acesso universal a preço bom.
Já o sistema condominial de saneamento do Distrito Federal é citado como alternativa para levar o serviço à população pobre. Em vez de atender domicílios, o sistema presta serviço a quarteirões, e as obras são feitas em mutirão.
O documento fala de outras iniciativas brasileiras, como cisternas e o caso do Ceará, que, para solucionar impasse entre industriais e agricultores, elaborou um plano de gestão de consumo da água.
"Não queremos dizer que o serviço tem de ser público ou privado. Não importa o mecanismo de provisão. O que tem de existir é eqüidade, fazendo a água chegar aos mais pobres", diz Ricardo Fuentes, consultor do Pnud. (LUCIANA CONSTANTINO E ANTÔNIO GOIS)

Orçamento explica desempenho apenas mediano na área social

DA SUCURSAL DO RIO

O desempenho mediano do Brasil em desenvolvimento humano é em boa parte explicado pelo pequeno gasto público, quando comparado com países desenvolvidos, em educação e saúde. O relatório mostra que o país gasta mais com serviços da dívida (8,9% do PIB) do que com educação (4,1% do PIB) e saúde (3,4% do PIB) juntos.
No caso da saúde, o gasto público do país é inferior ao privado (de 4,2% do PIB). Além disso, de 175 países para os quais há comparação do gasto público em saúde em relação ao PIB, o Brasil é o 69o de maior gasto.
O valor de 3,4% é bastante inferior ao verificado entre os países que mais gastam (Islândia, Alemanha, Noruega e Suécia investem mais de 8,0%), mas é superior ao de nações em desenvolvimento como África do Sul, Chile, México e China.
A posição do país no ranking dos que mais investem publicamente em educação é ainda pior: 81o de um grupo de 124. Os dados mostram, no entanto, que outros países com melhores indicadores educacionais do que o Brasil fazem mais investindo menos: é o caso de Chile, Argentina e Uruguai.
"Há uma posição prevalente entre economistas de que não precisamos gastar mais em educação. No entanto, a infra-estrutura das escolas ainda não está completa. Manutenção, biblioteca e adaptações de salas ainda são necessárias em grande escala. É por isso que precisamos, sim, de mais recursos. Mas não adianta só aumentar o gasto no sistema tal como está. A grande batalha, e muito mais difícil de ser vencida, é a do melhor uso do recurso", diz Francisco Soares, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Em bairro de SP, ligação irregular de água passa dentro de valeta de esgoto

Leandro Beguoci
Da reportagem local

Embora todo mundo beba, a água é clandestina na Vila Nova Cidade, em São Paulo.
Como o bairro fica em área de proteção ambiental, a legislação proíbe o fornecimento de água pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Em tese, a região deveria ser despovoada, mas, hoje, já tem luz e telefone.
Para driblar a restrição, as famílias pagam R$ 200 pela instalação de água para uma entre, ao menos, quatro "Sabesps paralelas" - que desviam a água de um cano que passa por avenidas próximas. Cada família paga R$ 15 mensais pela manutenção do encanamento.
Em alguns casos, os canos não foram enterrados e fluem (esburacados) pela mesma valeta onde corre o esgoto (não há saneamento). Quem não paga perde a água, mas ninguém reclama. "Se não fossem eles, todo mundo morreria de sede", afirma Joseval Francisco de Souza, 36, líder da comunidade.
Na Sabesp, a instalação custa R$ 166 e a tarifa para quem usa até 10 mil litros mensais é de R$ 3,60.
Nova Cidade surgiu de uma invasão na zona sul da capital paulista. Fica a 1h de carro do centro da cidade e a 20 minutos da represa de Guarapiranga. Hoje, segundo os moradores, 15 mil famílias vivem por lá.
A prefeitura não tem dados consolidados sobre ocorrência de doenças ligadas à água contaminada no bairro. O que há é um número geral. Até outubro deste ano, 200 pessoas tiveram leptospirose (doença transmitida pela urina de ratos) na capital. Dessas, 27 morreram.

No Ceará, moradores do campo chegam a pagar R$ 35 para os carros-pipa

Kamila Fernandes

Na casa onde Antônia Maria Menezes Sampaio, 45, vive com sua família, na zona rural de Caridade (a 100 km de Fortaleza), não há torneiras nem qualquer serviço público de abastecimento de água. Para conseguir água para beber, ela tem de pagar R$ 35 para um carro-pipa encher um reservatório de 4.000 litros -que têm de durar, para as seis pessoas da casa, pelo menos 15 dias.
O dinheiro para comprar essa água é tirado dos R$ 80 que ela recebe todo mês do programa Bolsa Família. Quando acaba a água e o dinheiro, o jeito é apelar para a água tirada, no lombo de um jumento, de um açude. "Se não fosse esse problema da falta d'água, esse lugar seria perfeito. Gosto muito de viver aqui, é calmo, mas sempre é esse sofrimento para ter o que beber", diz. Na cidade há locais atendidos por carros-pipa do Exército, que fornecem água de graça.
Para ter acesso a essa água, José Claneilson Silva de Abreu, 20, e Aldenísio Sampaio, 17, escavavam anteontem um buraco para construir uma cisterna -que deverá atender oito famílias que vivem próximas ao local. Enquanto isso, a água consumida vem dum "cacimbão".
Em outra comunidade de Caridade já foram instalados os canos de abastecimento. O problema é que, em uma semana, saiu água da torneira só um dia. No local, um galão de 200 litros custa R$ 4, se água for boa, ou R$ 2, se for imprópria para consumo humano. "Água de açude não é boa para beber, mas, quando não tenho dinheiro, o jeito é comprar essa mesmo", diz Francisco Lopes, 67.

FSP, 10/11/2006, Brasil, p. A13-A14

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